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O relógio de 10 mil anos

Em uma montanha no Texas, com US$ 42 milhões fornecidos pelo dono da Amazon, engenheiros estão construindo uma máquina de 150 metros de altura para desafiar os limites do tempo: ela deverá sobreviver, funcionando sozinha, pelos próximos dez milênios.

Por Bruno Garattoni e Maurício Brum
Atualizado em 26 out 2022, 13h58 - Publicado em 20 out 2022, 17h16

Texto Bruno Garattoni e Maurício Brum
Ilustração Mari Andrello
Design e colagens Natalia Sayuri Lara

OO Homo sapiens sabia fazer cerâmica, tinha domesticado alguns animais, vivia em assentamentos e já praticava a agricultura: estava começando a plantar trigo e cevada na Mesopotâmia. Mas levaria milênios para inventar a escrita – ainda estava na pré-História. Dez mil anos atrás, o mundo atravessava o período Neolítico, último estágio da Idade da Pedra (ela se estenderia por mais 3.500 anos, até que a humanidade aprendesse a derreter e moldar metais). Se uma pessoa daquela época viajasse no tempo e surgisse entre nós, teria enorme dificuldade em entender as coisas. Talvez achasse que estava na presença de deuses, ou simplesmente delirando.

Dez mil anos é uma distância extrema, abissal, intransponível. E isso também vale para as obras humanas. Até as civilizações mais poderosas acabaram reduzidas a ruínas – e nada do que elas criaram sobreviveu como era. Sempre foi assim, e sempre vai ser.

Sempre vai ser? Dentro de uma montanha, em um ponto remoto do Texas, um grupo de engenheiros está construindo uma máquina para tentar superar esse limite. Trata-se de um relógio, que combina ideias e tecnologias radicais para tentar o impossível: sobreviver, funcionando, pelos próximos dez mil anos.

Ele se chama Clock of the Long Now, pesa mais de 5 toneladas e foi idealizado pela Long Now Foundation, um grupo criado nos EUA – o “longo agora” presente em ambos os nomes é um convite ao pensamento de longuíssimo prazo, e uma referência à perenidade da inteligência humana.

A construção começou em 2018 (ou “02018”, como preferem seus criadores), e está sendo financiada por Jeff Bezos, o multibilionário dono da Amazon, que já investiu US$ 42 milhões no projeto.

Apesar de sua enorme ambição – ou talvez por causa dela – o relógio é envolto em sigilo. A Long Now Foundation não fala sobre ele (contatada pela Super, não quis conceder uma entrevista ou fornecer informações a respeito do projeto), e também não há certeza sobre o local da máquina.

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Sabe-se apenas que ela está sendo construída em uma montanha perto de Van Horn, cidadezinha de 2 mil habitantes no extremo oeste do Texas, numa área desabitada pertencente a Bezos: o Corn Ranch, que abrange gigantescos 670 km2 (quase metade do tamanho da cidade de São Paulo) e também é usado em testes de foguetes da Blue Origin, a empresa aeroespacial do bilionário.

Dentro da montanha, foram escavados túneis e uma coluna de 150 metros, alta o suficiente para abrigar o mecanismo – que estará totalmente protegido de intempéries e catástrofes climáticas. A localização exata é mantida em segredo, para que a obra fique a salvo de tentativas de vandalismo e (vai saber) até guerras.

Ele não será apenas o maior e mais caro relógio já construído: também será o computador mais lento e resistente de todos os tempos. Um computador mecânico, capaz de exibir a posição dos astros e realizar correções periódicas do tempo, sincronizando com a luz solar (veja infográfico abaixo).

Ilustração do relógio.
Clique aqui para abrir o infográfico. (Natalia Sayuri Lara/Superinteressante)

 

Curiosamente, o relógio nasceu na cabeça de um engenheiro que fez carreira no sentido oposto: projetando supercomputadores cada vez mais rápidos. Ele se chama Danny Hillis, e nos anos 1980, após se formar no MIT, virou um dos pioneiros da computação paralela (que usa milhares de CPUs simultaneamente).

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Ao mesmo tempo em que tentava descobrir formas de acelerar o processamento, ele mergulhava nas reflexões sobre o tempo. Em 1986, publicou um dos textos fundadores do movimento que ficaria conhecido como Long Now.

“Quando eu era criança, falavam do que aconteceria no ‘ano 2000’. Agora, trinta anos depois, continuam falando disso. O futuro tem encolhido, ano a ano, ao longo da minha vida”, escreveu. Em um pensamento típico do fim do último milênio, parecia que a humanidade estava se aproximando de um ápice. Na década de 1980, era difícil imaginar o que viria depois do ano 2000 – fosse logo após a virada, fosse séculos mais tarde.

Hillis queria mudar isso. Em 1996 (ops, 01996), seu sonho já havia conquistado alguns adeptos, que juntos fundaram a Long Now Foundation. Entre eles estava o escritor e futurólogo Stewart Brand, que era uma verdadeira lenda no Vale do Silício: nos anos 1960, ele criou o Whole Earth Catalog, um manual de tecnologia e sustentabilidade que vendeu 3 milhões de exemplares (e foi definido por Steve Jobs como “o Google em papel, 35 anos antes de o Google existir”). Nos anos 1980 fundou a WELL, a primeira comunidade de fóruns online.

A influência de Brand acabou atraindo Jeff Bezos, que se juntou ao projeto em 2005. O dono da Amazon mudou o local do relógio (antes, a máquina iria ser instalada em uma montanha do Great Basin National Park, no estado de Nevada) e deu dinheiro para que o projeto prosseguisse.

Hillis se inspirou em Stonehenge, o círculo de pedras erguido há cinco mil anos no sul da Inglaterra, e idealizou uma estrutura que pudesse ser, ao mesmo tempo, “um mecanismo e um símbolo fundador”.

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Uma das teorias sobre Stonehenge afirma que suas pedras serviam para marcar a passagem do tempo, alinhando-se ao Sol e às fases da Lua em diferentes épocas, mas não há como saber ao certo – pois a estrutura foi criada por um povo que não deixou registros. Em certo nível, isso também pode acontecer com a sociedade atual  e seu relógio de 10 mil anos.

“Civilizações inteiras vão surgir e acabar”, declarou Jeff Bezos à revista Wired em 2011, quando começou a escavação da montanha no Texas. Há um detalhe curioso envolvendo essa entrevista. A revista mantém online todos os textos publicados desde sua fundação.

Mas a reportagem com Bezos desapareceu em 2021 (ela ainda pode ser acessada pelo Internet Archive, que periodicamente coleta e armazena cópias de todas as páginas da web). Talvez porque o bilionário tenha feito uma previsão um tanto desagradável: “Ao longo da vida útil deste relógio, os Estados Unidos não existirão mais”.

Desagradável, mas realista. Foi o que aconteceu com todos os impérios ao longo da história. Mas, mesmo se os EUA escaparem a esse destino, e a civilização humana como um todo não sofrer nenhum colapso nos próximos dez milênios, haverá outro risco: a obsolescência.

O relógio pode ser impossível de consertar, caso precise de alguma manutenção, ou mesmo de usar – as instruções de operação da máquina poderão se tornar algo tão cifrado e enigmático, para as pessoas do futuro, quanto os hieroglifos do Egito Antigo (que só puderam ser decifrados por arqueólogos a partir de 1799, com a descoberta da Pedra de Roseta).

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Para tentar contornar esses problemas, Hillis desenhou um sistema inteiramente mecânico, sem nada eletrônico. (Um computador digital estava fora de cogitação, já que a evolução natural do software fatalmente tornaria seu funcionamento incompreensível para os humanos do futuro.)

O princípio é trivial: a lenta queda de um peso aciona um pêndulo, cuja oscilação marca o tempo e movimenta as engrenagens do relógio. Na prática, a coisa não é tão simples assim, a começar pela questão da durabilidade.

Nenhum material conhecido, por mais resistente que seja, foi testado ao longo de 10 mil anos de uso contínuo. O atrito entre as peças é um problema inevitável. Por isso, o pêndulo e as engrenagens são feitas de titânio e aço inoxidável 316L (uma liga que contém ferro, cromo e molibdênio e é usada em navios e equipamentos de laboratório, por ser altamente resistente à corrosão).

Os rolamentos centrais do mecanismo são de nitreto de silício, um tipo de cerâmica extremamente duro. E o mecanismo será envolto por uma barreira de proteção, para evitar que a entrada de poeira e detritos aumente o atrito entre as peças.

Mas o principal trunfo do relógio contra o desgaste é a sua lentidão. O pêndulo do sistema oscila a cada 10 segundos. Só que as engrenagens do relógio são bem grandes, com até 2,4 metros de diâmetro cada uma. Elas têm muitos dentes – e, por isso, conseguem registrar a passagem do tempo se movendo bem pouco, o que ajuda a reduzir o atrito.

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Na prática, é como se o relógio só fizesse “tique” uma vez por dia. Estima-se que essa lerdeza deverá decuplicar a vida útil dos materiais, no mínimo. Mesmo assim, os construtores do relógio pretendem deixar algumas peças de reposição armazenadas em galerias subterrâneas ao redor do relógio – elas poderão ser usadas, no futuro, para consertá-lo.

O mostrador não exibe o dia e o horário de forma constante: ele só ganha vida se alguém consultá-lo, o que é feito acionando uma grande manivela (veja no infográfico). Dependendo do estado de carga do relógio, ou seja, a altura em que o peso se encontra, poderá ser necessário girar a manivela por até 8 horas antes que o display entre em ação. É uma medida para economizar energia, e evitar que a contagem do tempo se perca.   

O display, também mecânico, trará a posição do Sol, da Lua e de algumas estrelas, bem como indicações do ano e do século. E o horário, claro. A cada vez que é consultado, ele toca uma musiquinha – produzida por um conjunto de dez sinos, que são capazes de gerar 3,5 milhões de melodias diferentes.

O peso que fornece energia para o relógio tem 4,5 toneladas. Ele desce muito lentamente, girando sobre um eixo e acionando um mecanismo que movimenta as engrenagens da máquina. Mas, se nada for feito, o peso eventualmente chegará ao chão, e o relógio vai parar.

Para evitar que isso aconteça, ele precisa ser empurrado de volta para cima, o que será feito por um sistema baseado na energia solar. O calor do sol entra por uma janela, escavada na montanha, e aquece uma câmara cheia de ar. O ar quente se expande, pressionando um pistão que aciona um mecanismo empurra o peso de volta para cima.

Talvez você esteja pensando: mas hein? Será que realmente dá para suspender um peso de 4.500 kg, mesmo que só um pouquinho, usando ar aquecido pelo Sol? Os criadores do relógio dizem que sim. E o mesmo sistema é usado para acertar o horário.

Quando a câmara de ar alcança a temperatura máxima, o relógio “entende” que aquele é o momento em que o Sol está mais forte – e, portanto, é meio-dia. O local onde o relógio está sendo construído é de clima desértico, com muito sol e pouquíssima chuva.

Colagem com uma montanha, relógios, escavadeira, engrenagens e Jeff Bezos.
A entrada de Jeff Bezos no projeto garantiu dinheiro para a obra. Mas também atraiu críticas. (Natalia Sayuri Lara com fotos da Getty Images/Superinteressante)

Só saberemos se esses sistemas realmente vão funcionar quando o relógio for inaugurado – em uma data que a Long Now não informa. As últimas imagens divulgadas pela fundação, em 2018, mostram uma obra bastante adiantada, com o poço totalmente escavado, peças prontas e engrenagens já sendo encaixadas.

Mas não é impossível que o relógio tenha apresentado problemas durante a montagem ou nos  primeiros testes (talvez devido a erros no desenho dele, inclusive) e os engenheiros estejam tentando corrigi-los.

Alguns protótipos em miniatura foram construídos ao longo dos anos, e permitem ter uma noção de como será a obra final. Um deles, que está exposto no Museu de Ciências de Londres – e é o mostrado na imagem que abre esta matéria –, possui duas torres com pesos. A versão final do relógio utilizará apenas um.

O teste do tempo

Quando a ideia do relógio surgiu, a maior preocupação de seus criadores era descobrir como garantir a sobrevivência dele por tanto tempo. Hoje, os desafios parecem ter incluído também a defesa do próprio projeto.

Isso porque, após a entrada de Jeff Bezos, a opinião pública mudou: muitas vezes, o relógio de 10 mil anos é citado pejorativamente como mera vaidade de um ricaço, que poderia fazer bem mais pelo futuro investindo no combate ao aquecimento global.

Também há quem diga que a Amazon, com seus estímulos ao consumo rápido, vai na contramão do pensamento de longo prazo proposto pela Long Now Foundation.

O projeto parece ter se fechado ao público em nome da autopreservação, adquirindo um ar mais secreto após o entusiasmo de 2018. Informações sobre o estado atual das obras, ou se Bezos gastou mais dinheiro do que o anunciado inicialmente, não vêm sendo divulgadas com a mesma regularidade de outros tempos.

Mas os envolvidos com o projeto costumam comentar, extraoficialmente, uma ou outra coisa sobre o relógio. Sabe-se que a pandemia atrasou a construção. Em outubro de 2021, um repórter da revista americana Noema chegou a participar do retiro anual da Long Now Foundation – que acontece no mesmo local de Nevada onde, antes da entrada de Jeff Bezos no projeto, eles pensavam em construir sua engenhoca.

Ao redor da fogueira, não se falou muito sobre o relógio. Mas os representantes da Long Now Foundation pareciam querer se dissociar do projeto, dizendo que a fundação é “muito mais” do que ele. 

Os criadores da máquina afirmam que hoje seu principal objetivo é estimular a reflexão sobre o futuro, e enxergam o relógio como uma forma de garantir que essa ideia continue cativante e não desapareça tão cedo. Fale bem ou fale mal, mas fale do relógio – e pense em como o mundo será daqui a 10 mil anos.

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