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Varíola dos macacos: ela poderia ter sido evitada

Em 2017, um menino nigeriano foi ao médico com feridas estranhas. Ele estava infectado por uma nova cepa do vírus da varíola símia. A mesma que, agora, está se espalhando por 88 países.

Por Bruno Garattoni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 27 out 2022, 14h14 - Publicado em 18 ago 2022, 08h58

EEm 22 de setembro de 2017, o médico Dimie Ogoina recebeu um caso estranho no seu consultório em Wilberforce, na Nigéria. Era um garotinho de 11 anos com feridas no rosto e no corpo.

Podia ser catapora, mas não era – o menino já tinha contraído essa doença, e se curado, tempos antes. Ogoina suspeitou de uma doença rara: a varíola dos macacos, causada pelo vírus MPXV. Colheu amostras das lesões e mandou para teste. Deu positivo.

Era o primeiro caso no país em quatro décadas. Mas não o único: nos dois meses seguintes, apareceram 41 outros. Ogoina ficou intrigado, porque a doença estava se espalhando de forma estranha. Agora ela infectava principalmente homens jovens (não crianças, historicamente suas maiores vítimas).

Esses homens não viviam no campo, em contato com os animais selvagens que normalmente transmitem o MPXV. Moravam em cidades. E, em muitos casos, os pacientes apresentavam lesões nos órgãos genitais, um sintoma novo.

Isso levou Ogoina a suspeitar que a varíola dos macacos estivesse sendo transmitida diretamente entre humanos, o que até então era considerado muito raro, e também através de relações sexuais, não só pelo contato com a pele do doente ou objetos que ele tocou (aquele menino de 11 anos pegou a doença em casa: os médicos descobriram que dois parentes com quem morava tinham  apresentado sintomas antes dele). O MPXV estava diferente. Havia evoluído, e a doença se tornara mais difícil de conter.

Ogoina começou a tentar alertar as autoridades, e chegou a publicar um estudo a respeito no jornal científico PLoS, um dos mais importantes do mundo. Não só não foi ouvido, como sofreu pressões do governo para ficar quieto. “Me disseram para não falar que a transmissão sexual era possível”, revelou ele agora, em 2022, à emissora americana NPR.

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Em 2018, a varíola dos macacos sumiu da Nigéria. Segundo Ogoina, isso foi uma ilusão: as autoridades simplesmente foram parando de testar os doentes, o que derrubou o número oficial de casos.

Mas o vírus continuou se propagando – até que, em 2022, explodiu para o mundo. Análises genéticas confirmaram que o MPXV do surto global (até a conclusão deste texto, havia 30 mil casos confirmados em 88 países) pertence à cepa nigeriana de 2017. Ou seja: o que está acontecendo agora poderia ter sido evitado.

Se as autoridades nigerianas tivessem isolado os primeiros infectados e vacinado as pessoas que tiveram contato com eles (se aplicada rapidamente, a vacina funciona mesmo após a exposição ao vírus), a cadeia de transmissão teria sido quebrada. Essa técnica se chama “vacinação em círculo” – e teria impedido que, hoje, o mundo estivesse sob ameaça de mais uma pandemia.

Ok: quando a varíola dos macacos apareceu na Nigéria, o país não tinha disponível uma vacina. Mas os Estados Unidos sim – e de sobra. Ela fora desenvolvida e fabricada uma década antes, na esteira do 11 de Setembro.

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Os ataques bioterroristas

Todo mundo tem gravados na memória os atentados contra o World Trade Center, em Nova York. Mas bem menos gente se lembra de outro ataque, que começou uma semana depois. Em 18 de setembro, os escritórios dos senadores americanos Tom Daschle e Patrick Leavy, bem como as redações do jornal New York Post e da emissora NBC, receberam cartas com um enigmático pó branco.

Enigmático e letal. Eram esporos da bactéria Bacillus anthracis, ou antraz, que causam uma infecção fulminante se inalados ou absorvidos pela pele. Vinte e duas pessoas entraram em contato com o pó. Cinco morreram. Além de causar pânico, aquilo mostrou que os Estados Unidos estavam vulneráveis ao bioterrorismo.

E havia gente interessada em praticá-lo: em 2002, soldados americanos invadiram um complexo que pertencia à Al Qaeda, no Afeganistão, e encontraram anotações sobre o desenvolvimento de armas biológicas.

O governo americano identificou que a varíola, erradicada em 1980, era a maior ameaça – porque, além de ser muito contagiosa, mata 30% dos infectados. Então as autoridades contrataram a empresa Emergent BioSolutions para desenvolver uma nova vacina, a ACAM2000. Ela é feita com o vírus VACV – um parente próximo do VARV, que causa a varíola. Por isso, protege contra essa doença. E também contra o MPXV, da varíola dos macacos.

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A vacina foi aprovada em 2007, e os americanos começaram a produzi-la aos montes: em 2010, já tinham mais de 200 milhões de doses guardadas. A ideia não era sair imunizando toda a população, porque a ACAM2000 tem um porém.

Assim como sua antecessora, a Dryvax, ela contém vírus VACV “vivo” e íntegro – ele não é inativado nem enfraquecido, como nas vacinas contra outras doenças. Isso significa que, em casos raros, a ACAM2000 pode ter efeitos colaterais graves (com o surgimento de lesões que se espalham pelo corpo, podendo matar). Só deve ser usada se houver real necessidade – como num ataque bioterrorista. Ou o surto nigeriano de 2017.

Agora é tarde, e será difícil parar a doença. Primeiro porque, ao contrário da Covid, ela tem um ciclo bem longo. Fica incubada e assintomática por 1 a 3 semanas – e depois que as lesões aparecem, a pessoa se torna contagiosa por 2 a 4 semanas, até que as feridas cicatrizem totalmente.

É bastante. Tanto que o Centers for Disease Control americano já admitiu que nem sempre os infectados irão se isolar durante todo esse tempo – e recomendou que pelo menos cubram as lesões e usem máscara quando saírem de casa.

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Se não conseguimos controlar a Covid, que dura menos e não é transmissível pela pele ou relações sexuais, o que será da varíola dos macacos? Enquanto ela ganha impulso, o mundo vive outro drama: a escassez da vacina Jynneos, que foi desenvolvida pelo laboratório dinamarquês Bavarian Nordic e é a melhor opção contra a doença (ela é feita com vírus atenuado, e por isso é mais segura do que a ACAM2000).

A empresa tem capacidade de produção bem limitada. Os EUA, que começaram a vacinar indivíduos do grupo sob maior risco da doença (homens que fazem sexo com homens), já estão ficando sem doses da Jynneos – e só devem receber mais a partir de outubro.

O maior problema, assim como na pandemia de Covid, não é científico. É político e econômico. A medicina já tem armas contra a variola símia. Mas o mundo não consegue distribuí-las. Elas não estão chegando à maioria dos países, agora, e não chegaram à Nigéria em 2017 – o que acabou deflagrando a crise atual. Situações como essa mostram bem como a desigualdade pode ser uma doença social grave. Tão grave quanto os piores vírus.

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