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A Corrente do Golfo pede socorro

Ela nasce no México e atravessa o Oceano Atlântico carregando 110 bilhões de litros de água – mais do que todos os rios do mundo somados. Leva calor para a Europa e regula as chuvas na América do Sul. Mas novos estudos revelam que a corrente vem perdendo intensidade e alcançou o ponto mais fraco em 1.600 anos. Veja por que isso está ocorrendo – e o que pode acontecer se ela parar.

Por Tiago Cordeiro e Bruno Garattoni
Atualizado em 28 set 2022, 12h17 - Publicado em 17 nov 2021, 15h27

Uma corrente oceânica que vai do Atlântico Sul até o Ártico começa a perder força. Cientistas alertam o governo americano, mas não são ouvidos. Isso só acontece quando ela finalmente para de circular, desencadeando uma série de fenômenos climáticos extremos: furacões varrem os EUA, um tsunâmi inunda Nova York e uma nova era glacial torna o país inabitável, com a população tendo de fugir para o México.

Eis o enredo do filme O Dia Depois de Amanhã, um blockbuster de 2004 dirigido pelo alemão Roland Emmerich. Ele é um festival de exageros e coisas puramente ficcionais, bem ao estilo do chamado “cinema catástrofe” – Emmerich, um expoente do gênero, já havia dirigido Independence Day (1996) e Godzilla (1998).

Mas, ao contrário deles, O Dia tem algum fundamento científico. Tanto que o oceanógrafo Moacyr Araújo, professor e vice-reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), imediatamente se lembra do filme ao ser perguntado sobre a Corrente do Golfo. “Apesar de se tratar de uma obra de ficção, é bom lembrar que a AMOC está no seu ponto mais fraco em mais de um milênio”, diz.

AMOC é a sigla em inglês para “Circulação de Revolvimento Meridional do Atlântico”, o nome técnico da Corrente do Golfo: um fluxo monstruoso, que tem 100 km de largura e desloca inacreditáveis 110 bilhões de litros de água por segundo – isso é 500 vezes a vazão do Rio Amazonas, ou mais do que todos os rios do planeta somados.

A corrente se forma no Golfo do México e sobe pelo litoral dos EUA levando água quente, para então atravessar o Atlântico e se dividir em duas: uma parte banha a Europa, enquanto a outra vai até a Groenlândia e o Oceano Ártico. Ela é um grande mecanismo de distribuição de calor, diretamente responsável pela regulação do clima na Terra – inclusive porque funciona conectada a outros fluxos oceânicos [veja gráfico abaixo]. Se a Corrente do Golfo deixasse de existir, o mar avançaria sobre a costa da América do Norte, e a Europa ficaria mais fria e sujeita a grandes tempestades. Mas não só isso: Índia, África e América do Sul receberiam menos chuva, comprometendo sua produção agrícola.

Seria, em suma, um desastre. Um eventual fim da Corrente do Golfo mudaria bastante a vida na Terra. E essa possibilidade já não pertence ao campo da ficção. Uma série de estudos publicados nos últimos anos mostraram que a corrente vem perdendo força e pode estar começando a dar sinais de colapso. E o motivo disso é outro pesadelo climático: o aquecimento global.

Ilustração de mapa mostrando a Corrente do Golfo.
Clique na imagem para abrir o infográfico. (Andressa Meissner/Superinteressante)
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Da Flórida à Antártida

Em 4 de março de 1513, o espanhol Juan Ponce de León saiu da ilha de Porto Rico com três navios e 200 homens para explorar o Norte. No dia 2 de abril, quase um mês mais tarde, ele  descobriu e conquistou um novo território: a Flórida. Ficou lá por cinco dias e depois recomeçou a expedição, agora indo na direção Sul. Mas dessa vez foi diferente. Havia uma corrente tão forte que, mesmo com vento a favor, os navios eram empurrados para trás – o San Cristóbal, o menor dos três, chegou a se perder dos outros por dois dias.

Ponce de León e seus marinheiros não sabiam, mas estavam bem no meio da Corrente do Golfo – que é especialmente forte entre a Flórida e as Bahamas, onde eles estavam. Com o tempo, os navegadores espanhóis aprenderam a usar aquilo a seu favor: a corrente dava um belo empurrão na volta das expedições, permitindo retornar à Europa mais depressa. 

Mas ela só foi de fato mapeada dois séculos mais tarde. E pelas mãos de outro personagem importante: Benjamin Franklin, um dos fundadores dos Estados Unidos. Político e diplomata, ele foi um dos autores da Declaração de Independência dos EUA, em 1775. Franklin também era cientista e fez descobertas importantes sobre a eletricidade (em 1752, empinou uma pipa durante uma tempestade para provar que os relâmpagos eram fenômenos elétricos) e o oceano.

Em 1768, na Inglaterra, ele ouviu a seguinte reclamação: por que as encomendas inglesas demoravam tanto para chegar aos EUA? Essa viagem levava bem mais tempo do que o percurso contrário, da América para a Europa. Por quê? Com a ajuda do baleeiro Timothy Folger, ele estudou os fluxos marítimos e fez um mapa da Corrente do Golfo. Disse que ela era como um “rio dentro do oceano”, e sua velocidade alcançava 10 km/h. A estimativa foi de uma precisão impressionante. Medições modernas, feitas séculos depois, confirmaram: a camada mais superficial da corrente, que é a mais rápida de todas, se desloca a 9 km/h.

Ilustração com os Giros Oceânicos.
Clique na imagem para abrir o infográfico. (Andressa Meissner/Superinteressante)
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A partir dos anos 1990, cientistas começaram a usar satélites para observar a corrente. Mas foi só em 2004 (por coincidência, mesmo ano de lançamento de O Dia Depois de Amanhã), que ela passou a ser monitorada de forma ininterrupta. Desde então, uma estação de medição da água, mergulhada no Paralelo 26 Norte, na altura do Golfo do México, avalia a temperatura e a salinidade local, 24 horas por dia, sete dias por semana (1).

Conforme a corrente se afasta do Golfo do México e vai subindo em direção ao Norte, ela vai evaporando e perdendo calor em contato com ventos gelados. A água esfria cada vez mais, o que a torna mais densa, e partes dela congelam. O ponto de congelamento da água do mar é -2 oC, um pouco mais baixo que o zero grau da água doce, porque o sal dificulta o processo.

É que o gelo possui uma estrutura ordenada e cristalina, na qual as moléculas de sal não se encaixam. Elas são expelidas e se misturam com o resto da água, que continua líquida. O resultado disso é que agora você tem duas coisas: blocos de gelo “doce”, com pouco sal, e água supersalgada, mais densa e fria. Quando essa água chega ao Atlântico Norte, ela afunda e forma uma corrente gelada que desce na direção do Equador. Essa água vai esquentando e subindo para a superfície, o que reinicia todo o processo [veja infográfico]. Esse mecanismo, que se chama circulação termoalina – dependente da temperatura e da salinidade –, é o que impulsiona as correntes marítimas.

Trata-se de um fenômeno genial, uma obra-prima da Natureza. Mas que pode ser desregulado pela ação humana. Quanto mais CO2 jogamos na atmosfera, mais quente o planeta fica – o que derrete o gelo das calotas polares e da Groenlândia. Isso afeta a circulação termoalina, por um motivo simples: o gelo contém pouco sal, lembra? Então se ele volta ao estado líquido, e se mistura com o resto da água do mar, a salinidade daquela região diminui, e isso interfere na formação das correntes marítimas.

O primeiro alerta veio em 2015, quando um grupo de cientistas do Instituto Potsdam, na Alemanha, detectou uma “desaceleração excepcional” na Corrente do Golfo (2) ao longo do século 20, e apontou o derretimento acelerado da Groenlândia como possível motivo.

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Em 2018, os pesquisadores do Potsdam se associaram a cientistas das universidades de Madri, de Atenas e Princeton para ir além: mediram a Corrente do Golfo no passado, ao longo dos últimos milhares de anos (3). Eles fizeram isso analisando a deposição de várias camadas de sedimentos marinhos: dessa forma, você consegue deduzir com qual velocidade a água passou num determinado ponto em diferentes momentos da história.

Os cientistas também observaram mudanças de temperatura nas regiões diretamente influenciadas pela Corrente do Golfo, em especial o Reino Unido, a Escandinávia e a costa do Canadá e dos EUA. Conclusão: o fluxo de água perdeu 15% da força a partir de meados do século 20. Pode até não parecer, mas é muita coisa. “O enfraquecimento da corrente, que ocorreu principalmente a partir de 1975, é o maior em mais de um milênio”, diz o estudo. “Ele é revelado pela mudança na temperatura sazonal na região, e consistente com o esfriamento do Oceano Atlântico perto do Polo Norte, e do aquecimento na região sul da corrente.” Ou seja: a perda de força já provoca consequências visíveis.

E a humanidade parece ter uma boa parcela de culpa. Isso ficou evidente também em 2018, quando cientistas de cinco universidades e instituições de pesquisa da Inglaterra, do Canadá e dos EUA mediram com mais precisão a velocidade da Corrente do Golfo nos últimos 150 anos (4). Essa data não é aleatória: foi por volta de 1850 que o planeta saiu de um fenômeno que ficou conhecido como Pequena Idade do Gelo, marcada por períodos de inverno mais rigoroso no Hemisfério Norte.

Nessa época, também, é que se inicia a Segunda Revolução Industrial, e as emissões globais de CO2 começam a subir. Existe uma relação direta entre as duas coisas (o CO2 e a desaceleração da Corrente do Golfo), e ela é mais intensa do que se imaginava: segundo o estudo, a corrente está enfraquecendo dez vezes mais rápido do que o previsto pelos modelos de aquecimento global.

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Em agosto de 2021, veio a advertência mais preocupante de todas: a corrente poderia estar perto de um colapso. É o que afirma um estudo assinado pelo físico Niklas Boers (5), do Instituto Potsdam e da Universidade de Exeter, na Inglaterra. “Ao longo do último século, a AMOC evoluiu de uma condição relativamente estável para um ponto próximo de uma transição crítica”, alerta o autor. O enfraquecimento é o maior em pelo menos 1.600 anos e pode levar a corrente a perder de 34% a 45% de sua força até o fim do século. Se ela parar, não haveria volta. “Para religar a corrente, seria necessário provocar uma mudança climática muito maior do que as mudanças que provocam a paralisação”, disse Boers ao jornal Washington Post.

Ilustração de floresta pegando fogo com galões de petróleo.
Clique na imagem para abrir o infográfico. (Andressa Meissner/Superinteressante)

Pesquisadores da Universidade da Califórnia e Universidade de Wisconsin projetaram o que pode acontecer na Europa se a Corrente do Golfo for interrompida (6). Nesse cenário, os invernos europeus poderiam ficar até 7 graus mais frios. É uma mudança gigantesca, que certamente teria consequências globais  – e mudaria muito a vida no Velho Continente, que recebe 25% de todo o seu calor oceânico via Corrente do Golfo. Sem contar a repercussão para a vida marinha: a AMOC distribui calor por toda a Bacia do Atlântico, mas também matéria orgânica e nutrientes que sustentam diversas espécies. “A AMOC é um regime instável, suscetível a grandes mudanças em resposta a perturbações”, alertam os autores.

Uma eventual parada mexeria até com o El Niño. “Estudos de modelagem mostraram que uma paralisação da AMOC resfriaria o Hemisfério Norte e diminuiria as chuvas na Europa, podendo também afetar as oscilações naturais das temperaturas de superfície do Oceano Pacífico, um fenômeno conhecido por El Niño Southern Oscillation (ENSO), que tem influência em todo o clima do planeta”, diz Moacyr Araújo, da UFPE. 

O ENSO se divide em duas fases: uma de aquecimento do Pacífico Oriental e outra de resfriamento. Essa alternância controla o ciclo de chuvas e secas em pontos tão distantes quanto o Brasil, a costa leste da África, a Índia e a Austrália. Com o rompimento desse sistema, as chuvas de monções na Índia, vitais para a agricultura local, diminuiriam, e as colheitas da América do Sul também sofreriam.

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Mas ainda não é possível saber quando – e se – a Corrente do Golfo vai parar. Pode levar décadas, séculos, ou simplesmente não acontecer. “Apesar de todas as evidências da desaceleração, os cientistas ainda estão longe de conseguir definir, com a segurança necessária, o nível de aquecimento global no qual a AMOC estaria em risco de colapso”, diz Moacyr Araújo.

Os pesquisadores do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), que se debruçaram sobre o tema em 2019 (7), ainda consideram pouco provável um colapso total. Mas advertem que mesmo uma desaceleração mais intensa já provocaria danos enormes. Uma amostra disso ocorreu nos EUA em 2009. Naquele ano, houve um enfraquecimento um pouco mais agudo da Corrente do Golfo – e isso causou uma elevação temporária de 13 cm do mar na costa de Nova York (8).

Tudo indica que a corrente continuará enfraquecendo, já que o Ártico segue perdendo gelo numa velocidade espantosa: sua área congelada encolheu 30% entre 1979 e 2018. Nos últimos 140 anos, segundo dados do governo americano, o nível dos oceanos já subiu 22 centímetros. Ele vinha crescendo 0,14 cm por ano ao longo do século 20. De 2006 a 2015, passou a aumentar 0,36 cm anuais. Mais que o dobro.

O planeta está em perigo – e a Corrente do Golfo também. O Dia Depois de Amanhã termina com grande parte do Hemisfério Norte congelada, sem que a humanidade possa fazer qualquer coisa a não ser abandoná-lo. Isso não aconteceria na vida real: as consequências, embora bastante graves, não seriam tão rápidas e brutais quanto no cinema.

Mas a maior diferença é que, ao contrário do que acontece na ficção, existem medidas que podemos tomar para evitar um colapso climático. Elas vão exigir um esforço global sem precedentes, mas sua essência é arrebatadoramente simples: basta parar de queimar coisas e encher a atmosfera de CO2.

***

Fontes

(1) Measuring the Atlantic Meridional Overturning Circulation at 26°N. GD McCarthy e outros, 2015. (2) Exceptional twentieth-century slowdown in Atlantic Ocean overturning circulation. S Rahmstorf e outros, 2015. (3) Observed fingerprint of a weakening Atlantic Ocean overturning circulation. L Caesar e outros, 2018.

(4) Anomalously weak Labrador Sea convection and Atlantic overturning during the past 150 years. DJR Thornalley e outros, 2018. (5) Observation-based early-warning signals for a collapse of the Atlantic Meridional Overturning Circulation. Niklas Boers, Nature Climate Change, 2021. (6) Overlooked possibility of a collapsed Atlantic Meridional Overturning Circulation in warming climate. L Wei e outros, 2017. (7) Special Report on the Ocean and Cryosphere in a Changing Climate. IPCC, 2019.   (8) An extreme event of sea-level rise along the Northeast coast of North America in 2009-2010. P Goddard e outros, 2015.

 

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