“Coma comida. Não muita. Principalmente plantas”: eis uma dieta saudável
Um exército de tiktokers, influenciadores, pseudocientistas e outras sortes de terroristas nutricionais corrói nossos laços culturais e afetivos com a comida e espalha a ilusão perversa de que se alimentar bem é complicadíssimo. Não é.
Esta é a carta ao leitor da edição de setembro de 2024 da Super.
Em 2018, o pesquisador Ilya Bobrovskiy desceu de rapel em um penhasco íngreme na Rússia para colher amostras de um Dickinsonia fossilizado. Esse foi um ser vivo pré-histórico semelhante a um tapete, que alcançava mais de 1 m² de área, mas apenas alguns milímetros de espessura.
Ele viveu há 558 milhões de anos e foi uma das primeiras formas de vida maiores que um protozoário. Não tinha cabeça, ombro, joelho ou pé. Lembrava uma folha de árvore gigantesca – uma criança diria que é o bisavô da vitória-régia.
Por décadas, ninguém soube se o dito-cujo era bicho, fungo, planta ou alguma outra coisa. Até que Bobrovskiy encontrou moléculas de colesterol no fóssil – e colesterol, via de regra, só existe em animais. Mistério resolvido: era bicho.
É provável que o Dickinsonia se alimentasse do suculento tapete de bactérias que forrava o leito dos oceanos. Na época, esse era o máximo de emoção que um almoço na Terra oferecia. Outras opções eram filtrar água do mar atrás de matéria orgânica ou comer restos de animais mortos (a saprofagia).
Foi só no Cambriano, o período geológico seguinte, que as dietas pré-históricas ficaram mais interessantes. Alguns animais passaram a ter garras e dentes afiados para beliscar o almoço. O almoço, por sua vez, passou a se proteger com carapaças rígidas e toxinas. E claro: esses bichos precisavam de nadadeiras ou patinhas – fosse para perseguir, fosse para fugir.
Surgiram olhos para detectar a radiação eletromagnética refletida pelos outros seres, ouvidos para perceber as vibrações que eles geram na água, narizes para farejar o rastro de moléculas que eles deixam… Nossos sentidos nos permitem encontrar alimento enquanto evitamos o aconchego do estômago alheio.
O ser humano, claro, foi além da sobrevivência e aprendeu a manipular seus sentidos por prazer. Parte disso consistiu em equilibrar sal, acidez, gordura e calor para tornar a comida algo além de combustível. Toda civilização tem uma culinária – um conjunto de tradições para preparar e consumir alimento que está embrenhado na nossa memória afetiva, nos dá prazer, nos une à família e amigos e resguarda nossa identidade religiosa.
Infelizmente, há um exército de tiktokers, influenciadores, pseudocientistas e outras sortes de terroristas nutricionais que estimulam a busca por padrões de beleza inalcançáveis e cultivam baixa autoestima e transtornos alimentares, especialmente em mulheres jovens. Nossa relação com a comida está corroída pelas ilusões perversas de que saúde é sinônimo de magreza, de que celulite é condenável e de que se alimentar bem é complicadíssimo.
Não é. Nas palavras de Michael Pollan: “Coma comida. Não muita. Principalmente plantas”. Eis aí uma dieta saudável, sem chás mágicos, sucos detox e outras picaretagens, e com um espacinho para hambúrguer no final de semana.
Se daqui 500 milhões de anos encontrarem meu fóssil, haverá algum colesterol nele. O que me permitirá ser identificado como o que sou: um animal que compartilha guloseimas e alegria com gente querida, e não um Dickinsonia do submundo fit, sugando whey protein, alface e barrinhas de cereal. Ninguém merece a alimentação pré-Cambriana.
Na matéria de capa desta edição, com texto da Maria Clara Rossini e design deliciosamente labiríntico da Luana Pillmann, explicamos como manter uma relação sensata e saudável com a culinária do Holoceno, a época geológica atual (rs). Sejam felizes à mesa. Um abraço!
Bruno Vaiano
Editor-chefe
bruno.vaiano@abril.com.br