Brasil tipo exportação
Quer combustível ecológico,softwares rebeldes e tecnologias cobiçadasno Primeiro Mundo? É por aqui
Marcelo Campos e Alexandre Versignassi
“O Brasil não é um país sério”, teria dito o presidente francês Charles de Gaulle (1890-1970) na década de 60. Mas se ele estivesse vivo e resolvesse assistir à última edição das 24 Horas de Le Mans talvez mudasse de opinião. Ali, na corrida mais tradicional da França, um carro se destacava sobre a concorrência. E não só por ter alcançado 318 km/h de velocidade máxima, a segunda maior da competição, mas por fazer história: era a primeira vez que um carro movido a bioetanol completava a prova.
Bioetanol? Se você não sabe o que é isso, a conceituada revista britânica New Scientist, que fala com entusiasmo desse novo combustível, pode dar uma mãozinha: “As vantagens dele sobre a gasolina são claras. O bioetanol emite 25% menos monóxido de carbono, 35% menos óxido de nitrogênio e, mais importante, é produzido a partir de plantas, o que ajuda na retirada de gás carbônico da atmosfera”.
Gostou? Pois esse combustível “verde” que está chamando a atenção dos europeus é ele mesmo: o nosso álcool combustível – mas com um nome bem mais bacaninha.
E o nosso lado “sério” vai mais longe. Mesmo sendo o único país onde um combustível alternativo pode ser encontrado em qualquer posto, somos quase auto-suficientes em petróleo. Não por uma bênção da natureza, já que perfurar poços convencionais por aqui nunca rendeu grande coisa. No nosso caso, o buraco ficava mais embaixo. Bem mais. Há 20 anos, boa parte do óleo brasileiro estava parada em jazidas marítimas a mais de 400 metros de profundidade. Para o resto do mundo, arrancar petróleo dali era tirar leite de pedra – não existia tecnologia para explorar tão fundo. Não existia, diga-se. Pois agora tem, e foi toda desenvolvida aqui. Hoje, 85% da nossa produção de petróleo sai das nossas 98 plataformas marítimas.
Um caso bem parecido com esse do álcool e do petróleo também tem a ver com energia. Graças a uma mãozinha da natureza, 97% da eletricidade que consumimos vem das cerca de 600 usinas hidrelétricas instaladas no país.
Mesmo assim, o Brasil acaba de entrar no seleto clube de países com tecnologia para fabricar urânio enriquecido, o combustível das usinas nucleares. Hoje, 16% da energia do planeta vem dos reatores – em alguns países, como a França do nosso caro De Gaulle, a fatia chega a 79%. Esses consumidores de energia nuclear importam, juntos, 18 bilhões anuais em urânio enriquecido. Como só oito nações (fora o Brasil) podem fazer esse combustível por conta própria, o mercado é mais do que promissor. Detalhe: o sistema criado aqui faz o dos Estados Unidos parecer sucata. E não pára por aí. Nossa biotecnologia promete safras mais resistentes. Nossa informática compra briga contra megacorporações internacionais e vem ganhando respeito no exterior por causa disso. No fim das contas, o fato é que a tecnologia brasileira nunca foi vista com tanta seriedade lá fora. E nas próximas páginas você vai saber por quê.
Petróleo – Lá no fundo
Somos quase auto-suficientes em petróleo: em 2003, consumimos 1,8 milhão de barris por dia e produzimos 1,5 milhão. Não é pouca coisa: há dez anos só extraíamos a metade do necessário para suprir o consumo interno. Foi nessa época que começou a maior virada petrolífera do país. Desde o início dos anos 80 a Petrobras sabia que a costa brasileira tinha bastante petróleo. O problema é que uma parte considerável não tinha como ser extraída: estava a mais de 400 metros de profundidade. Nem as plataformas do Atlântico Norte, as mais modernas daquela época, chegavam tão fundo. O único jeito era desenvolver uma tecnologia por conta própria. E foi o que a empresa fez. Os estudos começaram em 1986, com o objetivo de criar um sistema inédito capaz de extrair a até mil metros de profundidade. No início dos anos 90 o país começou a quebrar seus primeiros recordes mundiais nesse quesito e ainda temos a base mais profunda do planeta, a do Campo de Roncador, no litoral norte do Rio de Janeiro, que chega a 1 853 metros. Hoje, 23% das reservas brasileiras estão nessa faixa, entre mil e 2 mil metros, e a estimativa é que pelo menos metade do óleo que o país encontrar no futuro vai sair dessa fatia. Mais: o objetivo agora é desenvolver sistemas capazes de chegar a uma profundidade de 3 quilômetros. Com isso, além de suprir auto-suficiência, a Petrobras planeja chegar a uma média de 1,1 milhão de barris exportados por dia até 2010 – para dar uma idéia, isso equivale à metade de toda a produção atual do Kwait, que tem a quarta maior reserva do mundo. Claro que a idéia não é competir com os gigantes petrolíferos. O Brasil é o 10º colocado em reservas de petróleo, com 10,6 bilhões de barris “esperando” para serem extraídos. Canadá e México vêm logo na frente, com 16 bilhões de barris. E os Estados Unidos ficam em 7º, com 30,7 bilhões. Quer dizer: mesmo que descubramos muito mais poços, é virtualmente impossível ultrapassar os grandes. Mas, se compararmos o Brasil com produtores mais modestos, dá para ter uma idéia melhor do que tem sido feito por aqui. Há dez anos, nossa produção era igual à da Argentina. Agora extraímos o dobro deles. E, dadas as dificuldades, não é exagero dizer que construímos esse placar só com gols de bicicleta.
Voto eletrônico – Urna lá
Nossa urna eletrônica já virou artigo de exportação: em janeiro o Brasil vendeu 13 mil delas para a República Dominicana, por 62 milhões de dólares. A ilha da América Central vai tocar suas primeiras eleições informatizadas em 2006 – a coisa está se popularizando, e nenhum país ajudou mais nisso do que este aqui. Quando a Justiça Eleitoral resolveu adotar um sistema eletrônico para agilizar as votações, em 1995, só encontrou algo parecido na Bélgica e em algumas partes dos Estados Unidos. De qualquer forma, o projeto da nossa urna foi todo desenvolvido aqui. Elas estrearam rápido: nas eleições do ano seguinte, mas só nas cidades com mais de 200 mil habitantes. A prova final veio em 2000, quando o país organizou a primeira votação 100% eletrônica do planeta. Com elas, deu para esquecer traumas como o da apuração do primeiro turno das eleições presidenciais de 1994 no estado do Rio de Janeiro, que demorou 14 dias. A urna, aliás, tem vantagens mais inusitadas do que a óbvia rapidez na apuração. Hoje temos só metade de votos brancos e nulos da época em que só havia cédulas. Na prática, um aumento de 3,5% a 4,5% na quantidade de votos válidos. Ninguém sabe se é porque a urna é mais fácil de usar ou porque as pessoas gostam de ver a foto do candidato na tela. Seja como for, pode ser que a coisa fique ainda mais informatizada do que já é, como profetiza o secretário de Informática do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Paulo Camarão: “Talvez em 2010, 2020, a gente possa votar pela internet”.
Álcool – Combustível verde
Se você pode escolher entre colocar álcool ou gasolina no tanque quando pára num posto, é um privilegiado: essa possibilidade só existe no Brasil. Além de nenhum outro país ter conseguido adotar comercialmente um combustível 100% livre de petróleo, os carros que funcionam com qualquer mistura de álcool e gasolina também são coisa nossa: sua tecnologia foi desenvolvida aqui. E graças a ela o álcool voltou à moda. Afinal, nem faz muito tempo que ele estava com o pé na cova. Foi assim: o embrião da idéia nasceu em 1974, quando o preço do petróleo quadruplicou. Com o susto, o Brasil foi o primeiro a tentar algo radical: encontrar um substituto para a gasolina. O escolhido foi o álcool de cana, menos eficiente no motor que a gasolina, mas que tinha como ser produzido em grande quantidade. O Estado, então, bancou a ampliação das lavouras e a reforma de usinas. O primeiro carro a álcool chegou em 1980. E a idéia vingou: quatro anos depois, 94,4% dos automóveis zero-quilômetro eram a álcool. Nessa época, chegamos a economizar 12 bilhões de litros de gasolina por ano. Mas a festa acabou rápido: em 1989 os usineiros preferiram transformar boa parte de sua cana em açúcar, que estava em alta no mercado internacional. Os postos ficaram sem combustível, e os consumidores, sem confiança. Tanto que no fim dos anos 90 a participação dos modelos a álcool no mercado de carros novos tinha caído para 0,06%. A salvação só veio com os carros bicombustível, em 2003. No ano passado a participação foi de 26%, e continua subindo. Além de nos deixar menos dependentes do petróleo, o bioetanol – como os europeus preferem chamar os combustíveis à base de álcool – pode ser considerado “carbonicamente” neutro: o dióxido de carbono que ele solta é compensado pela quantidade de gás carbônico que as plantações de cana retiram do ar. E não é só desse combustível “verde” que a gente vive. Nossa bola da vez é o biodiesel, um óleo vegetal que imita o combustível dos caminhões. Ele não substitui o diesel, mas pode ser misturado a ele. Uma lei aprovada em janeiro, aliás, obriga a adição de 2% do “bio” no diesel comum. Parece pouco, mas significa uma economia de 800 milhões de litros de óleo por ano – e boas toneladas a menos de gás carbônico no céu.
Urânio – Radiação bilionária
Não falta quem torça o nariz para as usinas nucleares. Mas existe um problema: 87% da energia usada no planeta sai de usinas termelétricas. O combustível delas pode ser petróleo, gás natural ou carvão, todos grandes emissores de dióxido de carbono, o gás causador do efeito estufa. Para diminuir os índices de emissão, a única alternativa é substituir as usinas fumacentas por outras que sejam “limpas” e pelo menos tão eficientes quanto. Hoje, só as nucleares podem dar conta desse recado. É fato. No Brasil, a energia nuclear é incipiente: nossas duas usinas em operação, Angra 1 e Angra 2, no estado do Rio de Janeiro, respondem só por 2% da eletricidade gerada no país. Além disso, o Brasil é o sexto maior produtor de urânio do mundo, mas nunca lucrou com ele o que poderia. O problema é o seguinte: as usinas nucleares produzem energia a partir do urânio, mas não de qualquer urânio: apenas o do tipo U-235. Na natureza ele aparece unido ao pouco útil U-238. Para cada 100 quilos de urânio, tem 700 gramas de U-235 – só 0,7%. Para gerar energia numa usina, a concentração do urânio “bom” tem de ser por volta de 5% (só para comparar, numa bomba atômica ela precisa ser de 98%). Por isso, então, existem formas de tratar grandes quantidades do minério para obter pedrinhas com a concentração certa. Isso é o enriquecimento de urânio. E o ponto é que o combustível das nossas usinas, apesar de ser minerado aqui, é enriquecido por uma empresa européia, a Urenco. Mas isso está para acabar. Depois de mais de 20 anos de pesquisas, o Centro Tecnológico da Marinha e o Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares) desenvolveram um sistema próprio de enriquecimento que entra em operação neste ano. O objetivo é que até 2006 pelo menos 60% do combustível das usinas de Angra seja enriquecido aqui. Só isso já representa uma economia de 11 milhões de dólares a cada 14 meses. Espera-se que até 2010 dê para chegar aos 100% e que, daí para a frente, o Brasil vire exportador de urânio enriquecido. Existe motivo. Além de haver só mais oito países com tecnologia para enriquecer urânio, o nosso sistema é um dos melhores. O minério é enriquecido em centrífugas – elas atiram a parte mais pesada do urânio, que tem mais U-238, para as bordas do cilindro. A mais leve, rica em U-235, fica no centro. Aí é só ir lá e pegar. É o mesmo modelo adotado na Europa, mas com uma vantagem: as centrífugas brasileiras têm peças sustentadas magneticamente, sem contato físico. Isso as deixaria mais duráveis e econômicas que as de boa parte da concorrência. Se compararmos com o método mais empregado nos Estados Unidos, a vantagem é maior ainda. Lá eles usam máquinas que, grosso modo, “peneiram” o urânio para enriquecê-lo. E isso gasta no mínimo 60% mais energia que o sistema brasileiro. Em suma, existem chances reais de o país se dar bem no bilionário mercado do combustível de usina nuclear. E olha que mal precisamos delas por aqui.
Software – Utopia digital
Uma cópia de um software estrangeiro dos mais comuns pode custar o equivalente a 60 sacas de soja. Aí não tem agricultura (nem indústria nem nada) que dê jeito de fechar as contas. E voltamos àquele esquema colonial do tipo “exportar o algodão e importar o vestido”, certo? Sim, mas existe uma saída. O Brasil é um dos países que mais usa e ajuda a desenvolver o chamado software livre, ou “de código aberto”, como o sistema operacional Linux. Livre porque eles são feitos por grupos de programadores que os distribuem de graça. E aberto porque esses softwares podem ser livremente modificados para ganhar novos recursos, e o Brasil é um dos países que mais criou versões próprias desse tipo de programa. Várias delas custam dinheiro, mas sempre sai mais barato do que as licenças de uso dos softwares convencionais, como o Windows, da Microsoft. “Um terço do dinheiro que move a indústria do software no Brasil é transferido em forma de pagamento de licenças a empresas do exterior. Isso dá 1 bilhão de dólares”, diz Marcelo Branco, da Free Software Project, entidade internacional que fomenta o software livre. As empresas de informática se defendem alegando que seus programas são uma mercadoria como qualquer outra, então não é pecado cobrar por eles. Seja como for, o governo daqui tomou sua decisão: migrar paulatinamente para o software livre, tanto em suas instituições como nos projetos para popularizar o acesso à rede. O próprio Bill Gates, dono da Microsoft, sentiu isso como uma ameaça aos seus negócios e decidiu tratar a questão com o presidente Lula. Bill, afinal, já tinha visto o assunto repercutir até na maior revista americana de tecnologia, a Wired. Ela definiu o Brasil como “uma nação, sob o Linux, com software livre para todos”, numa reportagem cheia de elogios em novembro. Exagero? Claro. Só 10% da população tem internet em casa, contra mais de 60% nos países ricos. O problema, para a Microsoft, é que o governo planeja vender pelo menos 1 milhão de PCs com programas de código aberto a preços populares – 50 ou 60 reais por mês. “O Brasil só pode se consolidar com um modelo alternativo, o do código aberto. Dentro do software proprietário, os ricos dominam”, afirma Sérgio Amadeu, diretor do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e a cabeça por trás da virada para o software livre. Precisa dizer mais?
Biotecnologia – Agrogenoma
Um marco. Foi assim que a revista científica inglesa Nature, a mais conceituada do planeta, qualificou um feito da biotecnologia brasileira em 2000: ter desvendado o código genético de uma “bactéria daninha” – a Xylella fastidiosa, que destrói plantações de laranja. Foi a primeira vez na história que um ser nocivo a lavouras teve seu genoma seqüenciado. A importância disso é enorme. O melhor jeito de bater um inimigo, afinal, é conhecer seus pontos fracos. E, cientificamente, o primeiro passo para isso é conhecer a seqüência com que as moléculas do DNA ficam enfileiradas no código genético dele. A partir daí é possível entender como a bactéria “funciona” e bolar as melhores formas de combatê-la. “A agricultura busca linhagens de plantas cada vez mais resistentes a pragas. E a engenharia genética é uma alternativa para conseguirmos isso”, diz a bióloga Marie Anne Van Sluys, da USP, uma das responsáveis pelo projeto. Essa pesquisa, por sinal, mostrou que a nossa ciência não depende só de “lances individuais”: envolveu 192 cientistas, de 35 laboratórios. Esse grupo ganhou o nome de Onsa (sigla em inglês para Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos. E o trabalho deles continua de pé. A briga, agora, é para decifrar o genoma de plantas como a cana-de-açúcar e o café. Além desse pessoal, também temos o Projeto Genoma Brasileiro, que integra 25 laboratórios e vem seqüenciando genomas paralelamente à Onsa. Se produzirmos outros marcos da biotecnologia, não vai mais ser surpresa.
Vale a pena acessar
www.bp.com – Site da companhia British Petrolleum, com estatísticas sobre fontes energéticas no mundo
www.gnu.org – Página da Free Software Foundation, com informações sobre programas de código aberto
www.linuxplace.com.br – Fórum brasileiro de notícias relacionadas a software livre
https://watson.fapesp.br/onsa/Genoma3.htm – Site da rede de pesquisa biológica Onsa