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Terra de trigo

É um dos alimentos mais antigos da história e o mais difundido do mundo. É também a principal fonte de calorias de origem vegetal consumidas pelo homem. Assombra pela variedade: há quem fale em 30000 tipos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h01 - Publicado em 31 jul 1990, 22h00

Depois do fruto da árvore do bem e do mal, que despejou Adão e Eva do Paraíso, fala do trigo a mais antiga referência literária a respeito da história do alimento. Provas arqueológicas efetivamente atestam sua presença numa das mais remotas moradas conhecidas da humanidade, em Jarmo, no nordeste do que hoje é o Iraque, antiga Mesopotâmia, por volta de 7 000 a.C. Desde então, o produto se espalhou planeta afora — e não existe latitude ou longitude em que ele não germine. Existe trigo em Jericó, no Oriente Médio, 250 metros abaixo do nível do mar. E existe trigo no Tibete, na Ásia Central, 3 500 metros acima. Por sua tolerância espetacular, o trigo medra nas temporadas invernais, geladas da Islândia e também no calor selvagem da Etiópia. Na verdade, não se pode descrever nenhuma espécie de comida mais abrangente ou mais importante. Nem mesmo um irmão seu, o arroz.

No globo todo, a matéria-prima essencial é sempre um grão. Pelo menos a metade dos solos cultivados da Terra se entrega a um gênero de cereal. Graças ao cereal a humanidade absorve aproximadamente 80% das calorias de que precisa. O trigo providencia 2/5 desse bolo. Mesmo nas duas nações mais superpovoadas e simultaneamente entre as menos bem alimentadas do planeta inteiro — a Índia e a China. Quase 55% das propriedades cultivadas da Áustrália abrigam trigo. A sua plantação ajuda a sustentar vibrantemente as economias de países prósperos como os Estados Unidos e o Canadá. E cresce trigo de excelente qualidade em regiões tão diferentes como Cuba, Egito e Afeganistão.

Foi na Ásia, aliás, entre o Afeganistão e Israel, que o trigo se originou, naturalmente, em tempos imemoriais. Depois, provavelmente durante o Neolítico (entre 10 000 e 7 000 anos atrás), passou a ser semeado com alguma organização. Hoje, parece impossível acertar o número das suas variedades. Um botanista alemão, Helmuth Pelshenke, contabilizou 12 000. O cientista soviético Nicolai Vazilov, mais meticuloso, anotou 30 000. Toda essa multiplicidade — que alívio! — deriva de apenas duas raízes, o chamado trigo duro, ou Triticum durum, e o trigo comum, aquele que se utiliza na farinha de pão, o Triticum vulgare. Curiosamente e espetacularmente, do T. durum não se conhece nada além de dez ou doze derivações. Todas as outras fazem parte da genealogia do T. vulgare — entre as quais, perdida pela eternidade, certamente se situa a matriz da raça, a espécie espontânea de milênios atrás.

Na tentativa de colocar alguma ordem nessa imensa confusão, botânicos modernos acabaram dividindo os tipos de trigo em pelo menos três categorias, de acordo com o número de cromossomos encontráveis nas suas células de reprodução: sete, catorze ou 21 pares. As variedades primitivas, segundo essa proposição, ostentariam meros sete pares, como uma curiosa e prosaica planta etíope, em cuja espiga se aloja um único grão. As derivações do T. vulgare, por sua vez, se provam mais sofisticadas — em geral carregam catorze pares. No seu departamento seguramente se localiza o trigo bíblico, o Kussemeth de Abraão. Também o T. durum dispõe de catorze pares. A espécie é costumeiramente apelidada “trigo de macarrão”, porque com ela os árabes e os sicilianos principiaram a perpetrar as suas massas nos entornos de 1100,1200 depois de Cristo.

Daí, um degrau acima, despontam os tipos de 21 pares, os híbridos contemporâneos — na verdade, aqueles dos últimos 2 000 anos que, por intenção ou acidente, desde os idos dos gregos e dos romanos, foram-se misturando e se aperfeiçoando. Por causa dessa verdadeira orgia de casamentos genéticos, descontrolados e não codificados, o cultivador de trigo, ao semeá-lo, raramente sabe que variedade, posteriormente, irá colher. O processo é enlouquecedor. Há ocasiões em que todas as sementes parecem exatamente iguais de um tipo perfeitamente identificado e determinado. Então, ceifadas as espigas, se percebe que os grãos não oferecem uniformidade no formato, no tamanho ou mesmo na cor. Em geral, despontam, por exemplo, grãos amarelos e grãos vermelhos. Só que a sua proporção não se repete — ela se modifica, sim, doidamente, a cada nova safra.

Para complicar ainda mais a situação, os produtores americanos idealizaram a sua própria e independente classificação, a saber:

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Trigo duro, vermelho, de inverno — De elevado teor de proteínas, utilizado na farinha de pães ultrafermentados e rijos.

Trigo duro, vermelho, de primavera — Com mais proteína ainda, utilizado no mesmo gênero de fabricação de pães, como os italianos.

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Trigo duro, claro — Utilizado no macarrão.

Trigo branco — Utilizado em pães não-fermentados, massas para bolos, confeitos, bolachas e macarrão de segunda linha.

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Trigo mole de inverno — Utilizado pouco seletivamente em pães, bolos, bolachas e confeitos de segunda linha.

As características de cada tipo ficam mais compreensíveis quando se analisa um grão de trigo e se descreve a sua composição interior. Fundamentalmente, um grão de trigo é formado por sua casca, por um endosperma e por um germe. A casca representa 14,5% do peso. O endosperma, 83%. O germe, 2,5%. Cada uma dessas partes difere da outra em termos de formulação química. O germe, no núcleo do grão, tem menos sais minerais e vitaminas; como acontece com a maioria dos cereais, o teor de tais substâncias diminui de fora para dentro. A moagem do trigo objetiva, basicamente, retirar a casca e separar o endosperma do germe. Do endosperma se consegue a farinha, em todas as suas possibilidades. Grosso modo, o endosperma de um trigo duro contém uma quantidade superior de amido. No processo de industrialização da farinha, que leva à fabricação do macarrão, esse amido se gelatiniza no cerne da massa, fazendo com que ela resista bem mais tempo às operações de cozimento — obtendo-se, assim, o chamado ponto al dente. Ao contrário, num macarrão com menos teor de amido, a massa amolece e às vezes se desfaz.

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Foi o ato instintivo da mastigação que sugeriu ao homem primitivo a idéia de esmagar os grãos de trigo entre duas lascas de rocha. Com o correr das décadas, a parcela inferior da pedra se transformou em cavidade, o princípio da teoria do pilão. Inicialmente, no nomadismo, usavam-se obviamente lascas portáteis. Quando o homem se assentou, sedentário, bateu-lhe a luz de trabalhar com peças bem maiores. Estava criado o moinho. Então, choveu. A água que se mesclou à farinha a transformou numa pasta macia. E essa pasta, depois de seca e autofermentada ao relento, se mostrou interessantemente comestível. Estava pronto o pão — sem querer.

Para a ocorrência desse resultado, contribui crucialmente um dos componentes do trigo, o glúten, matrimônio de duas proteínas que se tornam formidavelmente elásticas em contato com a umidade e o calor. Mais proteínas, logo, mais elasticidade. Mais elasticidade, mais espaços aerados no corpo da massa. Pois são esses espaços que induzem ao alojamento das leveduras, comunidades autoproliferantes que levam ao crescimento da massa. O homem primitivo não sabia disso. Apenas, por habitar cavernas, casas de pedra ou de madeira, cenários superlotados de fungos e de leveduras, a sua massa aumentava de volume sem esforços particulares. Alguém, mais esperto com certeza, um dia descobriu a maravilha de injetar os fungos recolhidos de uma parede ou de um tronco na sua pasta de trigo moído e água — e se encantou com a conseqüência sensacional, a massa que aumentava três, quatro vezes o seu peso inicial.

Graças a essa peculiaridade rara, o trigo se transformou em parceiro obrigatório da evolução da humanidade. O cidadão do Neolítico já cultivava o trigo nos entornos de 7000 antes de Cristo, na região da Mesopotâmia, junto aos rios Eufrates e Tigre. A linguagem sumeriana, datada de 3100 a.C., gloriosamente informa que o homem de então já conseguia perpetrar oito bebidas diferentes, fermentadas a partir do trigo, possivelmente as mamães de todas as cervejas. A civilização sumeriana, aliás, chegava ao requinte de irrigar as suas plantações, de maneira a garantir as colheitas nas estações das secas. E a fascinação das tradições prossegue.

Por que motivo o pão sagrado dos hebreus, a matzá, não possui nenhum fermento em sua composição? Simplesmente porque os seguidores de Moisés se compeliram a fugir às pressas dos seus escravizadores no Egito. Na correria, não tiveram como acrescentar as leveduras de costume às suas massas, o seu farnel de viagem. Sobreviveram, de todo modo, com altanaria. E até hoje comemoram a façanha em sua Páscoa com a matzá sem fermento. Os fenícios denominaram um deus, Dagon, em honra do trigo. Atenas se transformou em uma potência marítima por causa da sua carência geográfica do produto — os gregos necessitavam buscá-lo além-oceano, no Oriente Médio. Nas suas assembléias populares, que se realizavam dez vezes a cada ano, os helênicos invariavelmente começavam os debates pelas análises dos relatórios a respeito dos estoques da preciosidade.

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Roma assumiu o controle do Mediterrâneo nos arredores de 400 antes de Cristo porque uma derrota ateniense, em Siracusa, na ilha da Sicília, destruiu inteira a frota grega e Ihe cortou os suprimentos de trigo, alimento indispensável à disciplina dos seus soldados. O expansionismo imperial de Roma, então, levou o trigo do Oriente Médio à Europa inteira. E o expansionismo imperial da Europa, através das navegações do século XVI, levou o trigo ao Novo Mundo. Cristóvão Colombo, pessoalmente, plantou as primeiras sementes nas Antilhas, em Isabela, Porto Rico. Os mesmos espanhóis desembarcaram o produto na Argentina. Aliás, o trigo não exige práticas especiais, cresce depressa e não pede muitos cuidados de conservação, principalmente nos climas temperados. Agüenta o frio e o calor — e apenas se incomoda quando o excesso de umidade se acompanha, simultaneamente, do excesso de temperatura. Ironia. O problema não ocorre porque essa dupla ação iniba o seu crescimento, muito ao contrário. Acontece porque o trigo se desenvolve excessivamente. Tanto, que sobe glorioso aos céus, numa luxúria visual de verdes — e não se preocupa em formar espigas.

Para saber mais:

A reabilitação do tomate

(SUPER número 10, ano 3)

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