Você deve comer 2.000 calorias por dia? Conheça a história por trás do número
O número grudou no imaginário popular nos últimos 35 anos. Mas ele surgiu graças a questionários pouco confiáveis.

Nem todo mundo está preocupado com números, mas você já deve ter se perguntado quantas calorias existem em um pacote de salgadinho. A tabela nutricional da embalagem mostra o número de calorias da porção ao lado de uma porcentagem com um asterisco: “Valores diários de referência com base em uma dieta de 2.000 kcal. Seus valores diários podem ser maiores ou menores dependendo de suas necessidades energéticas”.
A partir dessa informação, você começa a se assustar com algumas coisas. Um pacote de batatas chips de 115 gramas tem 650 kcal – mais ou menos um terço do valor total que uma pessoa deveria ingerir em um dia. Um combo do McDonald’s (lanche, batata e refri) com sorvete passa das 2.000 kcal. Para se manter na meta diária, você não pode comer mais nada ao longo do dia – e ainda tem que dividir a sobremesa com o colega.
Quem nunca fez algum acompanhamento médico ou nutricional talvez tenha as 2.000 calorias em mente como um guia de decisões alimentares – afinal, esse é o valor oficial recomendado nas embalagens de comida. Mas será que ele faz sentido?
Esse número surgiu nos anos 1990, quando a Food and Drug Administration (FDA), agência regulatória dos Estados Unidos, tornou obrigatória a tabela de informações nutricionais em todos os alimentos. A ideia era permitir que os consumidores tomassem decisões conscientes ao saber as quantidades de micro e macronutrientes que estavam consumindo.
O problema é que a população em geral não sabe o quanto é considerado saudável. 10 gramas de gordura saturada é muito ou pouco? O mesmo vale para sódio? Era necessário um valor de referência que pudesse ser comparado.
A ideia, então, era descobrir quantas calorias uma pessoa consome por dia, e montar as recomendações nutricionais em torno desse valor. A FDA se baseou em questionários aplicados nacionalmente pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos na época. Por telefone, os agentes perguntavam o que a família havia comido nos últimos dias.
O resultado ficava em torno de 1.600 a 2.200 kcal para mulheres, 2.000 a 3.000 kcal para homens e 1.800 a 2.500 kcal para crianças de 4 a 14 anos. Alguns consultores sugeriram que essas informações deveriam estar nas embalagens, mas a agência achou que isso só confundiria os consumidores.
A FDA chegou a uma média de 2.350 kcal. Mas acreditava-se que esse era um valor muito alto e incentivaria as pessoas a comerem em excesso – em especial, as mulheres. Em uma consulta pública, a agência propôs três alternativas que poderiam aparecer como valor diário nas embalagens: 2.000, 2.300 e 2.400 calorias. Ganhou a primeira opção.
Foi um arredondamento de 15% para baixo a partir da média obtida nos questionários. Para justificar a escolha, argumentava-se que 2.000 calorias era um valor adequado para mulheres pós-menopausa, um grupo populacional com tendência ao ganho de peso. Além disso, o número redondo poderia ser uma boa ferramenta para a educação nutricional.
O maior problema, no entanto, é que o próprio censo que embasou a FDA não é uma representação fiel da dieta americana. Pense que você fosse responder ao questionário. Você se lembra o que comeu ontem? Sabe exatamente quantas colheres de arroz e feijão colocou no prato, quantos mililitros de suco despejou no copo, a quantidade de açúcar e leite que colocou no café e quantas bolachas roubou do colega no meio do expediente? É claro que não.
Pesquisas de relato próprio são imprecisas, principalmente na área de nutrição. As pessoas tendem a subestimar o quanto comem – e, inconscientemente ou não, acabam mentindo nesses questionários. Um dos estudos mais famosos sobre o tema mostra que o valor calórico real ingerido é 31% a 38% maior do que o reportado.
O método mais eficaz de avaliar o gasto energético corporal é a técnica da água duplamente marcada (DLW, na sigla em inglês), o mais próximo que existe de um “padrão-ouro” na área. Usando esse método, a Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos verificou que homens moderadamente ativos de 19 a 30 anos gastam em média 3.080 kcal por dia. Mulheres com as mesmas características gastam 2.440 kcal em média.
E mesmo esses valores variam bastante com a idade, composição corporal e nível de atividade física do indivíduo. A diferença de gasto energético entre homens sedentários e ativos chega a ser de 1.000 kcal. Também sabe-se que o gasto calórico de uma mulher moderadamente ativa pode cair em 900 kcal entre os 30 e 70 anos. Enfim, a variação é enorme.
Então, qual desses números você deveria manter como meta diária? Provavelmente, nenhum deles. Cada pessoa possui um gasto energético único que define o quanto ela deve comer para a manutenção do peso. O ideal é passar por uma avaliação médica ou nutricional para descobrir quais são suas necessidades.
E para quem está buscando uma alimentação saudável, vale mais a pena se preocupar com a origem das calorias que você consome: se elas vêm de alimentos nutritivos in natura, como verduras e legumes; ou de fast-foods e ultraprocessados, que têm baixo valor nutricional. A resposta certa, você já sabe.
Referências: Livro Why calories count: from science to politics, de Marion Nestle
Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos
