A verdade sobre os escudos antimísseis
Os EUA anunciaram a construção do Domo de Ouro, um sistema capaz de tornar o país imune aos mísseis das outras superpotências. Mas, como décadas de testes e um novo estudo atestam, isso pode ser impossível. Entenda por quê.

“O Domo de Ouro será capaz de interceptar mísseis mesmo se eles forem lançados de outros lados do mundo, e mesmo do espaço […] A taxa de sucesso é muito próxima de 100%, o que é incrível […] E nós somos os únicos a ter esta supertecnologia.” Essas foram algumas das declarações do presidente americano, Donald Trump, ao anunciar a construção do Domo de Ouro: um escudo antimísseis para proteger os EUA. Segundo Trump, o sistema ficará pronto em “um pouco menos de três anos” e irá custar US$ 175 bilhões; o governo já liberou os primeiros US$ 25 bilhões para o projeto.
O anúncio, em maio, acabou passando quase batido em meio a uma avalanche de outros temas envolvendo os EUA (tarifas, imigração, apoio a Israel, Ucrânia etc). Não deveria. O Domo de Ouro pode reiniciar um dos maiores embates da Guerra Fria, e alterar profundamente o atual equilíbrio de forças entre EUA, Rússia e China. Isso se ele for de fato construído e funcionar como prometido – o que, como décadas de testes e um novo estudo revelam, é uma grande incerteza.
A defesa e o ataque
Em 1944, a Segunda Guerra Mundial estava virando – após 872 excruciantes dias, o cerco nazista a Leningrado (atual São Petersburgo) terminara. Mas Hitler ainda tinha uma carta na manga: a Vergeltungswaffe 2, ou “arma da vingança 2″, um míssil diferente de qualquer outro. A partir de setembro daquele ano, a Alemanha disparou mais de 3 mil unidades do V2 contra alvos na Europa, com resultados devastadores. Ele voava em altíssima velocidade, acima de 5.700 km/h, carregando 1 tonelada de explosivos.
Era tão veloz porque aproveitava a lei da gravidade: subia a 88 km de altitude (quase chegando ao espaço, que começa em 100 km), desligava seus propulsores, fazia uma curva e aí começava a descer, puxado pela atração gravitacional da Terra. Ou seja, o V2 seguia uma trajetória balística: determinada pelo impulso inicial, pelo atrito com o ar e pela gravidade.
Só que isso também era uma fraqueza. Calculando essas três forças, é possível determinar (como você talvez se lembre das aulas de física na escola) a trajetória balística de qualquer objeto, inclusive o V2, e tentar interceptá-lo no ar. Após o fim da Segunda Guerra, os EUA começaram a desenvolver um sistema antimísseis. Ele foi batizado de Nike Zeus (referência aos deuses gregos da vitória e do céu), e começou a operar em 1961. A União Soviética respondeu criando um sistema similar, o A-35.
“A defesa antimísseis é como acertar uma bala com outra bala, só que muito mais difícil”, define Timur Kadyshev, pesquisador sênior do Institute for Peace Research and Security Policy (IFSH) da Universidade de Hamburgo e especialista em sistemas do tipo. Tanto é assim que Kadyshev rejeita o uso dos termos “escudo” ou “domo” para se referir a eles. “A defesa antimísseis não é como uma parede, atrás da qual você pode se esconder e ficar seguro”, afirma.
Está mais para um jogo extremo de tiro ao alvo – em que o objetivo é atingir ogivas relativamente pequenas, que viajam em grandes altitudes e podem se deslocar a mais de 20 mil km/h.
Para tentar superar esses problemas, o Nike Zeus e o A-35 usavam interceptadores armados com ogivas nucleares, projetadas para detonar quando se aproximassem do míssil inimigo (dessa forma, seria possível destruí-lo sem precisar acertá-lo em cheio). Mas sua eficácia sempre foi questionada. E, na prática, os sistemas antimísseis podem acabar tendo o efeito oposto, agravando a corrida armamentista.
Foi esse o argumento utilizado em 1967 pelo então secretário de defesa dos EUA, Robert McNamara, ao propor o Anti-Ballistic Missile Treaty (ABM): um acordo limitando a quantidade de defesas antimísseis que os Estados Unidos e a União Soviética poderiam construir. Pelo tratado, assinado em 1972, cada uma das superpotências poderia manter dois “escudos”, com 100 mísseis interceptadores cada um.
Talvez desse para defender as capitais e as bases militares mais importantes dos dois países, mas provavelmente nem isso: EUA e URSS já tinham dezenas de milhares de artefatos nucleares, muito mais do que qualquer escudo antimísseis conseguiria interceptar.
Para complicar as coisas, ambas as superpotências já estavam desenvolvendo uma nova tecnologia: os mísseis com “múltiplos veículos independentes de reentrada” (MIRVs, na sigla em inglês). O primeiro deles foi o americano Minuteman III, que entrou em serviço em 1970. Ao reentrar na atmosfera terrestre, e acelerar em direção ao alvo, ele liberava três módulos independentes – cada um dos quais poderia conter uma ogiva nuclear.

Aquilo triplicava o esforço que um escudo antimísseis precisaria fazer para impedir um ataque. E foi ficando pior. A União Soviética respondeu com o míssil R-36, que podia conter até dez MIRVs – tanto ogivas de verdade quanto decoys, ogivas falsas com o objetivo de confundir a defesa antimísseis [veja no infográfico acima]. É muito mais fácil, barato e rápido fabricar decoys, e ambas as potências apostaram forte nisso: os mísseis soviéticos mais avançados chegaram a ser capazes de carregar dezenas de ogivas falsas, junto com as verdadeiras.
Em suma, um terror. A quantidade de ogivas nucleares reais e a profusão de decoys puseram em xeque os sistemas antimísseis. Até que em 1983 os EUA anunciaram o Strategic Defense Initiative (SDI), um projeto para desenvolver uma rede de satélites armados com lasers. Eles seriam capazes de interceptar mísseis balísticos logo após o lançamento, na fase de subida, quando sua velocidade ainda é muito menor.
O sistema logo foi apelidado de “Star Wars”, e não como elogio: a referência ao filme era para dizer que, com as tecnologias da época, a ideia não passava de fantasia. O SDI era inviável e não foi construído, mas assustou os soviéticos, que correram para tentar desenvolver uma resposta, o sistema Polyus. A intensificação do esforço militar agravou os problemas econômicos do país – que foram fator decisivo para o fim da URSS, em 1991.

Após o colapso da União Soviética, os sistemas de defesa ocidentais passaram a focar numa ameaça menor, mas também relevante: mísseis de cruzeiro, que voam mais devagar e mais baixo do que os balísticos, e são usados em guerras regionais. O primeiro sistema do tipo a ganhar notoriedade foi o Patriot, desenvolvido pela empresa americana Raytheon e implantado a partir de 1984.
Ele foi usado na Guerra do Golfo, em 1990, para interceptar mísseis Scud lançados pelo Iraque. Na época, os EUA alegaram que o Patriot conseguiu impedir mais de 90% dos ataques. Mas uma análise (1) publicada por dois cientistas do MIT, que estudaram vídeos de 33 tentativas de interceptação realizadas durante a guerra, apontou outro cenário: na verdade, a eficácia do Patriot estaria próxima de zero.

No final dos anos 1990, a Boeing ajudou Israel a construir o Arrow, o primeiro sistema antimísseis do país – que nas décadas seguintes desenvolveu também o Iron Dome (“domo de ferro”, inaugurado em 2011) e o David’s Sling (“estilingue de Davi”), que foi montado em parceria com a Raytheon e opera desde 2017. Os três funcionam simultaneamente, e se complementam.
Eles foram muito acionados em junho deste ano, durante o conflito militar entre Israel e o Irã – que, após ser atacado, iniciou uma onda retaliatória com centenas de mísseis e drones. Dezenas deles (o número exato é incerto, contestado pelas duas partes) conseguiram atravessar os três sistemas de defesa e atingir alvos em Israel.
Fizeram isso explorando uma das fraquezas clássicas dos sistemas de defesa: a saturação. Se você disparar um número suficientemente grande de mísseis, a ponto de saturar (ocupar) toda a capacidade de interceptação do inimigo, consegue atravessar os escudos e acertar qualquer alvo. Não existe uma solução fácil para isso – porque o problema envolve uma realidade econômica.
Como os sistemas antimísseis exigem tecnologias complexas, eles são naturalmente muito mais caros do que as armas ofensivas. Cada míssil interceptador usado pelo sistema israelense Arrow, por exemplo, custa US$ 4 milhões. Mas a produção de um drone de longo alcance, como o iraniano Shahed (também usado pela Rússia na Guerra da Ucrânia), custa entre US$ 20 mil e US$ 50 mil. Ou seja: com o mesmo dinheiro de um Arrow, dá para fazer de 80 a 200 Shahed.
Para igualar as coisas, e criar um escudo em tese invulnerável, seria preciso um orçamento militar até 200 vezes superior ao do inimigo. E isso nem os Estados Unidos, que gastam US$ 850 bilhões por ano com suas forças armadas (contra US$ 230 bilhões investidos pela China, e US$ 140 bilhões da Rússia), seriam capazes de fazer. “O problema da defesa antimísseis não é só que ela é difícil. Ela também é muito cara pela efetividade que pode entregar. O ‘oponente’ trabalha duro para derrotá-la, e fazer isso é muito mais fácil e barato”, explica Kadyshev.

Alguns sistemas de defesa, projetados para interceptar mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs), que têm alcance superior a 5.000 km, são especialmente caros. O Ground-Based Midcourse Defense (GMD), que foi criado para tentar impedir ataques russos aos EUA [veja no infográfico acima] e está em desenvolvimento desde 2004, já consumiu mais de US$ 63 bilhões – e seu orçamento total deve chegar a US$ 90 bilhões.
Apesar disso, ele atualmente tem apenas 44 interceptadores, dos quais 40 ficam na base de Fort Greely, no Alasca, e quatro na base Vandenberg, na Califórnia. Mas a Rússia tem hoje milhares de armas nucleares, incluindo 330 ICBMs e 192 mísseis balísticos disparados de submarinos (SLBMs). Ou seja, o atual escudo americano não daria nem para o começo.
O sistema também tem se mostrado bastante falho. Dos 21 testes conduzidos pelos militares americanos até hoje, o GMD acertou o alvo em apenas 12 (57% de eficácia). “Apesar de um investimento significativo e décadas de esforço, o sistema GMD não se mostrou confiavelmente eficaz, nem mesmo em testes cuidadosamente planejados”, conclui um estudo (2) publicado em março por dez cientistas da American Physical Society.
O Domo de Ouro contornaria esses problemas usando um novo tipo de interceptador: satélites armados com canhões laser, que disparariam do espaço contra mísseis inimigos assim que eles fossem lançados. Em tese, isso permitiria alvejar os mísseis quando eles ainda estivessem subindo, em velocidade relativamente baixa, e tornaria a interceptação muito mais fácil (pois um disparo de laser viaja na velocidade da luz).
É a mesmíssima ideia do Strategic Defense Initiative, o plano da década de 1980. “Estaremos concluindo o trabalho que o presidente Reagan começou 40 anos atrás”, declarou Donald Trump.
Era inexequível na época, e continua sendo. O estudo da American Physical Society calculou que mesmo um sistema espacial bem limitado, para proteger os EUA contra um eventual ataque da Coreia do Norte, exigiria manter 36 mil satélites interceptadores em órbita – e isso se os norte-coreanos disparassem apenas dez mísseis nucleares (estima-se que o país já tenha mais de 50 ogivas). Montar um escudo espacial contra a China ou a Rússia, detentoras de arsenais muito maiores, seria essencialmente inviável.
“A tecnologia [de defesa com lasers] não existe hoje, nem no futuro próximo”, avalia Kadyshev, do IFSH. Para ele, mesmo se um sistema do tipo fosse construído, seria possível driblá-lo disparando decoys, revestindo os mísseis com material resistente ao calor, ou mesmo atacando em um dia muito nublado, com nuvens obstruindo a visão dos satélites.
Em suma: o Domo de Ouro, como foi apresentado, não passa de um devaneio. E isso tem um lado bom. A evolução da Guerra Fria acabou criando um equilíbrio entre EUA e URSS: o conceito de “destruição mútua assegurada” (MAD, na sigla em inglês). Por esse raciocínio, americanos e soviéticos jamais iniciariam um ataque nuclear contra o inimigo, pois isso certamente ensejaria uma resposta aniquiladora, igualmente nuclear.
Porém, se uma das (hoje, três) superpotências conseguisse construir um escudo antimísseis realmente confiável, esse equilíbrio deixaria de existir. Seria o fim da MAD – e o provável começo da Terceira Guerra Mundial.
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Fontes (1) “Video Evidence on the Effectiveness of Patriot during the 1991 Gulf War”, G Lewis e T Postol, 1993. (2) “Strategic Ballistic Missile Defense: Challenges to Defending the United States”, American Physical Society, 2025.