O que são os príons, causadores da doença da vaca louca
Eles são os únicos agentes infecciosos que não possuem material genético. Fazem buracos no cérebro e provocam algumas das enfermidades mais raras do mundo – todas fatais. Veja o que já se sabe sobre eles.
Fininho, sem cor e de aparência pouco apetitosa. Assim era o hambúrguer que John Gummer, então ministro da Agricultura do Reino Unido, mordeu diante das câmeras em 1990. “Absolutamente delicioso”, exclamou após oferecer o lanche também para sua filha, de quatro anos de idade. Tirando os nutricionistas que poderiam problematizar aquela escolha alimentar para a criança, pouca gente veria algo de errado na cena.
Isso se o país não estivesse passando por um surto de Encefalopatia Espongiforme Bovina (BSE), mais conhecida como doença da vaca louca. Ela é caracterizada pela formação de buracos no cérebro do gado – deixando a massa cinzenta com o aspecto de uma esponja. A morte vem em alguns meses.
Naquela época, não se sabia se a doença podia ser transmitida para humanos por meio do consumo de carne contaminada. Gummer queria provar aos britânicos que o alimento era seguro – mas a atitude do ministro gerou mais escândalo do que um presidente sem máscara durante a pandemia. Seis anos depois, surgiu o primeiro caso de encefalopatia espongiforme em humanos causada pela ingestão de carne de animais infectados. Desde então, 178 britânicos foram vítimas da doença.
Ela não é causada por um vírus, bactéria ou verme. E sim por príons: uma das partículas mais misteriosas que existem. Nem dá para se referir aos príons como “seres”, já que sequer têm material genético. São apenas proteínas com uma habilidade simples e única – mas que as torna letais para quem entra em contato com elas. Veja o que já descobrimos sobre esse agente infeccioso, numa história que envolve sono, genética… e canibalismo.
As famílias que não dormem
Giuseppe não conseguia mais dormir. Por volta dos seus 60 anos de idade, o italiano passou a sofrer com uma insônia terrível. Não pregava mais o olho. Suava sem parar na cama, e logo febres passaram a acompanhar as noites despertas. Um médico o diagnosticou com malária e receitou um remédio – que não fez efeito algum. O italiano morreu pouco tempo depois.
Giuseppe viveu em Veneza no início do século 19 (1). Na época, nenhum médico saberia que ele sofria com Insônia Familiar Fatal (FFI), já que a doença só foi descrita em 1986. A condição estava no DNA da família: um dos seus filhos tinha morrido ainda adolescente, após sofrer com alucinações; outros dois chegaram à vida adulta e espalharam o gene para as gerações seguintes, que posteriormente desenvolveram sintomas da doença e também não resistiram.
A Insônia Familiar Fatal é causada por príons, e só é transmitida hereditariamente. Além de ser extremamente rara: apenas 30 famílias conhecidas ao redor do mundo carregam a mutação genética que gera a doença (duas delas, inclusive, vivem no Brasil) (2).
O gene mutado aí é o PRNP. Ele guarda o manual de instruções para a produção da proteína PrPc. Ela fica “pendurada” para o lado de fora das células – nos neurônios, principalmente. Até o final dos anos 2000 acreditava-se que a PrPc não tinha funções significativas para o corpo. Hoje, sabemos que ela está relacionada à formação de memórias, sinapses e proteção dos neurônios (3).
Eu, você, todo mundo produz essa proteína. Mas quem possui uma falha no PRNP, no manual de produção, acaba tendo problemas. Depois de certa idade, que varia da adolescência até o fim da vida, as células passam a produzir outra proteína, a PrPsc (note que a original se chama PrPc, sem o “s”). Ela é mais conhecida como príon. Como toda proteína, ela é composta por uma cadeia de aminoácidos – que, por sua vez, é idêntica à cadeia de aminoácidos da PrPc. Elas são, no fundo, duas versões da mesma proteína.
A única diferença entre elas é sua estrutura tridimensional (veja no infográfico abaixo). A PrPc tem um formato enrolado, como se fosse um fio de cabelo cacheado. Já o príon é a versão com chapinha: possui estruturas retas e paralelas entre si. O nome da estrutura em caracol é alfa-hélice, enquanto a chapada se chama folha-beta.
Não é o fim do mundo produzir uma proteína errada. Vira e mexe nossas células fazem isso, e o próprio organismo tem um mecanismo para identificar e destruir versões estranhas. Acontece que a estrutura chapada dos príons é extremamente estável: suporta altas temperaturas e é resistente à protease, que é o processo de degradação de proteínas. Por conta disso, o corpo não consegue se livrar delas.
Não é só isso: o principal superpoder dos príons é que eles infectam as proteínas normais, as PrPc. Basta um deles encostar em uma PrPc para transformá-la em príon também. Ninguém sabe exatamente como ele faz isso – e boa parte das pesquisas sobre o assunto tentam entender esse mecanismo em busca de tratamentos para as doenças priônicas.
À medida que esse processo de transformação acontece, os príons formam agregados no exterior dos neurônios, substituindo as proteínas normais. Como eles têm um formato diferente, não executam a função de proteger a célula. Fazem o contrário: impedem as sinapses, matando os neurônios.
Sabe o “cérebro-esponja”, lá do início do texto? Ele fica assim por causa da morte dos neurônios – e o mesmo acontece em humanos. A Insônia Familiar Fatal é uma das três doenças priônicas genéticas conhecidas. O que as diferencia são pequenas mudanças na estrutura do príon causador da doença, fazendo com que se alojem em partes distintas do cérebro. Não há cura ou tratamento para nenhuma delas: todas as drogas já testadas falharam em estudos clínicos. E toda doença priônica é, invariavelmente, fatal. As famílias que já sabem que carregam a mutação no gene PRNP procuram cuidados paliativos quando surgem os sintomas.
Só que as doenças genéticas nem representam a maioria das vítimas de doenças priônicas. Cerca de 80% dos casos são chamados esporádicos ou espontâneos. É quando o corpo começa a produzir príons do nada, sem que haja uma mutação geneticamente transmissível no gene PRNP. Aí já viu: basta um príon para causar um efeito cascata nas outras proteínas. Não se sabe por que nosso corpo faz isso ou quais seriam os fatores de risco envolvidos – mas sabemos que os casos espontâneos costumam ocorrer em pessoas com mais de 60 anos.
As vítimas desses casos espontâneos geralmente são diagnosticadas com a Doença de Creutzfeldt-Jakob – um tipo de demência descrita em 1922, antes mesmo da descoberta dos príons. Os principais sintomas são a gradativa perda de memória e visão, além de alterações no comportamento e na coordenação motora. Apesar de ser a mais comum entre as doenças priônicas, ela não deixa de ser rara: um caso a cada um milhão de pessoas.
Mamíferos em geral podem produzir príons – e é aí que mora boa parte do problema. Para explicar, precisamos voltar no tempo. Mais precisamente, para o século 18.
O caso das ovelhas loucas
“Doença convulsiva”, “doença louca”, “doença dos tremores”. Esses são alguns nomes usados por fazendeiros europeus ao longo dos últimos 300 anos para se referir ao scrapie, uma enfermidade bem conhecida entre os criadores de ovelhas. Os sintomas incluem alterações de comportamento e coordenação, e terminam com a morte dos animais. O prejuízo econômico aos produtores é alto, já que nunca foi desenvolvido um remédio ou vacina para o scrapie.
Stanley Prusiner ouviu falar da doença enquanto fazia residência em neurologia, nos anos 1970. Achou curioso que os sintomas em ovinos eram semelhantes aos da Doença de Creutzfeldt-Jakob em humanos – e que, nos dois casos, o organismo não produzia uma resposta imune ao patógeno.
Na época, o agente infeccioso das doenças já havia sido identificado, mas acreditava-se que ele era uma espécie de “subvírus” ou “vírus lento”, já que os sintomas se desenvolvem por meses até a morte da vítima. Só tinha um problema: nenhum pesquisador havia conseguido isolar o material genético desse suposto vírus.
Um vírus nada mais é do que uma cápsula proteica com material genético dentro: pode ser uma molécula de DNA, como o causador da herpes; ou de RNA, como o coronavírus. Em ambos os casos, ele injeta esse material na célula do hospedeiro para fazer cópias de si mesmo. Outros patógenos (bactérias e fungos, por exemplo) agem de maneiras diferentes, mas todos os causadores de doenças conhecidos tinham, obrigatoriamente, algum tipo de material genético. Pelo menos até então.
Prusiner procurou incessantemente pela molécula genética, mas não encontrou. Então o médico propôs que o agente em comum entre aquelas doenças era não um vírus, e sim uma proteína infecciosa (algo até então inédito). A esse agente, Prusiner deu o nome de “príon” (ele achou “proin”, que junta melhor os termos protein e infectious, pouco sonoro) (4). O artigo foi publicado em 1982.
A comunidade científica ainda estava se acostumando com a proposta de Prusiner quando, em 1986, alguns bois no Reino Unido começaram a apresentar sintomas semelhantes ao scrapie das ovelhas. Até então não havia evidências de que o scrapie pudesse ser transmitido de ovelhas para bovinos – ou qualquer outro animal. Mesmo assim, 420 bois foram diagnosticados com a doença até 1988. Em 1993, durante o pico da epidemia, já eram 120 mil.
Aqui está o que aconteceu: o gado britânico estava sendo alimentado com uma ração proteica feita com ossos de ovelhas e vacas triturados. Os príons, como você viu, se alojam nas células do tecido nervoso – o que inclui a medula espinhal. Os bois do Reino Unido estavam comendo um banquete de príons ovinos, o que deu origem ao surto de Encefalopatia Espongiforme Bovina – a doença da vaca louca. Conforme bois foram adoecendo, os ossos de infectados servidos como ração também se tornaram vetores da enfermidade. A epidemia se concentrou no Reino Unido, mas também respingou em outros países por conta da exportação da ração (5).
A epidemia de vaca louca já tinha dado um baita prejuízo econômico, mas nada preocupante para a saúde humana até então. Acontece que o gado abatido e vendido antes de demonstrar sintomas da doença também carrega príons em sua carne – principalmente em cortes com mais nervos, como ossobuco. Era uma questão de tempo até que a proteína infecciosa de algum boi saltasse para humanos. E foi o que aconteceu. Em 1996, registrou-se a primeira morte devido ao consumo de carne infectada. Em humanos, a vaca louca causa uma demência que acabou batizada como Creutzfeldt-Jakob variante – que, apesar do nome, é uma doença distinta da Creutzfeldt-Jakob genética e da espontânea (veja a tabela abaixo). No total, 231 pessoas ao redor do mundo foram vítimas da doença.
Após a confirmação de que os príons poderiam ser transmitidos de bois para humanos, diversos países suspenderam a importação de carne do Reino Unido – Japão e China, por exemplo, só voltaram a comprar dos britânicos em 2019 e 2018, respectivamente.
Em fevereiro deste ano, aliás, foi identificado um caso de vaca louca em um animal no interior do Pará, o que levou a China a suspender quase imediatamente a importação de carne brasileira. Mas pode ficar tranquilo: testes em um laboratório de referência, no Canadá, já confirmaram que se trata de um caso espontâneo (da mesma forma que ocorre em humanos), e não relacionado à ração.
Então aí está outra forma de adquirir uma doença priônica: ingerindo carne contaminada. Os príons produzidos por cada animal não são exatamente iguais – mas semelhantes o suficiente para saltar de uma espécie para outra de vez em quando. A última (e mais rara) forma de transmissão é de humano para humano. Bom, se as vacas pegam príons comendo outras vacas… Você já imagina o que vem por aí.
A doença canibal
A população Fore, nativa de Papua-Nova Guiné, viveu durante anos uma epidemia de kuru – que, na língua local, significa “tremer”. A enfermidade foi descrita nos anos 1950 por pesquisadores europeus, mas é provável que tenha surgido bem antes. Trata-se de uma doença neurodegenerativa que afetava principalmente mulheres e crianças. Elas sofriam de tremores, perda de coordenação e, curiosamente, crises incontroláveis de riso.
Logo se descobriu que o kuru era transmitido por meio de rituais funerários que envolviam o consumo da carne do falecido. Os homens ficavam com os músculos, enquanto o cérebro era destinado às crianças e mulheres. O mais provável é que algum indivíduo tenha desenvolvido a Creutzfeldt-Jakob espontânea, que daí foi transmitida para outros membros da população durante o funeral. Quem comia os tecidos infectados também morria, e o ciclo recomeçava.
A tradição foi abandonada. E o kuru entrou na lista de doenças causadas por príons após a descoberta de Prusiner. Em 1997, o neurologista foi laureado com o Nobel de Medicina.
Os príons ainda guardam um último superpoder: eles são resistentes aos métodos convencionais de desinfecção. Altas temperaturas, autoclave, sabão, álcool e outros compostos químicos geralmente usados para a esterilização em hospitais consistem em inviabilizar o material genético do patógeno – o que não faz diferença alguma contra os príons. Pelo menos 220 casos de contaminação ligados a neurocirurgias já foram identificados ao redor do mundo (6). Já que não há como saber se algum paciente tem príons no cérebro (os sintomas podem ainda não ter se manifestado), recomenda-se que os equipamentos que entram em contato com o tecido nervoso sejam descartados.
O objetivo aqui não é dar medo: desde os anos 1990, médicos, pesquisadores e produtores de animais vêm aprendendo a lidar com os riscos de transmissão de doenças priônicas. Mas a verdade é que ainda existem mais perguntas do que respostas sobre esse patógeno descoberto há apenas 40 anos. E é bom que existam – são das respostas a elas que podem sair tratamentos realmente eficazes para quem vive com doenças neurodegenerativas.
Fontes (1) Livro “The Family That Couldn’t Sleep: A Medical Mystery”. (2) Artigo “Índice de prevalência e principais manifestações clínicas iniciais da insônia familiar fatal”. (3) Artigo “Cellular prion protein activates Caspase 3 for apoptotic defense mechanism in astrocytes”; (4) Artigo “Historical overview of prion diseases: a view from afar”. (5) Artigo “Trade related infections: Farther, faster, quieter”; (6) Artigo “Iatrogenic Creutzfeldt-Jakob Disease, Final Assessment”.
Agradecimento Vilma Regina Martins, pesquisadora do Instituto de Ciências biomédicas da Universidade de São Paulo.