“Estética Netflix”: por que o visual das produções do streaming é tão parecido?
Manual com boas práticas, exigências técnicas e arranjo financeiro da plataforma ajudam a explicar por que alguns de seus originais se parecem tanto.
Desde a última quinta (21), o almoço com a redação da Super tem sido monotemático: só conseguimos falar sobre O Problema dos 3 Corpos, série da Netflix baseada na obra do escritor chinês Liu Cixin.
Um rápido resumo, sem spoilers. Trissolaris orbita um sistema formado por três estrelas. Por causa disso, o planeta alterna entre períodos tranquilos e de desastres climáticos. Para fugir dessa instabilidade toda, os habitantes de lá decidem invadir e colonizar a Terra.
Mas o ataque não será exatamente uma surpresa para os terráqueos: um grupo de cientistas consegue detectar a movimentação trissolariana – o que pode salvar a humanidade.
Com orçamento de US$ 160 milhões (US$ 20 mi por episódio), O Problema dos 3 Corpos é a estreia mais cara já feita pela Netflix. A adaptação para as telas é dos produtores David Benioff e D.B. Weiss, a dupla por trás de Game of Thrones – que, no passado, também rendeu ótimas discussões na fila do quilo.
O sci-fi tem inspiração em conceitos científicos reais, personagens cativantes e espaço para (muitas) teorias – os produtores esperam que a série tenha quatro temporadas no total. Ótimo. Mas há um pequeno problema: a estética de O Problema dos 3 Corpos é idêntica a de outras produções da Netflix.
Em 2022, uma reportagem da Vice descreveu o chamado “Netflix look” (“visual Netflix”): tudo é ou escuro demais ou iluminado de forma muito artificial – que deixa boa parte das cenas (em especial, as gravadas em cenários internos) com um aspecto meio pálido.
Além disso, as cores normalmente estão mais saturadas que o normal, e há pouca variação entre os enquadramentos usados. Os mais comuns são o close-up médio (quando a câmera fecha entre o meio do tronco até o topo da cabeça do personagem) e o “dutch angle”, em que a câmera, levemente inclinada, deixa a imagem propositalmente torta.
No gif abaixo, tirado do filme Intrusion (2021), é possível comparar a transição de um close-up médio para um dutch angle. Além disso, a iluminação é bem similar a de outros filmes e séries que você já assistiu na Netflix. Saca só:
when the dutch angle hits. pic.twitter.com/oTp9fJRHLS
— Netflix Geeked (@NetflixGeeked) September 22, 2021
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O artigo da Vice, escrito por Gita Jackson, foi publicado após a estreia de Sandman, série que adapta os quadrinhos homônimos de Neil Gaiman. A produção foi elogiada pelo roteiro, mas cujo visual, segundo Jackson, ficou aquém da exuberância das HQs.
Não é problema nenhum ter uma estética própria, claro. Vários cineastas colocam suas assinaturas visuais em seus trabalhos (pense na simetria e nas cores de Wes Anderson, por exemplo). E há quem reconheça de longe um filme da A24 (estúdio queridinho dos cinéfilos, de filmes como Moonlight e Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo), tanto pela temática quanto pelo estilo de suas produções.
Mas, em doses cavalares, isso pode engessar as filmagens e uniformizar o conteúdo. A longo prazo, isso pode desgastar fórmulas de sucesso (caso do Universo Marvel) e descredibilizar produtoras – uma década atrás, o selo “original Netflix” era sinônimo de qualidade. Hoje, não mais.
Por ano, a Netflix, que está presente em mais 190 países, investe US$ 17 bilhões em conteúdo ao redor do mundo. O que explica, então, o visual tão parecido de muitas de suas produções?
Há dois motivos principais: um tecnológico e outro financeiro. Vamos explicar por partes.
A “ABNT” da Netflix
A Netflix possui um centro de ajuda ao colaborador (“Partner Help Center”), que reúne instruções e boas práticas para seus parceiros. Um dos documentos por lá diz respeito à captura de imagens e as câmeras aprovadas pela plataforma.
Pois é: há uma lista de câmeras que a Netflix exige que sejam usadas para 90% das filmagens de um filme ou série (para produções de não ficção, há uma flexibilidade maior). Essa lista aumentou consideravelmente nos últimos anos – mas, para alguns especialistas, ela ainda restringe as opções dos cineastas.
“Câmeras como a ARRI Alexa e a RED, que são algumas das poucas câmeras aprovadas pela Netflix, gravam uma imagem muito monótonas, sem contraste ou saturação”, escreve Alyssa Miller para o site No Film School, especializado na cobertura do show-biz. “Isso é feito para capturar as partes mais escuras e brilhantes da imagem, para que ela possa ser ajustada e colorida na pós-produção.”
Segundo a Netflix, a lista existe para garantir que as suas produções sejam feitas com o que há de mais moderno na tecnologia de captura de imagem. E é por isso que ela também exige que tudo seja gravado em definição 4K.
Imagens digitais são formadas por pequenos quadradinhos de luz – os pixels. Quanto mais pixels uma imagem tiver, maior será a sua definição. 4K quer dizer que uma imagem tem 4.096 pixels na horizontal x 2.160 na vertical. Haja quadradinho – e essa nem é a maior resolução que existe.
O problema: não é todo mundo que tem acesso a imagens desse tipo. Primeiro porque a Netflix só disponibiliza esse tipo de definição (que é mais pesada) em seus pacotes mais caros. Segundo porque os aparelhos de TV que exibem 4K ainda não são maioria. Resultado: o streaming precisa comprimir os vídeos para que todos tenham acesso ao conteúdo.
Isso distorce a imagem: os contornos dos elementos em cena e as sombras ficam muito marcadas, o que causa uma sensação estranha. No mundo real, as coisas não são perfeitamente delineadas.
Cadê a grana?
Outro motivo que pode explicar a “estética Netflix” é a forma como a empresa destina o seu investimento em conteúdo.
No mundo pré-streaming, artistas tinham outras fontes de renda além dos seus salários. Os contratos poderiam envolver participação na bilheteria do cinema ou, sobretudo no caso da TV, os chamados residuais: uma fração da grana obtida toda vez que há reprises de um programa.
Netflix e cia. bagunçaram esse esquema. Antes da greve do Sindicato dos Atores, em 2023, não havia acordos para além do salário. Então o holerite tinha que compensar. O resultado é que, apesar dos grandes orçamentos, boa parte da grana que a Netflix injeta no seu catálogo é destinada ao pagamento de suas estrelas.
O filme de ação Alerta Vermelho (2021), por exemplo, custou US$ 200 milhões. Destes, US$ 70 milhões serviram para contrarar o trio principal (Dwayne Johnson, Ryan Reynolds e Gal Gadot, que ganharam US$ 20 mi cada) e o diretor, Rawson Marshall Thurber (que embolsou US$ 10 mi).
A consequência desse sistema é que outras áreas (fotografia, direção de arte, escolha de locações) podem ficar com menos recursos para trabalhar. Isso somado à alta produtividade da Netflix pode ajudar a explicar o visual uniformizado.
A estética Netflix não é exatamente um problema, é bom ressaltar. Ela pode se encaixar perfeitamente, dependendo do gênero da obra e da intenção do diretor. Além disso, o guia de filmagem ajuda a organizar a estrutura internacional do streaming e pode minimizar a chance de problemas.
Mas esse fenômeno levanta discussões relevantes. Afinal, até que ponto as exigências da Netflix não tolhem o trabalho dos artistas? Talvez gravar tudo em alta definição não seja a maneira mais precisa de retratar as imprecisões do mundo.
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