Pacientes vão para fila de transplante de fígado após usar “kit Covid”
Cinco pessoas sofreram lesões hepáticas graves após tomar ivermectina para tentar tratar a Covid-19. Três outros morreram.
Mesmo sem ter eficácia comprovada, o “tratamento precoce” para combater o novo coronavírus continua sendo recomendado por alguns médicos e defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Entre os remédios indicados indevidamente, estão ivermectina, hidroxicloroquina, azitromicina e anticoagulantes, que juntos estão sendo popularmente chamados de “kit Covid”. Enganam-se aqueles que usam os medicamentos sob a alegação de que “mal também não faz”: uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo relata o caso de oito pessoas que tiveram hepatite medicamentosa após utilizar esses medicamentos. Cinco pacientes ficaram com o fígado tão danificado que estão aguardando na fila para transplante de fígado, e outros três morreram.
Quatro dos pacientes que precisam de transplante deram entrada no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, enquanto o quinto foi atendido no Hospital das Clínicas da Unicamp, em Campinas. Todos tiveram Covid-19 semanas antes de desenvolverem os sintomas de hepatite – e haviam recebido prescrições de ivermectina combinada a antibióticos. Exames laboratoriais revelaram a destruição dos dutos biliares – dessa forma, a bile não é eliminada no intestino e retorna para o sangue carregando substâncias tóxicas e podendo causar infecções.
Outros dois pacientes do Hospital das Clínicas da USP tiveram a doença de forma aguda e faleceram antes da operação. Um terceiro paciente foi a óbito pelo mesmo motivo em uma unidade particular de Porto Alegre (RS). Os cientistas explicam que a complicação não se deu pelo vírus, que pode atacar o fígado causando pequenos coágulos nos vasos sanguíneos. O padrão visto pelos médicos indica lesão por medicamentos.
A ivermectina, que teve uma alta de vendas de 557% entre 2019 e 2020, é um vermífugo utilizado para combater piolhos, carrapatos e vermes. A hidroxicloroquina é indicada para pacientes com lúpus, artrite reumatoide, doenças fotossensíveis e malária. Já a azitromicina é um antibiótico usado em casos de infecções bacterianas, e não virais. Nenhuma delas tem efeito comprovado na prevenção ou no combate ao Sars-CoV-2.
Profissionais do Hospital das Clínicas, do Albert Einstein e do Emílio Ribas falaram à BBC News Brasil sobre o potencial do “kit Covid” de aumentar o número de mortes de pacientes graves infectados pelo coronavírus. O uso dos medicamentos cria uma falsa segurança nos contaminados, que deixam para procurar o serviço de saúde apenas quando a infecção se intensifica. Nessa hora, parte do pulmão pode já estar comprometido, sendo necessário partir direto para a intubação. De acordo com os médicos, aqueles que recebem máscara de oxigênio ou ventilação mecânica invasiva antes de chegar à insuficiência respiratória aguda têm mais chances de sobreviver.
Os especialistas apontam ainda efeitos diretos, como a arritmia cardíaca que pode ser causada pelo uso da hidroxicloroquina. Além disso, os pacientes necessitam de sedação para serem intubados, mas alguns acordam com uma confusão mental mais acentuada, o que pode ser efeito do uso abusivo de ivermectina.
Uma levantamento da BBC mostrou que, até janeiro deste ano, o governo Bolsonaro gastou cerca de R$ 90 milhões em cloroquina, hidroxicloroquina, Tamiflu, ivermectina, azitromicina e nitazoxanida. O foco em remédios ineficazes para a Covid-19 atrasa a compra de vacinas e outros insumos que poderiam ser utilizados no combate à pandemia, como os medicamentos necessários para intubação que estão próximos de acabar.
Nesta terça-feira (23), a Associação Médica Brasileira (AMB) pediu em documento pelo banimento de tais medicamentos, afirmando que eles não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da Covid-19. Os profissionais envolvidos também explicaram que o uso de corticoides e anticoagulantes deve ser reservado para pacientes hospitalizados e que precisam de oxigênio suplementar, não devendo ser prescritos em casos leves da doença. Tanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não reconhecem e também não indicam o uso do “kit Covid”.