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Vá pastar

O homem pode comer milhares de plantas, mas só algumas dezenas estão disponíveis no mercado. Conheça o vasto mundo de alimentos nutritivos que estão aí, brotando em terrenos baldios perto da sua casa. É hora de comer mato

Por Alexandre de Santi
Atualizado em 31 out 2016, 18h31 - Publicado em 26 Maio 2014, 22h00

Quando pega a estrada, Valdely Kynupp olha para o canteiro ao lado da pista e enxerga um supermercado. O mato que, para o motorista comum, parece apenas fruto da má conservação das rodovias brasileiras, tem valor nutricional para esse botânico, pesquisador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam). Ele vê taboas, uma planta aquática típica de banhados, e imagina uma salada. O pólen da taboa, que tem seis vezes mais vitamina C que a laranja, pode ser comido puro, de colher. Ou junto com iogurte.

Kynupp tem uma paixão por alimentos alternativos. Em sua tese de doutorado, estudou 1,5 mil inços, pragas e ervas daninhas na região metropolitana de Porto Alegre. Concluiu que 311 (cerca de 20%) tinham potencial alimentício. Isso é muito mais do que costumamos comprar na feira ou no supermercado. A FAO, o órgão das Nações Unidas para alimentação e agricultura, estima que a demanda mundial por alimentos dependa de 150 espécies, sendo que apenas 12 delas são responsáveis por 75% de tudo o que nós comemos. Nossa variedade alimentícia não é tão variada assim: arroz, milho e trigo fornecem metade de toda a energia alimentar do planeta (incluído aí o que é destinado para ração animal).

Mas nem sempre foi assim. A FAO calcula que, ao longo da história, 7 mil espécies foram cultivadas para fins alimentares. Os critérios sobre o que é comestível variam conforme as culturas e a passagem do tempo, mas uma das mais completas listagens está no livro Plants for Human Consumption (“plantas para consumo humano”, sem edição no Brasil), de Günther Kunkel. Na obra, o botânico alemão contabilizou 12,5 mil espécies potencialmente alimentícias. O número pode ser ainda maior. Um dos mais respeitados estudiosos da área, o ecologista argentino Eduardo Rapoport, estima em 27 mil as plantas que podem ser servidas na mesa. Então, quando Kynupp olha para a beira da estrada, não enxerga apenas um palmito alternativo com valor nutricional. Ele vê um enorme potencial desperdiçado. As plantas alimentícias não convencionais, conhecidas por uma sonora sigla (pancs), poderiam enriquecer em nutrientes e baratear em custo a dieta do brasileiro.

Dentro das caravelas que chegaram às Américas, os europeus trouxeram sementes das suas espécies favoritas, como arroz e trigo. E o gosto do colonizador venceu a cultura dos índios, que se alimentavam do que a natureza oferecia ao seu redor. Cinco séculos depois, cerca de 52% das espécies mais consumidas no mundo vêm da Europa e da Ásia. Para cultivá-las em ecossistemas estrangeiros, agricultores do mundo todo fazem uma ginástica enorme, gastando bilhões de dólares em preparação do solo, sementes modificadas e pesticidas. O Brasil, por exemplo, importa mais de 60% do trigo que consome. E 90% da produção nacional está concentrada no Sul. Ou seja, para comer o pãozinho de cada dia, você depende de uma planta originária do Oriente Médio, que, se não foi importada da Argentina, do Uruguai ou do Paraguai, veio de um lugar do sul do País para virar farinha e cruzar milhares de quilômetros até chegar à padaria. E isso acontece no mundo inteiro. O trigo é produzido em poucas regiões do planeta – as zonas de produção são pequenas manchas no globo, principalmente na Europa, Ásia e América do Norte.

Enquanto isso, possivelmente há plantas nutritivas brotando no quintal da sua casa ou em algum terreno baldio da vizinhança. “Mas a maioria das pessoas não enxerga isso. Vê tudo como mato”, diz Kynupp, que consumiu, para fins acadêmicos, 253 das 1,5 mil espécies analisadas. São folhas, raízes, frutos e flores, entre outras partes de plantas. Em geral, as pancs, também chamadas de hortaliças negligenciadas ou subutilizadas, são mais amargas que as verduras compradas no supermercado. Algumas são levemente tóxicas. Mas o risco depende da sensibilidade de cada pessoa, do modo de preparo e, também, de quem colhe as plantas. “Quem mora na zona rural sabe diferenciar uma planta da outra, assim como quem mora na cidade tende a diferenciar marcas de carros”, exemplifica Kynupp. Grande parte das plantas alimentícias não-convencionais também são consideradas “ruderais”, ou seja, vegetais adaptados às cercanias das construções humanas, que se aproveitam dos restos de outros vegetais ou animais para crescer. São pragas que prosperam em solos ricos em nitrogênio, mas que possuem grande concentração de proteína.

E é aí que reside o grande argumento dos defensores dessas plantas. Certo, elas são muito amargas e algumas são pragas tóxicas. Mas elas são muito nutritivas. “O Brasil é um dos países mais biodiversos do planeta, mas a nossa alimentação ainda é muito pobre. A gente come de dez a 20 plantas por dia, cerca de cem ao longo de um ano inteiro. Isso é pouco”, diz Kynupp. “E quase tudo que a gente come não é brasileiro. A gente fala muito da biodiversidade brasileira e come a biodiversidade dos outros”.

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O discurso é saboroso, mas, na prática, a valorização das espécies silvestres ainda está restrita aos círculos acadêmicos e ao setor mais hardcore das feiras de alimentos orgânicos. Em 2010, o Ministério da Agricultura lançou o Manual de Hortaliças Não-Convencionais, com orientações para cultivo e preparo de 23 espécies, entre elas o jacatupé, chuchu-de-vento, beldroega e ora-pro-nóbis. Este último é um dos poucos alimentos não tradicionais que têm relativa popularidade, especialmente em Minas Gerais, onde há até um festival gastronômico, em Sabará, dedicado à planta.

Em maio do ano passado, a FAO manifestou preocupação com a diversidade alimentar e recomendou o consumo de insetos como fonte de proteína. Mas por que insetos e não pancs? Besouros e grilos ganharam atenção porque são saudáveis e a criação é barata. Para produzir a mesma proteína, o grilo precisa de um volume de alimentação 12 vezes menor que o gado, por exemplo. Além disso, ao contrário de plantas verdinhas, insetos são nojentos, então eles precisam de um incentivo, de uma campanha mais convincente para serem popularizados.

Estudos apoiam a tese do potencial nutricional das variedades rústicas. Jo Robinson, jornalista e autora do recém-lançado livro Eating on the Wild Side (“comendo no lado selvagem”, sem edição no Brasil), dá um exemplo: um dente-de-leão selvagem tem sete vezes mais fitonutrientes do que o espinafre, que, como sabe quem via Popeye, é um superalimento. Os fitonutrientes ajudam a combater o câncer, doenças cardiovasculares, diabetes e demência.

Ainda há o caso de alimentos tradicionais que perderam potencial nutritivo, como o milho. Nas últimas décadas, ele vem sendo selecionado para ser mais doce, o que permite a produção de etanol. Hoje, quase 40% do milho é açúcar. A padronização cresce e nosso acesso a culturas alimentares diferentes diminui.

Mas ainda há muito a explorar, espepecialmente entre essas espécies excluídas. Um passeio pelo Jardim Botânico de Porto Alegre ajuda a entender o que o aventureiro pode esperar de uma colheita silvestre em terreno urbano. O picão-preto, que tem folhas similares às de hortelã, nasce no meio da grama e tem sabor suave. Serralha lembra uma rúcula, mas não muito amarga. O sabor picante e doce é a marca das folhas da capuchinha, cuja flor já é usada como decoração de saladas. O picão-branco tem leve amargor e lembra o manjericão na aparência. Nenhuma dessas espécies é repugnante. A degustação não convencional foi acompanhada de uma conhecedora do tema, a diretora executiva do Jardim Botânico, Andréia Carneiro, especialista em pancs. Não por acaso, Andréia conviveu com Kynupp. “O Valdely fazia suco de cacto, que é a coisa mais nojenta do mundo”, lembra. “Ele come qualquer porcaria”.
Andréia, diferentemente de Kynupp, não recomenda uma expedição gastrômica silvestre sem o acompanhamento de um especialista. “É difícil reconhecer as plantas se tu não és botânico”, avisa. Além do mais, a tolerância aos sabores rústicos e ao nível de toxinas varia para cada pessoa. O amargor marcante em grande parte das folhas indica um dos maiores benefícios de incluir plantas negligenciadas na dieta. Segundo Andréia, o gosto forte revela a presença de compostos secundários na planta, que deixam os alimentos mais nutritivos. Em alguns casos, porém, isso indica o nível de toxidade da planta. “É um aviso da natureza”, ensina. Portanto, cuidado na colheita.

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Experimente

Plantas não convencionais que podem ir para sua salada

Chuchu-de-vento

Famoso no Peru. Pode ser consumido cru, frito, ou cozido. O fruto é amargo adocicado. Acompanha carnes e molhos.

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Encontre – É uma trepadeira, então precisa de espaço. É raro vê-lo em uma calçada.

Beldroega

Boa para a salada. Os talos e folhas podem ser consumidos crus ou como sopas, sucos ou caldos, que ficam cremosos.

Encontre – Os ramos e folhas são pequenos e podem ser encontrados em qualquer solo rico em matéria orgânica – até mesmo em terrenos baldios.

Ora-pro-nóbis

Cacto com jeito de trepadeira, é popular em Minas, onde é consumido em angus, sopas, mexidos e omeletes.

Encontre – Em tudo que é lugar. Precisa de pouca água e sobrevive em condições extremas.

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Serralha

Conhecida também como chicória-brava, as folhas, quando tenras, combinam com salada verde.

Encontre – Comum em terrenos abandonados, próximo a muros e cercas. É uma erva resistente que não chega a 1 metro de altura.

Jacatupé

Consumido na Amazônia Ocidental. As raízes podem ser comidas cruas, cozidas ou defumadas. É possível fazer polvilho das raízes para bolos e tortas.
Encontre – Mais difícil. É uma trepadeira comum em cabeceiras de rios da Amazônia.

 

Como não morrer comendo mato em 5 passos

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1. Por partes

Algumas plantas são, sim, tóxicas. Mas as toxinas ficam mais perigosas à medida que são ingeridas em maior quantidade. O melhor a fazer é provar um pequeno pedaço. Se agradar, continue. Se parecer repugnante ou extremamente amargo, cuspa.

2. Gostinho amargo

É um tema polêmico entre os apreciadores, mas o alto amargor pode indicar risco. Seria um aviso da natureza, aprimorado em milênios de coleta pelos nossos ancestrais.

3. Fibras

Evite folhas ou caules muito fibrosos. Você terá dificuldade de mastigar e digerir. Se for pouco flexível, passe adiante.

4. Confie nos entendidos

Quem já viu o filme Na Natureza Selvagem sabe do risco de confiar em livros e ilustrações para escolher o mato certo. Prefira ouvir botânicos, especialistas na flora local ou manuais de plantas comestíveis se estiver em dúvida.

5. Ponha na panela
Algumas plantas são difíceis de comer e até tóxicas quando cruas, mas se tornam palatáveis depois de cozidas. Cada caso é um caso, é claro, mas os riscos costumam diminuir quando as plantas vão ao fogo.

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