Pela primeira vez, cirurgiões transplantam rim de porco em um humano
Nos EUA, paciente com morte cerebral recebeu órgão de um animal criado a partir de edição genética – e que passou a funcionar imediatamente. Entenda.
Na última terça (19), cirurgiões americanos afirmaram ter realizado com sucesso o transplante do rim de um porco a um paciente humano diagnosticado com morte cerebral – em suporte artificial de vida e sem possibilidade de recuperação. O feito inédito, considerado um marco por especialistas na área, foi relatado ao jornal USA Today.
A cirurgia foi realizada no dia 25 de setembro no centro médico Langone Health, da Universidade de Nova York. Segundo o médico Robert Montgomery, que liderou o procedimento, o paciente foi observado durante um período de 54 horas e nenhum sinal de rejeição foi detectado. Pelo contrário: o rim passou a funcionar normalmente, produzindo urina e eliminando creatinina, substância produzida pelos músculos e que é despachada por esse órgão.
O rim veio de um porco geneticamente modificado, desenvolvido pela empresa americana de biotecnologia Revivicor e aprovado pela FDA (agência regulatória dos EUA, semelhante à nossa Anvisa) em dezembro de 2020 para uso como alimento ou potencial fonte para tratamentos humanos.
Mas, afinal: por que um porco?
Transplantes são procedimentos delicados. A inserção de um órgão estranho em outro organismo pode provocar respostas negativas do sistema imunológico do receptor – e levar à sua rejeição. Por isso, os cirurgiões sempre consideram a histocompatibilidade entre doador e receptor, por exemplo – ou seja, a chance de as partes envolvidas darem um match genético. O procedimento é ainda mais complicado no caso dos xenotransplantes, realizados entre espécies diferentes.
(Calma, nós falaremos mais sobre isso em breve. Por ora, tenha em mente que a técnica é frequentemente considerada o futuro dos transplantes – afinal, ela poderia driblar a falta de órgãos humanos disponíveis.)
De volta aos porcos. Acontece que eles são um dos animais mais promissores para os estudos de xenotransplantes, uma vez que alguns de seus órgãos são bem parecidos com os nossos. Em pesquisas anteriores, tanto os rins quanto o coração de porco já foram transplantados com sucesso em outros primatas.
Ora, mas por que não usar outros primatas em xenotransplantes com humanos? A semelhança não seria ainda maior? Sim. Só que é mais fácil obter os órgãos dos porcos: eles são mais fáceis de criar e chegam à fase adulta rápido (em apenas um ano). Hoje, válvulas cardíacas do animal já são utilizadas para transplantes em humanos, e a sua pele pode servir de enxerto temporário para pacientes com queimaduras.
Como a cirurgia foi feita?
Para aumentar as chances de sucesso do transplante, o porco do novo estudo (apelidado de GalSafe) foi criado a partir de técnicas de edição genética que alteraram alguns genes específicos, relacionados a um carboidrato que poderia desencadear uma resposta imunológica negativa.
Os cirurgiões também transplantaram o timo do porco, uma glândula relacionada ao sistema imunológico, na esperança de evitar a rejeição pelo corpo humano.
O experimento, feito com o consentimento da família do paciente, foi uma aproximação de um transplante real. O rim foi conectado a vasos sanguíneos e artérias do paciente e ficou fora do abdômen, mas apoiado na parte superior de sua perna.
Segundo Montgomery, o órgão começou a funcionar quase imediatamente. “Foi melhor do que esperávamos. Parecia qualquer transplante [comum] que eu já fiz. Muitos rins de pessoas falecidas não funcionam imediatamente e levam dias ou semanas para isso”, afirmou o cirurgião ao jornal The New York Times.
O futuro dos transplantes
Montgomery é um dos pesquisadores que acredita no potencial dos xenotransplantes como uma boa (e promissora) alternativa à falta de órgãos humanos. “Eu acredito que corações de porcos geneticamente modificados serão os primeiros órgãos a serem transplantados para pacientes humanos [vivos]”, disse ao USA Today.
A expectativa vai de encontro a de outros pesquisadores, como o cirurgião inglês Terence English. Pioneiro em transplantes de coração no Reino Unido, ele acredita que esse procedimento entre suínos e humanos está mais próximo do que imaginamos – em 2019, ele afirmou que isso seria possível já em 2022.
Os xenotransplantes são estudados há décadas por pesquisadores ao redor do mundo, inclusive por cientistas brasileiros. Por isso, o experimento foi celebrado – mas especialistas também apontam que as perspectivas a longo prazo para transplantes assim ainda são desconhecidas.
Por fim, vale ressaltar que a criação de animais para a utilização de seus órgãos em procedimentos do gênero levanta questões éticas relacionadas ao bem-estar deles. A ONG PETA, por exemplo, criticou o experimento, afirmando que a escassez de órgãos humanos para transplantes não deve ser resolvida com a exploração animal.