Está acordado? Então ouve isso: não sabemos exatamente o motivo. Mas a ciência tem certeza de que dormir faz bem para o corpo, nos deixando mais produtivos e felizes. Se o ideal é passar um terço da nossa vida de olhos fechados, é hora de entender melhor o que acontece antes, durante e depois de uma noite de sono
Como anda seu sono?
Qual foi a última vez que você dormiu bem e acordou se sentindo completamente descansado? Se você não tem dificuldade para se lembrar do seu último sono dos justos, considere-se sortudo. Numa época em que brasileiros estão dormindo menos e pior, ter uma noite tranquila e revigorante virou privilégio. Estatisticamente, porém, é mais provável que você faça parte de outro grupo: o dos que têm algum tipo de distúrbio de sono
Parece filme de terror. Na calada da noite, depois que a maior parte da população dorme, uma epidemia se espalha silenciosamente, forçando milhares de pessoas a passar noites em claro. A vilã dessa história é a insônia, que desregula o organismo de suas vítimas e prejudica sua qualidade de vida. Mas não são só os insones que passam a noite sem dormir. Quando temos mais compromissos do que horas no dia para cumpri-los, frequentemente usamos a madrugada – e deixamos aquele sono da beleza para depois.
Um estudo feito pela Universidade de Michigan entre 2014 e 2016 investigou o tempo médio de sono ao redor do mundo. Com média de 7 horas e 36 minutos, nós brasileiros só dormimos um pouquinho mais que as pessoas de Cingapura, com 7h24, e do Japão, com 7h30. Todos os outros 97 países consultados “dormem mais” que a gente. Outra pesquisa, publicada pela Universidade Federal de São Paulo em 2010, estima que nossa noite pode ser ainda mais curta: a maior parte voluntários paulistanos pesquisados relatou apenas 6 horas de olhos fechados por noite.
Tão ruim quanto dormir pouco é dormir mal. Os moradores da cidade São Paulo, por exemplo, se queixam mais de suas noites a cada ano. É o que apontam pesquisadores da Unifesp que, entre 1987 e 2007, repetiram, uma vez a cada década, questionários com grupos de aproximadamente 1.000 moradores da cidade. Em uma outra versão do estudo, feita com mais de 2.000 pessoas de 150 cidades de todo o Brasil, constatou-se que 63% dos voluntários apresentavam algum tipo de reclamação relacionada à qualidade ou ao tempo de sono. Ou seja, 6 a cada 10 pessoas dormem mal. E o problema não está só na maior cidade do País. Até 4 em cada 10 brasileiros sofrem com algum nível de insônia.
Além da insônia – que afeta mais gravemente as mulheres e as pessoas que sofrem de transtornos psíquicos –, há outros problemas de saúde que nos visitam à noite. É o caso da narcolepsia, da síndrome de pernas inquietas e dos transtornos respiratórios. Inclusive, é comum que uma mesma pessoa sofra com mais de um desses males, ao mesmo tempo.
As consequências de uma noite mal dormida vão além do cansaço no dia seguinte. Ficar sem dormir desregula o corpo inteiro. A pressão arterial sobe, os níveis de cortisol e adrenalina aumentam, e a contagem de células brancas dispara. As células brancas desreguladas causam um bug no sistema imunológico, e deixam você mais vulnerável a infecções. É normal que quem fica acordado muito tempo comece a se sentir meio bêbado. De fato, 25 horas seguidas de vigília podem fazer tão mal quanto uma intoxicação alcoólica; piora a memória e a capacidade de tomar decisões e de se expressar verbalmente, e aumenta a agressividade e a sensibilidade à dor. Isso sem contar as alucinações, que podem aparecer depois de alguns dias sem pregar os olhos.
Mas calma! Tudo isso tem cura. Se o motivo da vigília forçada for um distúrbio, há tratamentos que atenuam suas consequências. O ideal é sempre procurar um profissional de saúde especializado no tema. Agora, se as noites em claro acontecem por fatores externos (trabalho, estudo ou uma maratona de The Walking Dead, por exemplo), existe um remédio comprovado que reverte o cenário de horror que é a falta de sono: dormir. 🙂
De olhos bem fechados
E dormir é…? Os workaholics têm a resposta fácil: “perda de tempo”. Passar um terço da vida inconsciente parece mesmo desperdício. Mas é o contrário. Um tempo de sono abaixo do recomendado afeta diretamente a produtividade da população e interfere até no PIB de países
Estudo publicado no fim de 2016 por um instituto de pesquisas europeu acompanhou a rotina de habitantes em cinco países desenvolvidos (EUA, Canadá, Reino Unido, Alemanha e Japão). Sua conclusão foi que o tempo de sono reduzido gera um prejuízo de 680 bilhões de dólares por ano. Isso só nesses lugares.
Até os homens das cavernas já sabiam que dormir vale a pena. Para eles, pregar os olhos até significava estar vulnerável aos perigos da natureza por uma boa parte do tempo, mas também era a única maneira de economizar energia e descansar o corpo para as tarefas do dia seguinte. Hoje em dia, sabemos que os processos que levam ao sono e que acontecem durante a noite são bem mais complexos do que uma simples recarga de celular.
No meio do seu cérebro fica a glândula pineal, um órgão do tamanho de uma semente de laranja que, entre outras coisas, produz um hormônio chamado melatonina. Ele funciona como um sonífero natural, que faz efeito no seu corpo em ciclos de 24 horas, acompanhando o ritmo do sol. Quando escurece, o cérebro libera mais melatonina, e você fica mais sonolento. O nível do hormônio cai pela manhã, quando o dia clareia. Além de fazer adormecer, a melatonina também tem efeito antioxidante e atrasa o envelhecimento dos tecidos do corpo. Só que nossa rotina bagunça a mágica da natureza.
Estamos acostumados a assistir à TV e mexer no celular na hora de deitar. O corpo confunde a luz dos aparelhos eletrônicos com a luz do dia, e isso atrapalha o trabalho da glândula pineal. A falta de melatonina desregula o ciclo do sono. Sem sono, além de gastar mais energia do que deveria, o corpo fica sem sua dose diária de manutenção.
Enquanto dormimos, o cérebro descarta células mortas e moléculas da proteína beta-amiloide, cujo acúmulo atrapalha conexões neurais e pode resultar no desenvolvimento da doença de Alzheimer. Em outras palavras, nossa mente aproveita que as luzes estão apagadas para fazer uma faxina geral e jogar fora o que não é útil. Isso também funciona para as memórias.
Segundo a hipótese da homeostase sináptica (SHY, em inglês), criada por psiquiatras da Universidade de Wisconsin-Madison, o cérebro apaga algumas memórias enquanto dormimos. Isso acontece graças à liberação de ácido gama-aminobutírico, que enfraquece as ligações entre os neurônios que formam nossas lembranças. A escolha não é aleatória. O cérebro percebe quais são as memórias mais fortes – ou seja, quais delas têm muitas ligações com outras memórias antigas – e mira nas mais fracas. Assim, nos esquecemos do que o cérebro considera irrelevante e abrimos mais espaço para outras lembranças.
Essa faxina no departamento de memórias do cérebro acontece na terceira fase do sono – o tal sono pesado, que vem logo antes da fase em que começamos a sonhar. Talvez seja por isso que os sonhos às vezes pareçam memórias distorcidas, misturadas com desejos reprimidos e outros ingredientes ainda mais difíceis de explicar.
As quatro fases do sono
Tão importante quanto dormir pelo tempo apropriado é ter um sono equilibrado. Enquanto dormimos, o cérebro fica em constante atividade, e a frequência das ondas cerebrais oscila. Cada faixa de frequência corresponde a uma “fase” do sono. Ao longo da noite essas fases se alternam, e o cérebro cumpre tarefas específicas em cada uma. Distúrbios do sono atrapalham essa alternância, pois nos puxam de volta para a vigília diversas vezes.
Império dos sonhos
Dizem que se você sonhar com cobra pode ter certeza de que está sendo traído. Se você está pelado em público, é porque um segredo te atormenta. Seus dentes caíram? Mau agouro! Indica que alguém próximo vai morrer. Para a neurociência, no entanto, nada disso faz sentido. Os pesquisadores estão mesmo interessados é nos processos químicos e físicos que acontecem devido às aventuras surreais mirabolantes que sua mente cria. Mas não foi sempre assim
O estudo dos sonhos remonta a nossas origens. As civilizações mais antigas achavam que eles eram profecias e mensagens dos deuses. No entanto, no século 4 a.C, Aristóteles já duvidava disso. Para ele, o que acontecia no mundo real durante uma soneca é o que definia o roteiro do sonho. Exemplo: noites quentes criavam uma imagem mental de uma fogueira. Um pouco menos místicas, suposições como essas pipocaram ao longo do tempo. Mas levaria séculos até que a ciência se desenvolvesse para isolar os sonhos como objeto de pesquisas mais sérias.
Lá no finalzinho do século 19, a psicóloga americana Mary Calkins foi uma das primeiras a entrar na onda das pesquisas do sono. Um pouco inconveniente, ela começou a acordar seus pacientes quando percebia que eles estavam se mexendo e perguntava o que eles estavam sonhando. Suas conclusões vieram na forma de um estudo publicado em 1893. Ela percebeu que a maior parte dos sonhos acontecia na segunda metade do sono, e seu conteúdo tinha a ver com as experiências das pessoas ao longo do dia. Pouquíssimo tempo depois, Sigmund Freud iria mais fundo.
O pai da psicanálise dizia que, nos sonhos, nossos desejos reprimidos mais secretos se manifestam – mas nem sempre de um jeito fácil de entender. Uma imagem mental que nos ocorre durante o sono pode simbolizar uma série de vontades que preferimos censurar na vida real, mesmo sem sabermos. O impacto do trabalho de Freud foi imenso e dura até hoje. No entanto, o jeito como a psicanálise encara os sonhos está bem longe de ser unanimidade.
Nos anos 1950, um cientista da Universidade de Chicago percebeu que, durante um determinado momento do sono de seus filhos, os olhos deles não paravam de se mexer, mesmo fechados. A curiosidade virou um artigo científico revolucionário, publicado em 1953, que descrevia pela primeira vez a fase REM do sono. Logo de cara, essa fase foi associada aos sonhos. Duas décadas mais tarde, o psiquiatra James Allan Hobson, de Harvard, quis mostrar que sonho não tinha a ver com inconsciente coisa nenhuma. Para ele, as imagens que vemos enquanto dormimos são aleatórias, fruto da ação de neurotransmissores que ativam partes específicas do cérebro.
O debate sobre o funcionamento dos sonhos se estendeu por décadas, ora separando psicólogos e neurobiólogos, ora unindo ramos científicos diferentes com objetivos em comum. Como ainda não é possível entrar na mente de alguém para testemunhar, em tempo real e de forma nítida, quais são as imagens que se formam durante um sonho, nós nos contentamos com outras conclusões a respeito do tema. Por exemplo: já se sabe que o sono REM é essencial no aprendizado, pois consolida memórias recém-adquiridas. Como a maior parte dos sonhos acontece durante essa fase, é natural concluir que, sem eles, seria mais difícil reconhecer um rosto que você viu pela primeira vez ontem, ou se lembrar de um acontecimento corriqueiro, mas que pode ser útil amanhã.
O psicólogo e neurocientista finlandês Antti Revonsuo acredita que o ato de sonhar desenvolveu um papel fundamental na sobrevivência da espécie humana, já que sonhar com coisas perigosas deixou nossos antepassados mais espertos para os perigos da vida na natureza. Sidarta Ribeiro, neurocientista brasileiro, tem estudos que apontam na mesma direção: eles mostram que os sonhos, no mínimo, servem para que nossa mente se prepare melhor para inventar soluções criativas durante a vigília. Dessa forma, talvez faça mais sentido pensar no sonho menos como uma repetição surreal e misteriosa do nosso passado, e mais como um ensaio geral para o futuro.
Já que é para se preparar, não custa deixar um caderno e uma caneta perto da cama. Na próxima vez que for perseguido por uma cobra enquanto corre sem roupas e sem dentes por um corredor cheio de conhecidos, descreva sua aventura com o maior número de detalhes possível antes que as imagens aleatórias desapareçam no limbo da sua memória.
Grandes ideias que surgiram em sonhos
A mente humana é tão criativa que é capaz de criar imagens preciosas enquanto dormimos. Algumas viram relatos surreais. Outras nos ajudam a mudar os rumos da história da arte, da ciência e da tecnologia.
O despertar da força
Para o despertador, pouco importa se você dormiu oito horas seguidas ou foi incapaz de pregar os olhos durante a noite. Ele não dá a mínima se você está no ponto alto de um sonho bom ou se enfrenta o terror de um pesadelo. Quando chega a hora marcada para começar a enfrentar o dia e a musiquinha irritante inicia, a única opção costuma ser se levantar. Ou apertar o botão soneca e dormir mais uns minutinhos, é claro. O problema é que esse sono extra pode até atrapalhar sua vida
Acompanhe: dormir faz o nível de serotonina (o neurotransmissor do bem-estar) subir no seu corpo. Já o ato de acordar faz surgirem outras substâncias, como adrenalina e dopamina. Ativar a função soneca repetidas vezes causa uma confusão química no organismo. Mas acordar abruptamente de um sono profundo também não é a melhor opção. Nos primeiros minutos do despertar, seu corpo passa pelo que a ciência chama de “inércia do sono”. É um período em que estamos atordoados, incapazes de tomar decisões difíceis e nos expressar bem. Qualquer um que já tenha sido acordado no meio da noite por um telefonema ou perdido a hora de um compromisso de manhã reconhece a sensação. A inércia do sono dura entre cinco e 30 minutos, mas pode ser mais longa em quem já tem outros transtornos de sono.
Para acordar bem, de maneira saudável, é preciso dormir o suficiente. Isso já ficou claro. Mas o que é o suficiente? Para a Fundação Nacional do Sono dos Estados Unidos, depende da idade da pessoa. Recém-nascidos podem dormir até 17 horas por dia, sem problemas. Para adultos entre 18 e 64 anos, são recomendadas de sete a nove horas de sono. Por isso, ter o hábito de dormir menos de seis horas por dia não é algo para se orgulhar – é motivo de preocupação. Aquela história de dormir um pouquinho mais aos domingos para “recuperar” o sono perdido também não adianta. Os voluntários de uma pesquisa feita em 2013 que dormiram pouco de segunda a sexta e muito nos outros dias até se sentiram menos sonolentos, mas foram pior em testes de atenção do que as pessoas que têm um sono regrado.
É normal que duas pessoas tenham ritmos de sono diferentes – uma acorda naturalmente mais cedo e a outra se sente mais confortável dormindo e acordando mais tarde. A ciência reconhece essas diferenças, mas, no fim das contas, ter a possibilidade de contornar o horário padrão para o descanso ainda é um luxo acessível a poucos. Apesar da flexibilidade crescente que a tecnologia tem possibilitado, a gente sabe que ter um tempinho digno para o sono fica cada vez mais complicado no meio da rotina atribulada. E nada muda o fato de que dormir o suficiente é necessário e melhora a qualidade de vida no dia seguinte. Afinal, depois de passada a inércia do sono, uma rotina de trabalho ou estudo nos espera.
Uma pesquisa divulgada em março de 2016 na Review of Economics and Statistics, publicação do Massachusetts Institute of Technology (MIT), acompanhou a rotina de 1,8 milhão de estudantes durante sete anos nos Estados Unidos e concluiu que eles apresentam um desempenho melhor em provas quando assistem às aulas pela manhã, principalmente quando a disciplina é matemática. O resultado sugere que a mesma lógica pode ser aplicada em outros ambientes, como empresas e hospitais. Um estudo bem mais modesto, feito com 40 pessoas nos Estados Unidos, mostrou que um cochilo no meio do expediente aumentou a produtividade e diminuiu a frustração no ambiente de trabalho. Eis um sonho de todos.
Mas nada disso é regra. O hábito de dormir à noite, oito horas por dia, existe, em parte, por causa da jornada de trabalho consolidada na época da Revolução Industrial, que ajudou a moldar a rotina diária da sociedade ocidental. Se não existisse o tal horário comercial e não tivéssemos luz elétrica, talvez nossos hábitos de sono ainda fossem como na Idade Média. De acordo com o historiador A. Roger Ekirch, da Universidade Virginia Tech, nos EUA, no século 15, as pessoas dormiam em duas etapas. Deitavam-se quando escurecia, despertavam por volta da meia-noite, ficavam acordadas por mais duas horas e depois tornavam a dormir. Um estudo publicado no início dos anos 1990 concluiu que, com o tempo, voluntários confinados em alojamentos sem energia elétrica apresentavam padrões de sono similares aos dos antepassados medievais. Nesse intervalo entre os dois sonos, o corpo dos participantes do estudo até liberava prolactina, o mesmo hormônio que causa sensação de relaxamento depois do orgasmo. Isso é que é prazer em acordar.
Como você vive no século 21 e não pode escapar da rotina, precisa aprender a controlar seu sono. Já sabemos que dormir bem (e bastante) evita inúmeros problemas de saúde e melhora a memória, a capacidade de cognição e a produtividade. Todos aqueles outros efeitos colaterais de uma noite mal dormida, como mau humor, frustração e indisposição, também são comprovados pela ciência. Se vilões como a insônia e outros distúrbios não costumam visitá-lo à noite, o melhor jeito de enfrentar os golpes do despertador de manhã é se preparar dormindo. A recompensa vem no dia seguinte.
APRESENTADO POR MEDLEY. PRODUZIDO POR ABRIL BRANDED CONTENT
Reportagem: Otávio Cohen. Ilustrações: Zansky. Animações: André Murched. Edição: Emilãine Vieira e Thiago Araújo. Direção de arte: Marcelo Andreguetti.
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