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Por que a China passou tanto tempo tentando zerar a Covid?

Foram quase três anos de medidas duríssimas, na contramão das políticas mais flexíveis adotadas pelos países ocidentais. Por que? Há quatro hipóteses. E uma é especialmente preocupante.

Por Bruno Garattoni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 20 dez 2022, 11h49 - Publicado em 15 dez 2022, 14h57

Placas de metal e cercas de arame farpado protegiam as fronteiras da cidade, para impedir que entrasse gente de fora – enquanto guardas em checkpoints controlavam o movimento dentro dela. Poderia ser uma cena da Berlim pós-Segunda Guerra Mundial, partida em duas, a não ser por um detalhe: os testes de Covid que a população era obrigada a fazer, em barraquinhas montadas pelo governo, várias vezes por semana. Segundo a agência Bloomberg, que esteve no local, assim era a vida em Ruili, cidade que fica na fronteira da China com Mianmar e foi o maior alvo dos lockdowns: sofreu nada menos do que sete deles.

Após uma série de protestos em várias cidades chinesas, no fim de novembro, o governo do país finalmente relaxou as medidas anti-Covid. Os infectados com sintomas leves ou nulos podem ficar em casa, não são mais obrigados a ir até os chamados “centros de quarentena” que foram construídos em todo o país (só na metrópole de Guangzhou, onde recentemente houve um surto de Covid, as autoridades pretendiam ampliar os seus, adicionando 115 mil novas vagas).

Não é mais necessário apresentar um teste negativo para usar o transporte público nem para fazer voos domésticos. E os lockdowns cobrindo cidades inteiras foram banidos. O que continua valendo: quem chega do exterior ainda precisa ficar um mínimo de 10 dias em quarentena. E, se um prédio for considerado de “alto risco”, com muitos casos de Covid, ele pode ser isolado. É meio que só isso.

Uma grande mudança em relação às quarentenas impostas nos últimos três anos, que foram brutais – e acabaram rendendo algumas histórias terríveis. Em Zhengzhou, um bebê de quatro meses morreu durante uma delas, em novembro: os pais tiveram que insistir muito para poder levá-lo ao hospital, e só conseguiram permissão tarde demais. Em Urumqi, no norte do país, dez pessoas morreram no incêndio de um edifício residencial. Como o prédio estava sob quarentena, as autoridades demoraram para permitir a entrada dos bombeiros.

Uma série de casos assim (também houve o de uma garota de 14 anos, que morreu em outubro após ter convulsões num centro de quarentena em Ruzhou), mais o cansaço natural do povo chinês com as restrições intermináveis, detonaram os protestos nas ruas de oito cidades, incluindo Pequim, Xangai e Wuhan, que acabaram forçando o governo a afrouxar as medidas anti-Covid.

Mas por que a China demorou tanto para fazer isso, sendo que o resto do mundo já abandonou a maioria das restrições sanitárias há um bom tempo? Só Xi Jinping e seus ministros poderiam responder com certeza. Mas há quatro hipóteses.

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Primeira: as vacinas. Segundo os dados oficiais, cerca de 90% da população chinesa está vacinada. Entre os idosos acima de 80 anos, só 65% – mas alcançar os 35% restantes seria bem mais fácil e tranquilo do que continuar controlando toda a sociedade.

O problema é que até hoje a China não tem vacinas de mRNA: a empresa chinesa Walwax Biotech está desenvolvendo uma do tipo, mas ela ainda não foi aprovada. Por questões geopolíticas, o país não vai comprar imunizantes dos EUA.

Então, por enquanto, ele tem se virado com duas vacinas de vírus inativado, a Coronavac e a Covilo, e uma de vetor viral (mesmo princípio da vacina da AstraZeneca), a Convidecia. Elas têm seu valor – mas não protegem tanto quanto as vacinas de mRNA. E as autoridades chinesas podem ter levado isso em conta.

O segundo motivo é o chamado “débito imunológico”. Quando você isola as pessoas, impede a circulação de vírus entre elas. O objetivo é esse mesmo, afinal. Só que isso também gera um represamento – já que, como o vírus não circula, as pessoas não vão sendo infectadas e criando imunidade a ele (ou ficando doentes e morrendo).

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Nos últimos três anos, a China não teve as grandes ondas de casos e óbitos que o resto do mundo já enfrentou. Ainda não “pagou o preço” da Covid. Ao liberar tudo agora, muito provavelmente ela terá uma avalanche de casos – e, mesmo com as vacinas, mortes.

A população da China é gigantesca, o que potencializa esse efeito. Se o Sars-CoV-2 matar 0,1% dos infectados (como na Nova Zelândia e na Coreia do Sul, os dois países em que a Covid tem menor letalidade no mundo hoje (1)), e metade dos chineses for infectada, o país terá 700 mil vítimas fatais – a mesma quantidade que o Brasil acumulou ao longo da pandemia (incluindo o período mais crítico, antes das vacinas).

Para piorar, a China tem poucos leitos de UTI: são 4 a cada 100 mil habitantes, bem menos que os EUA (34) ou mesmo o Brasil (21).

Também há um fator político. A população chinesa aceitou os lockdowns e demais medidas sanitárias porque foi convencida de que são necessários.

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Com o governo mudando sua política, e adotando uma postura parecida com a ocidental, haverá uma alta de casos. E as pessoas poderão pensar: então por que nos fizeram sofrer tanto nos últimos anos? As autoridades precisariam de algum motivo, ou no mínimo um pretexto convincente, para justificar uma guinada de abertura. Esse elemento não existia – ele só se materializou em novembro, com a onda de protestos.

A última hipótese é a mais perturbadora, porque também diz respeito à população dos demais países. Talvez as autoridades chinesas tenham lutado tão duramente contra a Covid porque temam os efeitos da doença no futuro.

Existe a chamada Covid longa (que atinge em média 10% dos infectados, metade deles de forma grave), que pode deixar sequelas cardiovasculares e neurológicas.

Mas também há outro risco, ainda mais sinistro: nos últimos anos, alguns estudos encontraram indícios de que a doença pode enfraquecer o sistema imunológico.

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Um desses trabalhos, publicado por cientistas de três universidades inglesas (2), constatou que, seis meses após a Covid, pessoas curadas da doença apresentavam alterações na sua população de células T (cuja função é matar células infectadas e regular a resposta imunológica do organismo), o que poderia “afetar a imunidade a longo prazo”.

Os pesquisadores só acompanharam pessoas que tiveram Covid grave, e chegaram a ser internadas.

Mas um segundo trabalho, que avaliou casos leves e moderados da doença, também encontrou disfunções imunológicas (3): oito meses após a infecção, os indivíduos analisados tinham baixos níveis de células B e T do tipo naive (capazes de enfrentar patógenos “novos”,  ou seja, que a pessoa nunca pegou).

Além disso, o estudo detectou sinais da chamada “exaustão das células T”, em que elas vão perdendo a capacidade de combater infecções. Em se confirmando, esse fenômeno poderá trazer surpresas muito ruins nos próximos anos – um risco que as autoridades chinesas talvez não aceitem.

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Com suas restrições intermináveis, a China parecia desconectada da realidade do resto do mundo. Mas não tomar nenhuma medida contra o Sars-CoV-2, e agir como se a pandemia tivesse acabado (como boa parte do Ocidente faz), também não é exatamente realista.

Os efeitos de longo prazo da Covid ainda são incertos, só vamos conhecê-los com o tempo. Talvez haja mais coisas entre o céu e a Terra, como escreveu Shakespeare, do que supõe nossa vã filosofia.

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Fontes  (1) https://ourworldindata.org/mortality-risk-covid. (2) Alterations in T and B cell function persist in convalescent COVID-19 patients. M Menon e outros, 2021. (3) Immunological dysfunction persists for 8 months following initial mild-to-moderate SARS-CoV-2 infection. G Matthews e outros, 2022.

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