Ícaro e Mutley, as aves de rapina que protegem a Santa Casa de BH de pombos
Mutley é um gavião-asa-de-telha. Ícaro é um falcão-de-coleira. Eles são treinados para afugentar pombos, capturá-los sem violência e reduzir os riscos à saúde no hospital.

O falcão-de-coleira (Falco femoralis) é uma ave de rapina nativa das Américas que prova que tamanho não é documento: apesar de ser menor que um pombo, é capaz de capturar e imobilizar animais como urubus e garças. O seu bico pontudo é capaz de dilacerar carne em segundos, mas, quando adestrado, o falcão-de-coleira não mata: só entrega a presa para o seu tutor.
Esse tipo de treinamento faz parte da falcoaria, uma prática que exige paciência, disciplina e muita confiança entre o tutor e as aves de rapina. “Eles são atletas de alta performance”, diz Welbert Luiz Pereira, que é treinador licenciado pelo IBAMA desde 1994.
Todos os dias, ele realiza treinos de força e voo com suas 17 aves de rapina, utilizadas para controle de pragas urbanas, principalmente pombos. A estratégia costuma ser procurada porque, apesar de quase onipresentes nas grandes cidades, os pombos são considerados fauna silvestre e, protegidos por lei, não podem ser exterminados.
Embora sejam pacíficos e domesticáveis, os pombos carregam parasitas e microrganismos que transmitem doenças para humanos. As fezes de pombo, por exemplo, possuem fungos que, ao serem inalados, provocam uma doença sistêmica chamada criptococose. Sem o tratamento adequado ou em organismos fragilizados, a criptococose pode ser fatal.
Em alguns locais, a presença dessas aves é uma ameaça séria à segurança e à saúde pública, como em fábricas de alimentos, estoques de grãos e alguns espaços urbanos, como hospitais e escolas. Era o caso do hospital Santa Casa BH, em Belo Horizonte, que hoje utiliza a falcoaria para controlar a população de pombos.
Localizado no centro da cidade, o hospital lidava com uma infestação de pombos que se empoleiravam na fachada. Eram muitos problemas em um só: leitos foram invadidos por piolhos de pombo, as aves faziam ninhos no ar-condicionado central e os custos com limpeza e manutenção de telas, canos e janelas só cresciam.

Foi quando eles começaram a utilizar a falcoaria: três vezes na semana, o hospital é visitado por Pereira, acompanhado de uma ou duas aves de rapina. O primeiro é Mutley, um gavião-asa-de-telha de nove anos, que acaba de atingir a idade reprodutiva e está no seu auge. O outro é Ícaro, um falcão-de-coleira como o descrito no primeiro parágrafo de apenas três anos — nas palavras de Pereira, ainda é um “aborrescente”.
Os dois são soltos no pátio interno do hospital, onde afugentam e capturam pombos. Sem matá-los, as aves calmamente trazem de volta as presas até a mão de Pereira, que oferece um pedaço de carne como recompensa. Os pombos capturados ficam enjaulados com água e comida por alguns dias até serem levados para bem longe.
“Já tem mais de um ano que nós estamos com esse trabalho.”, conta Guilherme Assis, coordenador da área de meio ambiente da Santa Casa BH. “Hoje, temos uma média de 50 pombos capturados por visita. Quando começamos, já tivemos mais de 120 capturas em uma única visita.”

O local da libertação dos animais depende da legislação local e da espécie. Pereira conta que já trabalhou em estados em que os pombos capturados podem virar alimento para animais de zoológicos e criadouros, por exemplo.
No caso dos aeroportos, é comum que as aves de rapina imobilizem garças, quero-queros e urubus. Nesses casos, é preciso aguardar uma decisão do IBAMA sobre quando, como e onde devolver os animais à natureza.
“Não adianta eu pegar um animal aqui e eu soltar ele a três, quatro, cinco quilômetros: ele vai voltar. Tem que soltar os pombos a uns cem quilômetros daqui.”, explica Pereira. “O urubu tem que soltar mais longe ainda, porque ele pega térmicas [correntes ascendentes de ar quente] e quase não tem gasto de energia. Ele volta logo.”
Os pombos realmente são capazes de migrar longas distâncias e retornar exatamente ao local onde nasceram – essa é a lógica por trás dos pombos-correio, afinal. Por isso, o trabalho precisa ser contínuo: mesmo quando retornam, a presença das aves de rapina afugenta os animais.
Depois de quase dois anos, a melhora é sensível. Segundo Assis, o hospital nunca chegou a ter casos de doenças causadas por pombos, mas o risco era alto. Hoje, além dos riscos terem sido neutralizados, o controle da população também reduziu os gastos com produtos de limpeza e manutenção de telas e canos.
Pequenininho e valente
Apesar de serem colegas de profissão, o falcão-de-coleira e o gavião-asa-de-telha são bem diferentes. O gavião mete banca, com uma envergadura de mais de um metro e pesando 700 gramas e uma cara de mau.
Já o falcão-de-coleira, cinco vezes menor, é muito mais valente e rápido — pode chegar a 170 quilômetros por hora, segundo Pereira. Enquanto outras aves de rapina podem ser treinadas em um mês, quando filhotes, o falcão-de-coleira exige entre cinco e seis meses de adestramento.
A valentia dá a ele a fama de estressadinho e, por isso, em algumas situações, é necessário cobrir seus olhos com um capuz. É uma cena comovente, mas Pereira explica que não gera sofrimento para a ave, que é acostumada desde pequena com a peça.

O trato precisa ser delicado e respeitoso, porque se o falcão pegar raiva de usar o capuz, acabou: ninguém mais consegue colocar. Quando os filhotes são adquiridos de criadores legalizados, as aves são muito agressivas e desconfiadas em relação aos humanos.
O cortejo começa com o tutor oferecendo alimentos na luva de couro que será sempre utilizada para os treinamentos. “Eu mostro pra ele que a fonte de alimento, a partir de hoje, vai ser a luva, não vai ser o pai e a mãe que dá a comida no bico.” explica Pereira.
“Eu boto um pedaço generoso de carne e deixo o capuz pertinho. E deixo ele comer, sem forçar de colocar o capuz. Com o tempo, ele vai entender que o capuz vai fazer parte da vida dele diariamente.”, acrescenta.
Durante a visita à Santa Casa BH, algumas vezes Ícaro demonstrou agitação, mas se acalmou diante da voz de Pereira dizendo “sou eu, relaxa, sou eu.” A dupla estava sempre bem sintonizada: uma hora, Pereira quis recolocar o capuz na ave, que piou com muita agitação.
“Eu tirei agora e ele não quer que eu coloque. Então eu não coloco. Ele já deu o sinal que ele não quer, então eu deixo o capuz aqui, se forçar é pior.” Depois de um tempo conversando com o falcão empoleirado em sua mão, já era hora de ir embora, e Pereira pegou o capuz de novo. Dessa vez, colaborativo como um cachorrinho que quer vestir a coleira para passear, Ícaro deixou o tutor encapuzá-lo.