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O anti-inflamatório que bagunçou um ecossistema e matou meio milhão de indianos

Em 1994, o uso do remédio diclofenaco em bois na Índia quase extinguiu os... abutres. E desencadeou um efeito borboleta ecológico que gerou US$ 70 bilhões em prejuízo por ano.

Por Bela Lobato
Atualizado em 2 ago 2024, 09h55 - Publicado em 1 ago 2024, 19h00

No começo dos anos 1980, existiam cerca de 40 milhões de abutres de nove espécies no sul da Ásia. Hoje, após uma queda de mais de 99,95% na população, existem cerca de 19 mil. Esse foi o declínio mais rápido já observado em qualquer grupo de animais, e teve consequências desastrosas e inesperadas para os países sul-asiáticos.

Agora, um estudo publicado no periódico da American Economic Association fez um balanço completo da mortalidade e das perdas econômicas causadas pela crise dos abutres. No período mais grave, entre 2000 e 2005, a taxa de mortalidade da Índia subiu em 4%. Mais de 500 mil pessoas morreram, e o prejuízo foi próximo de US$ 70 bilhões por ano.

Por muito tempo, o desaparecimento rápido dos abutres foi um mistério. O motivo levou anos para ser esclarecido: os animais estavam morrendo envenenados por diclofenaco, um medicamento que havia se popularizado no tratamento do gado bovino. 

A crise começou em 1994, quando a patente do diclofenaco expirou e o preço do remédio (também usado por seres humanos com dor de garganta, por exemplo) caiu drasticamente. Seu uso como anti-inflamatório e analgésico para bois e vacas explodiu. 

Na cultura hindu, as vacas são animais sagrados, e não podem ser comidas. 96% das mais de 500 milhões de vacas indianas não são criadas para consumo humano, e, quando morrem, são deixadas nos pastos para se decomporem naturalmente, com uma ajudinha de animais como… abutres.

Essas aves não tinham chance: calcula-se que, se apenas 1% das carcaças estivesse contaminada por diclofenaco, sua população já cairia entre 60% e 90% ao ano. E cerca de 10% dos corpos continham o fármaco.

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Você pode, como a maioria das pessoas, não simpatizar muito com essas aves comedoras de carcaça. Mas os indianos logo enxergaram o valor que elas tinham. Com o declínio na população de abutres, um enorme número de animais agora apodrecia ao ar livre, favorecendo a proliferação de doenças contagiosas e pestes.

O alimento, entretanto, se tornou farto para os cachorros selvagens, cuja população aumentou em mais de 5 milhões. As matilhas selvagens que circulam pelo país são as principais responsáveis pela transmissão de raiva por meio de mordidas e arranhões.

 (Se quiser ler outra história maluca envolvendo essas matilhas, saiba aqui sobre a síndrome em que as pessoas acreditam estarem grávidas de cães.)

É agora que o efeito borboleta fica ainda mais bizarro: após o início da crise, o país viu um aumento substancial na média do número de mordidas de cães e casos de raiva. O impacto econômico das mortes por raiva e da demanda por vacinas foi de US$ 34 bilhões.

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Outro fator é que os animais decompositores são como becos sem saída para vírus, bactérias e outros microorganismos que podem nos causar doenças. Eles são resistentes, podem comer carcaças sem medo. Os cachorros e os ratos, não. Com isso, também aumentaram casos de doenças animais.

Enquanto isso, as carcaças que seriam comidas pelos abutres começaram a contaminar fontes de água, causando uma série de outros problemas com o saneamento básico.

Em 2006, após pressão da comunidade científica, o diclofenaco foi proibido para uso veterinário. A Índia incentivou a produção de alternativas seguras, mas ainda existem remédios tóxicos para abutres no mercado. Além disso, até hoje o medicamento é utilizado ilegalmente. O que a proibição conseguiu foi apenas reduzir a velocidade do declínio da população das aves.

Existem diversas iniciativas para criar os animais em cativeiro e liberá-los na natureza, mas o processo é lento: eles atingem a maturidade quando têm cerca de cinco anos de idade e põem apenas um ovo por ano. Em 2022, havia cerca de 700 abutres nos centros de reprodução indianos.

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Os dados sobre os custos e as mortes do novo estudo foram obtidos a partir da comparação das taxas de regiões com e sem abutres. 

Nos distritos onde os abutres sempre viveram, as taxas de mortalidade humana começaram a subir em 1994 e continuaram a subir nos anos seguintes. Os distritos que nunca tinham abrigado abutres, por outro lado, permaneceram notavelmente estáveis. A mesma relação também foi visível nas taxas de vacinação contra raiva e nos índices de qualidade da água.

Outra curiosidade é que os abutres são muito importantes para os rituais funerários da cultura dos parsis, adeptos do zoroastrismo. Por considerarem os cadáveres impuros, os fiéis recusam-se a enterrar ou cremar um corpo. Em vez disso, depositam o defunto no alto de uma construção chamada de Torre do Silêncio, onde os abutres devoram a carne.

Segundo a mitologia, o olho místico do abutre auxilia a transição cósmica da alma, e o ato de dar o corpo morto às aves é considerado o último ato de caridade do zoroastrista devoto.

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Antigamente, a Torre do Silêncio de Nova Delhi tinha mais de 15 mil abutres simultâneos, e os cadáveres eram destruídos em minutos. Depois da crise, os cadáveres podiam continuar inteiros por seis meses. Hoje, a maior parte dos parsis de Nova Delhi é obrigada a se submeter a outros rituais funerários, já que os abutres não podem colaborar.

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