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Vírus: O inimigo público número 1

Do mais banal resfriado ao flagelo da AIDS, o culpado é sempre a mesma criatura: o vírus

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h33 - Publicado em 30 nov 1987, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

O maior inimigo da vida não mede mais que trinta milionésimos de milímetro. Causa gripe, sarampo, paralisia infantil, varíola, AIDS – entre muitas outras agressões à saúde. Esse inimigo é tão peculiar que, além de microscópico, tem um lado vivo e um lado morto.

Como não se alimenta nem respira nem produz coisa alguma, não faz parte do mundo dos vivos. Mas,como é formado por um material genético básico – o ácido nucléico – e é capaz de multiplicar-se, não se pode negar-lhe a condiçào de criatura viva.

Essa criatura é o vírus, cuja única razão de existir parece ser a própria reprodução. Para isso, aproveita-se dos mecanismos das células onde se hospeda. Depois as sacrifica.

O vírus surgiu antes do homem, vencendo todos os obstáculos naturais à seleção das espécies. E ainda vence muitas batalhas na guerra sem quartel que a ciência moderna lhe move. São conhecidas cerca de mil espécies diferentes de vírus, responsáveis por 60 por cento das doenças em animais e plantas.

A cada passo descobre-se a presença de vírus onde não se suspeitava.

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Em 1980, por exemplo, o imunologista norte-americano Robert Gallo – um dos descobridores do vírus da AIDS- identificou um vírus, existente no Japão, na África e nas Ilhas do Caribe, que causa leucemia. Não é um caso isolado : sabe-se que cerca de 40 vírus tem a ver com certos tipos de câncer. O vírus pode até atacar a mente humana.

Médicos do Instituto de Saúde Mental dos Estados Unidos desconfiam que a esquizofrenia- um dos tipos mais comuns de loucura – pode ter causas viróticas. Um vírus foi encontrado no líquido espinhal de dezessete dos cinquenta esquizofrênicos examinados no início deste ano. Outra doença que talvez seja provocada por vírus é a esclerose múltipla – degeneração incurável do sistema nervoso, caracterizada por perda de memória e de coordenação motora.

No sangue de algumas pessoas, os cientistas identificaram um anticorpo então desconhecido muito parecido com o da AIDS. Os anticorpos são uma arma do organismo contra agentes estranhos como os vírus.

Pode-se compará-los a mísseis teleguiados: são feitos sob medida para determinado alvo – portanto, um anticorpo diferente supõe a existência de um vírus diferente.

Na pesquisa, a maioria das pessoas com o novo anticorpo tinha sintomas de esclerose múltipla. Isolado o novo vírus, batizado Smon, verificou-se que ele existia no líquido espinhal de um terço dos esclerosados.

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Fica muito difícil, porém, diagnosticar se um vírus é de fato novo ou se nova é apenas a sua descoberta. É que o vírus é formado por um ácido nucléico, base de qualquer célula. Tais ácidos formam as chamadas moléculas de aminoácidos. Estas reunidas, constroem as proteínas de que são feitos os seres vivos.

Nas células existem dois ácidos nucléicos: o DNA, ou ácido desoxirribonucléico, que guarda toda a bagagem hereditária daquele organismo; e o RNA, ou ácido ribonucléico, responsável pelo bom funcionamento dos componentes das células. Mas com o vírus é diferente: só possui ou DNA ou RNA. Ele, na verdade, nada mais é que um novelo de um único ácido nucléico, envolvido numa fina capa de proteínas. Não se sabe se surgiu antes dos seres considerados vivos — sendo então uma forma primitivíssima de vida—ou se é resultado de uma espécie de retrocesso.

“Dizer quem chegou primeiro é discutir sobre a origem do ovo e da galinha”, compara o professor Renato Mortara, da Escola Paulista de Medicina, que passou cinco anos na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, estudando essas minúsculas criaturas. Mortara, um paulista de 32 anos, admite que “o vírus poderia ter surgido a partir do próprio homem?”. Não é impossível: assim como a doença chamada câncer é uma reprodução descontrolada das células, uma célula poderia passar por um processo de mutação, até restar apenas a unidade básica da forma original, ou seja, o seu ácido nucléico.

Essa “fantasia”, como diz o professor Mortara, é um exemplo das teorias segundo as quais os vírus seriam conseqüência de um processo de regressão da vida. Seja como for, vírus e seres humanos convivem há muito tempo. A múmia de Ramsés II, faraó do século XIII a.C., mostra cicatrizes de varíola doença causada por vírus, que geralmente ataca crianças e hoje pode ser evitada com vacina.

Assim como a varíola, as doenças viróticas em geral permaneceram um mistério até a invenção do microscópio eletrônico na década de 40. Com seus raios luminosos, o equipamento permite ver o vírus. Mas o homem desconfiava da existência do vírus antes de conseguir enxergá-lo.

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Em 1892, 0 microbiologista russo Dmitry Ivanovsky (1864-1920), ao estudar uma doença na planta do tabaco, ficou espantado ao verificar que, injetando a seiva filtrada de uma planta doente em outra sadia, esta última também adoecia.

O complicado processo de filtragem pelo qual passou a seiva deveria ter contido todas as bactérias. Mas, se mesmo filtrada a seiva continuava infecciosa, deveria existir algo ainda menor que as bactérias — até então os menores seres vivos que se conhecia. Ivanovsky falou em ultrabactérias. Outros cientistas, que também fizeram experiências semelhantes em plantas e animais, começaram a falar em “líquido infeccioso vivente”. Eles não tinham como ver que o líquido era, na realidade, uma supensão contendo milhares de vírus. Em 1917, o microbiologista canadense Félix d’ Herelle observou no microscópio que placas de bactérias de repente começavam a desaparecer. Concluiu que existiam criaturas ainda menores que as bactérias por elas destruídas: foram chamadas bacteriófagas.

Na verdade, o que existe são vírus que preferem a célula de determinada bactéria a qualquer outra. Mas d’Herelle, no seu microscópio comum, que aumentava apenas 360 vezes, não conseguia vê-los. Trezentos anos antes, em 1617, o biólogo holandês Van Leeuwenhoec, que descobriu as bactérias, impressionou a todos ao afirmar que algumas centenas de bactérias caberiam num grão de areia. Pois bem: dentro das menores bactérias existentes cabem cerca de cem vírus da poliomielite ou dez vírus da gripe.

Os vírus- palavra que em latim significa veneno — foram isolados e fotografados pela primeira vez na década de 50. Desde então, a pesquisa na área da virologia caminha em ritmo acelerado. Logo se descobriu que se trata de entes ao mesmo tempo primitivos e sofisticados, diante dos quais o organismo também revelou uma surpreendente capacidade de defesa. Na presença do vírus o corpo transforma-se em campo de batalha. E, como em toda guerra, a vitória costuma ser de quem tem a melhor estratégia. Cada vírus tem a sua. Por isso, em virologia, cada caso é um caso.

Um organismo pode ser comparado a uma fábrica de luvas: produz desde luvas microscópicas até gigantes, com diferenças milimétricas entre um tamanho e outro. Cada luva — ou anticorpo — veste perfeitamente um vírus ou antígeno— e só aquele. Muitos anticorpos vivem e morrem ingloriamente sem encontrar o antígeno para o qual foram feitos e travar com ele uma batalha de vida ou morte. Não se trata, porém de um desperdício da natureza: para o organismo é melhor ter um de cada a ter vários só de alguns.

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Se assim é, qual a vantagem de se vacinar contra uma doença para a qual já se tem defesa? A vantagem está na velocidade. Ou memória, como dizem os virologistas. A vacina é composta sempre de vírus inativados (mortos) ou atenuados (um segmento do vírus). Se fosse composta de vírus ativos e inteiros, a pessoa vacinada pegaria a doença, o que seria um contra-senso. A função da vacina é chamar a atenção do anticorpo que, despertado, briga com o “falso vírus” da vacina — o suficiente para ter na memória (dai o termo) a estratégia adequada quando entrar em cena um vírus autêntico: uma forma de multiplicar-se rapidamente para defender o organismo a tempo.

Chegar a tempo significa combater o vírus antes que ele alcance o núcleo da célula, quando domina a situação. Todo vírus é um especialista — tem preferência por determinado tipo de célula. Assim, o vírus da hepatite sai em busca das células do fígado; o vírus do resfriado prefere as células do aparelho respiratório. Essa especialização se deu ao longo da evolução: o capsídio que envolve o ácido nucléico do vírus se encaixa perfeitamente apenas na cavidade de um único tipo de célula.

Desprevinida, a célula recebe o vírus amigavelmente, sem perceber que ele — tão parecido com ela mesma — é um estranho cheio de más intenções. Assim, o hóspede, hipócrita e insidioso, trai o anfitrião: corre para o núcleo, uma espécie de cérebro da célula, e lhe toma os comandos. A célula passa a fabricar compulsivamente mais e mais vírus — até que de tão cheia ela estoura e os filhotes invadem as células vizinhas.

No caso dos vírus que possuem RNA, os chamados retrovírus, há um servicinho extra: uma enzima, localizada dentro do invólucro do vírus tem de transformar o RNA em DNA, pois este é o único ácido capaz de entrar no núcleo. Drogas hoje muito faladas como a AZT, buscam dificultar a vida do retrovírus da AIDS, eliminando essa enzima. Sem ela, o retrovirus leva muito mais tempo até ser traduzido para DNA e assim invadir o núcleo da célula.

Qualquer vírus deixa rastros, como pedaços do seu capsídio presos na membrana celular. O organismo, ao sentir a presença estranha, envia glóbulos brancos do sangue, chamados macrófagas que literalmente engolem a célula infectada. Se for tarde, ou seja, se a área infectada já tiver crescido muito (o vírus da poliomielite produz cem filhotes em três horas, por exemplo), as células T existentes no sangue começam a fabricar os anticorpos sob medida, que matam ou neutralizam os vírus. A produção desses anticorpos demora de três a sete dias. Só que o vírus da AIDS corta o bem pela raiz: ataca justamente as células T.

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Quando isso acontece, abre-se o espaço para uma série de infecções oportunistas. Elas não apareceriam caso as células T funcionassem normalmente. Por exemplo, elas fabricam anticorpos contra os vírus da herpes, que ficam hibernando com apenas cinco de seus setenta genes em funcionamento. Às vezes, fatores tão diversos como queimaduras solares ou estresse acordam os vírus da herpes. Mas, no caso da AIDS. os vírus acordam por falta da vigilância implacável dos anticorpos.

“A AIDS deve ter surgido pela mutação de um vírus já existente”, opina o doutor Alexandre Vranjac, diretor do Centro de Controle Epidemológico de São Paulo. A mutação, segundo ele, é um recurso de sobrevivência do vírus .” 0 vírus da gripe é um dos mais mutantes” , exemplifica. De fato, quanto mais comum o vírus, maior o número de pessoas imunizadas por terem contraído a doença. Logo, ou o vírus muda, alterando um pouco a ordem de seus genes, ou está condenado a desaparecer.

O vírus da AIDS é ainda mais mutante que o da gripe. Cada geração não dura sequer um mês . Portanto, para se produzir uma vacina contra ele, seria preciso saber qual a sua próxima forma. “A vacina”, explica Vranjac, “só é eficaz quando tomada antes”. É isso o que mais intriga nos vírus — estão sempre prontos a trocar de máscara e nos enganar de novo.

 

 

Para saber mais:

Os defensores do corpo humano

(SUPER número 7, ano 2)

 

Aids hoje

(SUPER número 7, ano 6)

 

No encalço dos microassassinos

(SUPER número 7, ano 9)

 

Aids, a 1% da cura

(SUPER número 10, ano 10)

 

Eles voltaram

(SUPER número 6, ano 11)

 

 

 

Sob pressão da AIDS

Como só costuma acontecer em situações de crise, a busca da cura para a AIDS mobiliza cientistas no mundo inteiro. Surgem novas teorias e técnicas — algumas delas verdadeiramente fantásticas. O físico alemão Jonathan Tennenbaum, que trabalha para o governo norte-americano, anunciou em setembro último a criação de um aparelho a laser, capaz não só de realizar 1200 testes por dia mas também de localizar qualquer microorganismo invasor existente no corpo, lendo a forma das células através da pele. O microrganismo ou bactéria, inclusive o da AIDS—é identificado por um computador. “Conseguimos ver a impressão digital do vírus”, diz Tennenbaum.

Sem dúvida, a área mais quente nas pesquisas é a da engenharia genética , que tenta fazer do virís um aliado. Inoculando dois vírus inofensivos em animais, os cientistas já provaram que podem originar um terceiro vírus, fatal. Agora, formulam-se teorias sobre a possibilidade de se criar uma espécie de antivírus.

O professor da Escola Paulista de Medicina. Renato Mortara, acha que isso só será possível daqui a décadas. “Por enquanto”, receia ele, “com tantas incógnitas sobre vírus, poderíamos criar um antivírus para a AIDS que por sua vez provoque outra doença qualquer.” Já o doutor Alexandre Vranjac, do Centro de Controle Epidemiológico de São Paulo, é mais otimista: “Nessa teoria está o daqui-pra-frente da virologia”.

 

 

 

 

 

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