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A história e a glória do escargot

Como um molusco terrestre se tornou símbolo da alta gastronomia, e passou a movimentar toda uma indústria em torno de sua gosma

Por Raquel Beer
Atualizado em 26 ago 2019, 12h40 - Publicado em 23 nov 2018, 12h44

Ele pode não causar muita empatia de cara. Mas não é difícil se identificar com a personalidade do caracol – “escargot”, em francês.  Ele gosta de temperaturas amenas, por volta de 14 graus. Quando esquenta ou esfria demais, o bichinho se enterra no chão até que o clima melhore. No inverno, ele hiberna – ainda bem, porque sem essa soneca o escargot se torna estéril. Ele é hermafrodita, mas mesmo assim precisa encontrar um par para procriar. Quando vê algo que não gosta, simplesmente entra em sua concha e espera a ameaça passar. O poeta grego Anaxilas escreveu: “Por não confiarem em ninguém, os caracóis transportam a casa deles sempre consigo”.

Mesmo com seu ritmo lento e uma aparência que, convenhamos, não ajuda, o caracol se tornou símbolo da gastronomia francesa. E ele continua avançando, lentamente, para, quem sabe, conquistar o seu lugar nos cardápios do mundo inteiro. Nas próximas páginas, você vai conhecer melhor a história e as glórias desse molusco terrestre.

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(Alex Silva/Superinteressante)

Chef Carême

Apesar de serem referência da culinária sofisticada, uma descoberta recente mostra que o escargot já era apreciado desde a época em que neandertais, nossos primos extintos, ainda habitavam a Europa. Em 2014, arqueólogos encontraram 1.500 conchas em uma caverna em Alicante, no sudoeste da Espanha. Elas datavam de 30 mil anos atrás. Restos de uma espécie de forno permitiram deduzir que os caçadores/coletores da época comiam os moluscos assados.

Pelo visto, o caracol manteve a sua popularidade nos milênios seguintes. Romanos mergulhavam a carne do caracol no leite para depois fritá-la ou grelhá-la e servir como sobremesa. Em Roma, aparecem também as primeiras fazendas de escargot, espaços cercados onde criavam os bichos.

No século 16, marinheiros franceses levavam barris cheios de caracóis nas embarcações como reserva de comida fresca. Os camponeses também o saboreavam em sopas. No cardápio da corte, contudo, o rastejante jamais entrou – o pessoal de sangue azul preferia se empanturrar com souflés, cassoulets, coq au vin e, quando faltava pão, brioche.    

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A volta por cima teria acontecido só no início do século 19. Mais precisamente em 1814, quando Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, então primeiro-ministro francês, convidou o czar Alexandre 1o, da Rússia, para um almoço na região da Borgonha, no leste da França. O político convocou o seu cozinheiro pessoal, Marie-Antoine Carême, primeiro cozinheiro da história a se autodenominar “chef”, para se encarregar da refeição.

A lenda diz que Carême não encontrou carne ou peixe para comprar na região, e resolveu se virar com os caracóis que passeavam pelo jardim. Então fez um molho com alho, salsa e manteiga, para colorir o prato e disfarçar a textura gelatinosa, e colocou as conchas preenchidas com o molho no forno. O czar teria adorado a receita, voltado para a Rússia e pedido para que seu cozinheiro preparasse os tais “escargots de borgonha”. A elite parisiense, sabendo do feito, colocou o caracol camponês em seu cardápio. Nota: o mais provável é que Carême, gênio que era, já soubesse muito bem que, quando bem temperados, escargots causam explosões de prazer nas papilas gustativas. E simplesmente aproveitou a ocasião para exibir seu talento.

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(Alex Silva/Superinteressante)

A consagração

Quem nos contou esse capítulo saboroso da história do escargot foi France Aubriet. A francesa de 52 anos é a diretora da Bourgogne Escargot, uma empresa fundada em 1950 para produzir em Dijon, capital da Borgonha. A empresa trabalha com os animais selvagens: todos os anos, entre os meses de maio e junho, um grupo de coletores percorre a região em busca dos bichos para vendê-los à empresa. Aubriet compra todos os anos 140 toneladas de carne de escargot desses fornecedores. “Trabalhamos com os animais selvagens simplesmente porque a carne é mais saborosa. Além disso, os nossos clientes têm certeza que os escargots não receberam nenhum produto para crescer mais rápido nem nada do tipo”, diz.

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Na Bourgogne Escargot, os animais são abatidos por uma técnica que congela o animal e depois mata-o com vapor da água, assegurando assim a maciez da carne. Para garantir uma produção que dure o ano todo, as carnes são congeladas e vão sendo preparadas aos poucos. O processo de produção consiste em retirar os animais da concha, lavá-los (assim como as conchas) várias vezes e então remover o hepatopâncreas, glândula digestiva que não é comestível. Por último, o pessoal da Bourgogne Escargot  acrescenta o molho – aquele mesmo do chef Carême: alho, manteiga e salsa.

Todo o trabalho é feito manualmente por uma equipe de 40 mulheres. A produção é intensa: em uma hora, 1.200 caracóis são recolocados em suas conchas e banhados no molho. É assim que a empresa consegue produzir 20 milhões de escargots por ano.

Em Paris, a empresa é representada pela Maison de l’Escargot, a única loja da capital francesa a vender escargot fresco. A loja foi fundada em 1824 pela família Lebret e mantida até 2015, quando o então proprietário Georges Kossorotoff, conhecido como o “rei do escargot”, decidiu vendê-la.

Naquela época, os escargots vinham vivos até Paris e eram preparados na hora por um grupo de mulheres atrás do balcão da loja. Nos anos 2000, porém, as regras sanitárias se tornaram mais severas e a produção local foi proibida. Assim o senhor Kossorotoff, já com 90 anos, decidiu vender a empresa. Na loja de Paris, hoje é possível comprar os escargots já temperados com o molho à bourguignonne, mas também só a carne do caracol para prepará-lo em casa.

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Mas também existem produtores que trabalham com a criação do escargot. Um deles é a Maison Royer, fundada em 1989 e localizada na pequena comuna de Saint-Paul-en-Pareds, na região de Pays de la Loire, oeste da França. A empresa comercializa “escargots orgânicos”, animais que se alimentam apenas de legumes sem pesticidas.

O ciclo todo dura um ano: na primavera, os caracóis acordam da hibernação, se reproduzem, botam os ovos que eclodem no início de maio. No verão, os bebês são colocados no parque de criação, que tem a umidade mantida na casa dos 90%, como eles gostam.

No outono, recolhem os bichos.  Então separam os caracóis com carne e concha mais bonitas para serem os próximos reprodutores, num processo contínuo de seleção artificial. Esses vão para uma câmara fria cuja temperatura diminui um grau a cada dia, até chegar nos 6 graus, a ideal para a hibernação. Os outros são abatidos.

Mais que um pedaço de carne

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Há cinco anos, os dois dirigentes da Maison Royer, os irmãos Sébastien e Olivier Royer, buscaram um novo desafio: produzir cosméticos à base de escargot. O líquido que o animal secreta (aquele que deixa um rastro por onde o caracol passa) é rico em colágeno, elastina, alantoína, ácido glicólico – agentes que realmente deixam a pele mais macia, e aceleram processos de cicatrização. Tanto que trabalhadores que manuseiam os bichos ficam com as mãos mais macias.

O passo seguinte era produzir cosméticos à base do líquido de caracol. Para dar escala à produção, a dupla desenvolveu um aparelho para extrair essa secreção. A instalação é composta por um tapete com pequenos buracos. Então colocam cada molusco dentro de um. Em seguida, uma placa passa por baixo desse tapete fazendo “cócegas” neles, e é esse estímulo que os faz soltar a “baba”. O líquido então é filtrado, misturado a conservantes orgânicos e incluído em cremes para o rosto, corpo, mãos e peles, além de sabão, demaquilante e xampu. Em um dia, estimulam cerca de 20 mil escargots, o que resulta em 60 a 70 litros da secreção. Cada produto leva  até 30% de baba de caracol em sua composição.

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Comida do futuro?

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O consumo intenso do molusco ao longo do século 20 levou à diminuição da população de caracóis. Desde 1979, então, a espécie é protegida na França: só podem ser coletados aqueles que tenham uma concha de ao menos 3 centímetros. Por conta disso, 98% dos caracóis consumidos na própria França vêm de países do Leste Europeu, principalmente da Polônia e da Ucrânia, onde não há leis para proteger o molusco.

Seja como for, a conservação da espécie pode ser ainda mais importante do que parece. Isso porque haverá quase 10 bilhões de pessoas no mundo até 2050, e, se mantivermos a composição da nossa alimentação como ela é hoje, não haverá proteína para todo mundo. Segundo um relatório* sobre o futuro da alimentação lançado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 2016, o ponto-chave é encontrar novas fontes de proteína – mais produtivas que bois, porcos e galinhas, cuja criação exige muito espaço (e muita ração e muita água).

Entre as hipóteses levantadas está a ingestão de insetos. Pelo menos 1.400 espécies de inseto são comestíveis, e a criação deles é menos complexa que a de animais maiores. O problema é convencer alguém a comer uma pizza de escorpião. Mas e outros pequenos animais, como o escargot? Eles também poderiam ser uma alternativa? “Por que não? Pode ser uma opção”, diz Jean-Michel Chardigny,  diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica francês (Inra) e autor do livro Des Insectes au Menu? (Insetos no cardápio?, sem versão em português). “Mas, apesar da popularidade deles na França, ainda existe uma resistência grande ao consumo de animais assim em outros países, e ela precisaria ser vencida.”

Não seria de espantar caso isso acontecesse de fato. Se seres rastejantes não tivessem potencial gastronômico, o escargot não teria conquistado um lugar de destaque na culinária mais reconhecida do mundo. E convenhamos: se os alimentos do futuro forem tão saborosos quanto os caracóis franceses, a picanha não vai deixar saudade.

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