Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana

Raiva: uma doença fatal em 100% dos casos

Se você for mordido por um animal infectado, precisará tomar uma vacina - que consiste em 21 dolorosas injeções na barriga. Mas não fazer isso é certeza de uma morte horrível.

Por Marcos Ricardo dos Santos
Atualizado em 19 Maio 2021, 15h26 - Publicado em 8 set 2013, 22h00

Reportagem originalmente publicada pela Super em 2013

Certo dia, o sujeito acorda se sentindo estranho. Tem um pouco de febre, uma dor de cabeça, talvez uma falta de apetite. Pode ser qualquer coisa. Passados uns dias, uma súbita ansiedade toma o doente. Dores pelo corpo e convulsões. A febre aumenta, e ele se torna agressivo. É quando aparece o sintoma inconfundível: um pavor incompreensível de água. É a hidrofobia. Não pode nem ficar perto de um copo d´água que o terror o domina.

A essa altura, a garganta sofre espasmos e a pessoa emite gritos que mais parecem ganidos e uivos. Não há mais dúvidas, é a raiva. Quando os sintomas chegam a esse ponto, nada mais pode ser feito: em poucos dias, a morte – dolorosa, agonizante – é certa, em quase 100% dos casos.

Se a descrição acima parece história de terror, é porque ela realmente é. A raiva tem sintomas tão assustadores porque mata de forma diferente da maioria das doenças neurológicas, que costumam destruir os neurônios. O lyssavirus (que vem do grego lykos: lobo) atinge os neurotransmissores, a comunicação do sistema nervoso.

Depois da contaminação, caminha cerca de 1 cm por dia da ferida em direção ao cérebro e lá, por meio de um mecanismo chamado excitotoxicidade, faz com que as células nervosas gastem toda a sua energia e morram de exaustão. Aos poucos, as funções automáticas param de funcionar, e a morte acontece por parada cardíaca ou respiratória. História de terror das piores.

Por muitos séculos, a raiva foi a única doença visivelmente transmitida por animais – sempre mamíferos (principalmente cachorros e morcegos) e sempre por mordidas. “O vírus da raiva evoluiu para viver no cachorro, e o cachorro evoluiu para coexistir com o homem. Isso fez com que a doen-ça se espalhasse”, escrevem Bill Wasik e Monica Murphy em Rabid: A Cultural History of the World’s Most Diabolical Virus (“Raiva: uma história cultural do vírus mais diabólico do mundo”).

Hoje, a raiva está controlada: são 55 mil casos em humanos ao ano, de acordo com a OMS, quase todos na Ásia e África. Mesmo no Brasil, a doença é rara. Tudo graças à vacina. “Hoje o principal risco é o contato com animais silvestres, que aumentou por causa do ecoturismo”, diz Jarbas Barbosa, secretário nacional de Vigilância em Saúde.

Continua após a publicidade

Os mistérios sobrenaturais que envolviam a doença só foram dissipados quando uma celebridade do mundo científico voltou suas atenções para ela: Louis Pasteur. Ele pesquisou a raiva justamente porque se tratava da “mais assustadora e mortal das doenças”.

Sua vacina consistia em 21 dolorosas injeções na barriga, que continham cada vez uma versão mais enfraquecida do lyssavirus. O método de Pasteur foi aperfeiçoado e é usado até hoje: atualmente bastam quatro vacinas no braço. Foi essa simples solução que praticamente eliminou a doença.

Por isso, quando o pediatra Rodney Willoughby recebeu uma ligação em seu consultório em Milwaukee, nos EUA, informando-o de que iria receber uma paciente com os sintomas de raiva, ele não acreditou. Afinal, apesar de seus mais de 20 anos de experiência, só conhecia casos da doença pelos livros. Mas os exames realizados na paciente, uma adolescente de 15 anos chamada Jeanna Giese, confirmaram: era mesmo raiva.

Quatro semanas antes, Jeanna estava na igreja de sua comunidade, quando um morcego invadiu a capela e a mordeu. Ela sequer sentiu. Quando os sintomas apareceram, já era tarde. A vacina é eficiente em quase todos os casos, mas apenas se tomada nos primeiros dias após a infecção. Se o vírus da raiva atingir o cérebro antes, o índice de fatalidade é praticamente 100%. O dr. Willoughby sabia que o procedimento normal nesses casos era sedar o paciente e esperar a morte. Mas ele não se conformou a isso.

O médico também sabia que o corpo reage naturalmente ao vírus da raiva. O problema é que ele engana o nosso sistema imunológico. A maioria das doenças avança pela corrente sanguínea: é o caminho mais rápido, e também mais protegido pelo sistema imunológico. Mas o lyssavirus se espalha pelos neurotransmissores e, assim, chega ao cérebro antes das nossas defesas naturais.

Continua após a publicidade

Foi então que o dr. Willoughby teve uma ideia. Vencer o vírus da raiva pela paciência: era preciso dar ao organismo tempo para ele organizar suas defesas. O plano nunca havia sido testado, mas a ideia consistia em induzir a menina ao coma, baixando as funções corporais e cerebrais ao mínimo possível. Assim, seu corpo poderia se preocupar com uma só coisa: gerar defesas. A equipe usou quetamina, um poderoso anestésico e alucinógeno, com a retrovirais e sedativos barbitúricos.

Para surpresa de todos, a estratégia deu certo. Quando saiu do hospital, no dia 1º de janeiro de 2005, Jeanna estava completamente curada. A notícia do primeiro registro de cura da raiva se espalhou pelo mundo. A equipe responsável elaborou um roteiro de atendimento que foi batizado de protocolo de Milwaukee. Desde então, cinco pessoas no mundo já foram curadas com procedimentos semelhantes – uma delas no Brasil.

O caso brasileiro aconteceu em 2008, quando o adolescente Marciano Menezes da Silva foi diagnosticado depois de ser mordido por um morcego na cidade de Floresta, no sertão de Pernambuco. O rapaz foi levado ao Recife e os médicos notaram os sintomas já desenvolvidos.

“Tínhamos contato com o dr. Rodney, que fala português e é casado com uma pernambucana, e decidimos aplicar o protocolo de Milwaukee. Era a nossa melhor chance”, explica o médico Vicente Vaz, infectologista que integrou a equipe que cuidou de Marciano. De fato, foi. O rapaz sobreviveu e se tornou o terceiro caso documentado de cura.

Representação 3D do vírus da Raiva.
Lyssavirus, que causa a raiva. (decade3d/Getty Images)
Continua após a publicidade

Sobre vampiros, zumbis e lobisomens

Um ser violento, que vive na escuridão. Ao menor sinal de perigo, ele se torna agressivo: mostra os caninos pontiagudos e espuma pela boca. É hipersexualizado, como um animal no cio. Ataca quem estiver por perto – e quem tiver o azar de ser mordido em pouco tempo também se tornará um deles. É um vampiro? É um lobisomem? É um ser humano com raiva?

Difícil separar as histórias. Tanto que, em 1998, o médico espanhol Juan Gómez Alonso chamou a atenção da comunidade científica ao publicar Raiva: uma possível explicação para a lenda dos vampiros. Ele defende que os vampiros – um dos mitos mais marcantes da cultura pop há 200 anos – são, na verdade, criações literárias baseadas em pessoas infectadas com raiva.

A relação mais óbvia é o fato de que tanto a raiva quanto o vampirismo passam de organismo a organismo por uma mordida. Mas o médico espanhol também cita outras características similares: o intenso desejo sexual dos vampiros e das pessoas infectadas (há relatos de contaminados que ejaculam até 30 vezes ao dia) e a violência.

Além dos vampiros, o cientista espanhol defende que os lobisomens também surgiram da doença. As mordidas, os dentes à mostra e a transformação animalesca seriam os indícios. Bill Wasik e Monica Murphy explicam: “Observe os filmes de terror. Os vilões surgem ofegantes, quase sempre mordendo suas vítimas. Quase sempre há uma forma de contágio – algo maligno que passa de vítima a vítima, por meio de uma mordida, beijo ou lambida”.

Para eles, nada além de roteiros inspirados na raiva. E há indícios de que a nova febre dos zumbis também seja fruto do mal. No filme Extermínio, de 2002, a humanidade é atacada por uma doença de nome “fúria”. O diretor, Daniel Boyle, admitiu ter se inspirado na raiva para criar sua versão de zumbis, muito mais ágeis e furiosos do que os clássicos e molengas zumbis dos anos 60, 70 e 80.

Continua após a publicidade

Para Wasik e Murphy, esses personagens não são apenas uma metáfora da raiva, mas um reflexo da profunda in-fluência que a doença estabeleceu no imaginário das pessoas. Por mais que esteja controlada, tudo indica que a relação da humanidade com um de seus mais antigos medos ainda está longe do fim.

***

Os sinais da doença
Quarenta dias podem se passar da contaminação aos primeiros sintomas. Quando eles aparecem, é sinal de que é tarde demais.

Os urros
Garganta e cordas vocais sofrem espasmos, e o contaminado dá gritos.

Continua após a publicidade

A baba
Assim como cachorros, humanos com raiva também espumam pela boca. Efeito da hidrofobia, que se manifesta como um medo paralisante de engolir qualquer líquido.

A agitação
Convulsões são comuns. Também há relatos de doentes que agrediram outras pessoas.

A libido
Com o cérebro estimulado, é comum sentir excitação constante.

A morte
A raiva mata pela exaustão. Excita tanto o cérebro que ele fica sem energia para as funções vitais.

 

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY
Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 10,99/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.