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Xenotransplantes: usar órgãos de animais é o futuro da medicina?

Diminuir a fila dos transplantes com doadores animais é uma promessa antiga. Mas só agora os avanços da engenharia genética permitiram as primeiras cirurgias bem-sucedidas. Entenda em que pé estão as pesquisas para inserir rins, fígados e corações de porcos em humanos – e o que é preciso para torná-las algo seguro e rotineiro.

Por Bruno Carbinatto | Ilustração: Felipe Del Rio | Design: Luana Pillmann | Edição: Bruno Vaiano
Atualizado em 19 jul 2024, 10h24 - Publicado em 19 jul 2024, 10h00

A cirurgia, em março deste ano, durou quatro horas. Mas foram alguns segundos que definiram seu sucesso. “Quando conectamos a artéria e o vaso, a primeira coisa que observamos foi que o rim mudou para um tom saudável imediatamente, o que foi um bom sinal”, diz o brasileiro Leonardo Riella, que hoje comanda o setor de transplante renal do Massachusetts General Hospital, um hospital ligado à Universidade Harvard, em Boston.

O melhor, porém, veio imediatamente depois: “Ainda na mesa cirúrgica, conseguimos observar a urina sendo produzida. A gente não esperaria que isso acontecesse ali, porque pode demorar até um dia para começar. Todo mundo na sala aplaudiu”.

Esse poderia ser só mais um dos milhares de transplantes que acontecem todos os anos, não fosse por um detalhe: aquele rim ganhando cor e produzindo urina não vinha de um humano, e sim de um porco geneticamente modificado.

Riella, médico formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador em Harvard, acabava de liderar o primeiro xenotransplante de rim da História em um humano vivo. “Xeno”, em grego, significa “estrangeiro”, e a palavra acabou batizando o transplante de tecidos ou órgãos de uma espécie para outra.

O paciente em questão, Richard Slayman, não foi o primeiro humano a ganhar um órgão de outro animal. Antes dele, dois outros americanos receberam corações suínos. Pouco depois, uma mulher também foi equipada com um rim de porco geneticamente modificado. Mais recentemente, em maio deste ano, um chinês de 71 anos recebeu o primeiro fígado que faz óinc.

Os xenotransplantes são uma das apostas da medicina para vencer o enorme desafio dos transplantes de órgãos no mundo. Atualmente, mais de 71 mil brasileiros estão na fila de espera, sendo que a maior demanda é justamente por rins (40 mil) e córneas (28 mil).

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“A disponibilidade de órgãos depende da incidência de morte cerebral de doadores, que se mantém constante. Por isso, procura-se desenvolver técnicas que permitam obter órgãos adicionais”, diz Silvano Raia, professor emérito da USP e um dos maiores especialistas na área. Em 1985, ele fez o primeiro transplante de fígado da América Latina, e, em 1988, foi o primeiro no mundo a realizar o mesmo transplante entre duas pessoas vivas. Agora, aos 93 anos, lidera a iniciativa que quer viabilizar os xenotransplantes no Brasil.

Os sucessos recentes reacenderam a esperança de que, em breve, poderemos viabilizar essa técnica em grande escala e salvar milhares de vidas. Mas o procedimento ainda é repleto de limitações. Em todos os casos citados, os pacientes eram pessoas em estágio crítico ou terminal, inelegíveis para receber doações tradicionais, autorizadas por agências equivalentes à Anvisa a usar órgãos suínos como um último recurso. Alguns rejeitaram esses órgãos após algumas semanas. O que leva à pergunta: o quão perto estamos de realmente transformar os xenotransplantes em rotina?

Quimeras humanas?

Não é de hoje que se teoriza o uso de órgãos animais para transplantes em humanos; os primeiros relatos do tipo datam de séculos atrás. Por um motivo simples: comparando a anatomia de humanos com a de primatas e porcos, cientistas já tinham reparado que os órgãos desses animais são muito parecidos com os nossos.

No começo do século 20 aconteceram as primeiras tentativas, envolvendo rins, corações e fígados de animais variados, como babuínos, chimpanzés e porcos – bem como algumas escolhas exóticas: cabras, ovelhas e coelhos.

Foi um desastre. Nessa época, sequer o campo dos transplantes entre humanos era bem-sucedido – quem dirá os xenos. Todos os pacientes morriam em questões de horas, por rejeição ou infecção; os mais sortudos viviam por dias.

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Nas décadas seguintes, experimentos do tipo começaram a minguar à medida que a medicina entendia o sistema imunológico e o papel da rejeição em transplantes – o processo em que o corpo reconhece algum tecido como estrangeiro e passa a atacá-lo. Ficou claro que os órgãos de animais eram diferentes dos nossos de formas incontornáveis com a tecnologia da época.

Na década de 1960, o tema voltou a se aquecer quando foram descobertos os primeiros imunossupressores – medicamentos que enfraquecem o sistema imunológico propositalmente, evitando que ele ataque e rejeite o órgão.

Os porquinhos de tecido sendo costurados.
(Felipe Del Rio/Superinteressante)

Os casos mais famosos vieram do cirurgião americano Keith Reemtsma, que fez, no total, 13 transplantes de rins de chimpanzés para pacientes. Mesmo com imunossupressores, porém, a enorme maioria viveu apenas alguns dias ou semanas. Só uma paciente se recuperou e, inclusive, voltou a trabalhar como professora. Nove meses depois, ela morreu de infarto – a parcela de culpa do xenotransplante na morte é incerta.

Em 1984, uma bebê que nasceu com um problema congênito raro recebeu um coração de babuíno na Califórnia. A ideia era que o transplante fosse temporário, até que fosse encontrado um órgão humano compatível com ela. Não deu tempo, infelizmente: “Baby Fae”, como ficou conhecida, faleceu 21 dias depois.

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De novo, os testes esfriaram – ficou claro que os medicamentos antirrejeição não eram suficientes para viabilizar os xenotransplantes. Mas os cientistas mantiveram a esperança de que, um dia, seria possível contornar a rejeição.

O interesse foi se fechando principalmente em porcos, o que é contraintuitivo – por que não primatas, mais parecidos conosco? De fato, os macacos são uma opção possível para xenotransplantes, mas não a ideal.

Suínos têm várias vantagens: são domesticados há séculos e vivem bem em cativeiro; têm gestações relativamente curtas e dão à luz vários filhotinhos de uma vez; são parentes relativamente próximos de nós – seus órgãos são quase idênticos em estrutura, função e tamanho. Ao mesmo tempo, são distantes o suficiente para não compartilhar muitos micróbios causadores de doenças conosco, o que diminui o risco de contaminação.

Por mais adequados que os porcos fossem, porém, havia ainda um universo de diferenças para transpor. Diferenças em escala molecular, que passamos a entender há menos de um século, e com que ainda não sabemos lidar.

Engenharia genética

Considerando o chamado DNA codificante – a porção do material genético que contém as instruções para fabricar as proteínas que constroem e operam nossos corpos –, a semelhança entre o genoma humano e o suíno chega a 98%. Em tese, você e a Peppa precisam quase dos mesmos ingredientes para existir.

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Esses 2% de distinção, porém, podem ser a diferença entre um xenotransplante bem-sucedido e um órgão rejeitado em poucas horas. Faz décadas que os biólogos moleculares aperfeiçoam técnicas de edição genética para resolver esse e outros problemas. Mas, até pouco tempo atrás, nenhum método era certeiro o suficiente para cumprir a missão.

Imagem com texto e foto, que serve como capa clicável para levar ao infográfico
(Arte/Superinteressante)

Até que, em 2011, as pesquisadoras Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna descobriram algo inusitado enquanto estudavam bactérias. Quando infectadas por um vírus, elas guardavam parte do material genético do invasor em seu próprio genoma, numa região chamada CRISPR. O objetivo é criar uma memória imunológica: da próxima vez que o vírus aparecer, ela saberá reconhecê-lo e combatê-lo, usando uma enzima chamada Cas9 para picotar o intruso.

O pulo do gato foi reproduzir esse mecanismo em laboratório, com o intuito de reconhecer e passar a faca em trechos de DNA específicos de qualquer espécie. Charpentier e Doudna conseguiram, e assim nasceu a estratégia CRISPR/Cas9. Ela permite detectar e eliminar genes com precisão – em geral, sem danificar o resto do genoma. Em 2020, a dupla levou o Nobel pela descoberta.

A invenção do Crispr nos aproximou como nunca de viabilizar os xenotransplantes. Se moléculas específicas causam a rejeição de órgãos em humanos, basta retirar os genes responsáveis por produzi-las num embrião suíno e voilà: todos os tecidos do porco se tornarão compatíveis conosco. Essa inativação de genes foi apelidada de “nocaute”.

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A questão, agora, é descobrir quais modificações no DNA desses animais são necessárias para que o transplante seja bem-sucedido.

Não há consenso sobre isso, explica Mayana Zatz, geneticista da USP que lidera o único projeto de xenotransplantes no Brasil, ao lado do pesquisador Silvano Raia. Os vários grupos que abordam esse tema mundo afora só concordam pra valer em um aspecto: é preciso eliminar uma molécula chamada “alfa-gal”.

A alfa-gal, cujo nome completo é galactose-α-1,3-galactose, é um carboidrato presente na membrana celular da maioria dos mamíferos, com exceção dos humanos e dos primatas mais próximos a nós. Isso porque a evolução nos tirou o gene GGTA1, responsável por codificar a enzima que participa da formação desse açúcar. Nosso corpo reconhece a alfa-gal como estrangeira, e possuímos uma enorme quantidade de anticorpos naturais contra ela, chamados de xenorreativos.

É como se todo o órgão suíno viesse revestido com a mensagem ATAQUE AQUI em neon. Temos um exército de combatentes especializados em destruir essa molécula, e isso torna inevitável a rejeição hiperaguda – aquela que acontece poucos minutos ou horas após a cirurgia.

Para contornar isso, o jeito é desativar o gene GGTA1 no porquinho editado em laboratório. Alguns grupos de pesquisa defendem que só essa modificação já é suficiente para evitar uma rejeição aguda do corpo – combinado, é claro, com medicamentos imunossupressores potentes. Um rim transplantado na americana Lisa Pisano, em abril deste ano, veio de um porquinho com essa única edição genética, por exemplo.

A maioria dos cientistas, porém, mira em mais dois genes – o CMAH e o B4GALNT2L, que podem causar problemas similares. Também é possível desativar um gene ligado ao crescimento de porcos maiores, para evitar que o órgão fique grande demais (nem sempre isso é necessário, porém: os xenotransplantes mais promissores saem de porquinhos miniatura, cujos órgãos são compatíveis em tamanho com os nossos).

Não para por aí. Também existe a possibilidade de fazer o chamado knock-in de genes. Como o nome sugere, é o oposto do knockout – em vez de retirar os genes suínos, os cientistas inserem pequenos trechos do DNA humano na célula para que o porco se pareça um pouquinho mais conosco, diminuindo as chances de rejeição.

Porquinhos de tecido, abertos. Vemos o interior deles, com os órgãos (coração, rins e fígado).
(Felipe Del Rio/Superinteressante)

Foi o que aconteceu nos dois transplantes de coração de porcos em humanos vivos até agora – em ambos os casos, os órgãos foram produzidos pela empresa Revivicor e tinham dez alterações, no total.

Já no caso de rim que abre esta matéria, a equipe do brasileiro Leonardo Riella utilizou um porco geneticamente modificado pela empresa de biotecnologia eGenesis. Além de retirar os três genes suínos considerados mais perigosos para nós, incluindo o envolvido na produção da alfa-gal, a startup adicionou sete genes humanos, ligados aos processos imunológicos e de coagulação.

Ao todo, o porco utilizado por Riella tinha impressionantes 69 edições genéticas, contra só uma no caso de Lisa Pisano. A eGenesis também fez questão de retirar todos os 59 trechos do DNA suíno conhecidos como retrovírus suínos endógenos, ou apenas PERVs.

O problema é o seguinte: ao longo de milhões de anos, os porcos – bem como todas as outras espécies animais – foram infectados por incontáveis vírus. E os remanescentes de certas invasões do passado ainda estão presentes em seus DNAs.

Isso é possível porque alguns patógenos, os chamados retrovírus, têm a capacidade de se infiltrar no genoma de seus hospedeiros e permanecer por lá, pulando de geração em geração. Cerca de 8% do genoma humano atual, por exemplo, consiste em retrovírus endógenos geralmente inofensivos, conhecidos pela sigla HERVs.

Nos porcos, os HERVs se chamam PERVs (foi só trocar o “H” de humano pelo “P” de porco). Hoje, eles são fósseis moleculares adormecidos e não causam nenhum mal para o hospedeiro. Mas há o temor de que, uma vez transplantados para o corpo humano, algum desses PERVs recupere a capacidade de gerar partículas virais potencialmente infecciosas para nós, causando doenças perigosas.

Ninguém sabe a real dimensão desse risco. Nenhum caso do tipo já foi documentado entre primatas, e cientistas debatem se realmente é possível que esses vírus endógenos “acordem” em nosso corpo. Mesmo assim, por precaução, a equipe decidiu desativar todos os PERVs nos porquinhos.

À primeira vista, pode parecer que, quanto mais edições genéticas para tornar o órgão mais humano e menos suíno, melhor. Mas a verdade é um pouco mais complexa. Aumentar a complexidade significa encarecer a empreitada e torná-la mais difícil de reproduzir em grande escala. “Quanto mais mexe, pior”, resume Zatz. Só conheceremos o meio-termo ideal com testes clínicos de longo prazo, que usem uma grande amostra de humanos.

Concluída a etapa de edição, é hora de dar vida ao bicho. Todo o processo de remoção e adição de genes rola em uma única célula da pele do porco. Depois, o núcleo dessa célula é transferido para um óvulo vindo de uma porca doadora. Esse óvulo contendo o núcleo com DNA modificado gera um embrião, que é então implantado numa barriga de aluguel – uma fêmea que irá gestar e dar à luz o porquinho editado.

Esse é o mesmo passo a passo usado para clonar a ovelha Dolly na década de 1990, que foi assunto da última capa da Super. Desde então, a técnica foi aprimorada, mas ainda é ineficiente: é preciso implantar centenas de óvulos para obter menos de dez gestações bem-sucedidas.

Uma vez nascidos, os filhotes crescem em biotérios especiais, totalmente esterilizados e com normas rígidas de segurança e higiene. Tudo para evitar infecções que possam ser transmitidas para o paciente transplantado.

Infográfico com linha do tempo de acontecimentos relativos a xenotransplantes.
(Arte/Superinteressante)

Transplante entre espécies

O passo a passo da criação de porquinhos é bem conhecido, e já há empresas e grupos de pesquisa no mundo capazes de executá-lo. Agora, chegamos ao transplante em si. Os primeiros estudos contemporâneos utilizaram primatas para substituir os humanos no papel de receptores dos órgãos suínos. Apesar de não serem doadores tão adequados quanto os porcos, eles são cobaias ideais para simular as cirurgias.

Muitos desses testes mostraram resultados promissores – após o transplante, com o auxílio de drogas imunossupressoras, os órgãos geralmente cumpriam bem suas funções, sem sinais de rejeição aguda. Em um dos ensaios, um macaco viveu mais de dois anos com um rim suíno até ser sacrificado por causa do fim do estudo.

Nos últimos cinco anos, veio o próximo passo: os pesquisadores começaram a praticar xenotransplantes em pacientes humanos que estavam em morte cerebral, mantidos vivos por aparelhos. Com o consentimento das famílias dessas pessoas, os médicos implantaram os órgãos de porcos geneticamente modificados e mantiveram os corpos vivos, observando se os transplantes funcionavam bem e se havia sinais de rejeição.

Houve experimentos com corações, rins e fígado, a maior parte com resultados promissores. Em um dos casos, o órgão funcionou bem por dois meses até que os médicos decidiram desligar os aparelhos.

Em algum momento, seria preciso testar a técnica em pacientes vivos. Havia, porém, um claro problema ético aqui: sabendo que o procedimento é experimental e pode muito bem falhar, como selecionar pacientes para serem os pioneiros?

Os órgãos de tecido feitos e prontos em potinhos separados e específicos.
(Felipe Del Rio/Superinteressante)

O jeito foi buscar voluntários em pessoas que não eram elegíveis para transplantes tradicionais ou que possuíam tantas comorbidades que acabavam no final da fila. No mundo todo, o critério de priorização é a chance de sobrevivência. Pessoas em estado terminal ou muito debilitadas não são candidatas elegíveis porque, num português cru, podem “desperdiçar” um órgão saudável.

Nesses casos, os médicos ofereceram a possibilidade do xenotransplante para os pacientes, informando, claro, os riscos envolvidos, e sem prometer milagres. Foi isso que possibilitou os primeiros casos de xenotransplantes de órgãos inteiros nos últimos dois anos. O pioneiro foi o americano David Bennett, que recebeu um coração de porco em 2022. Um ano depois, Lawrence Faucette passou pelo mesmo procedimento. Ambas as cirurgias foram feitas na Universidade de Maryland, nos EUA.

Infelizmente, os dois pacientes faleceram menos de dois meses após a cirurgia, com sinais de rejeição. No caso de Bennett, os pesquisadores descobriram também que o coração transplantado estava infectado por um vírus suíno. Ele passou batido pelos testes de segurança por estar latente, mas acordou e causou danos ao órgão. O quanto isso contribuiu para a morte, porém, não está claro.

O assunto voltou com tudo agora, em 2024, com mais três casos de sucesso. Um deles é o narrado na abertura desta reportagem. O paciente, Rick Slayman, já tinha recebido um rim humano em 2018; no entanto, o órgão falhou e ele precisou voltar à diálise. Slayman se recuperou bem do xenotransplante, mas, infelizmente, faleceu em maio, dois meses após a cirurgia. Segundo a equipe, não há nenhuma indicação de que a morte esteja ligada ao procedimento.

Um dos maiores desafios desse tipo de pesquisa é justamente avaliar quão bem-sucedido foi o transplante. Isso porque, como vimos, os selecionados até agora eram pessoas com quadros de saúde debilitados, inelegíveis para receber órgãos humanos. Se não passassem pela cirurgia, provavelmente morreriam; e, mesmo se passassem, nada garante que se recuperariam.

O jeito é analisar o órgão postumamente em busca de sinais de rejeição ou de mau funcionamento. No caso de Slayman, há evidências de que o rim funcionou bem no pós-transplante, e Riella já sabia que o paciente tinha alto risco de morrer devido a problemas cardiovasculares pré-existentes.

O segundo xenotransplante de rim aconteceu em abril, só um mês depois do primeiro, na Universidade de Nova York. A americana Lisa Pisano também tinha problemas cardíacos sérios e, além do rim de porco, recebeu também um dispositivo de assistência ventricular, um aparelho que ajuda o coração a bater.

47 dias depois, porém, os médicos tiveram que retirar o rim transplantado e voltar com a diálise. A falha não foi por rejeição, e sim porque o coração de Pisano não estava bombeando sangue suficiente para o rim, que começou a falhar gradualmente. Ela morreu em 9 de julho.

Enquanto isso, no final de maio, médicos da Universidade de Medicina de Anhui, na China, anunciaram o primeiro transplante de fígado de porco geneticamente modificado em um humano vivo. O homem, de 71 anos, tinha câncer no fígado e não era elegível para um transplante tradicional.

A equipe não divulgou muitos detalhes sobre o procedimento, mas médicos confirmaram que o paciente se recuperava bem duas semanas depois da cirurgia. Além de não haver sinais de rejeição, o fígado transplantado começou a secretar bile em quantidades progressivamente maiores, atingindo 300 ml no 13º dia – uma pessoa saudável secreta pelo menos 400 ml. Até a data de fechamento desta edição, ele permanecia vivo – o único entre os cinco pioneiros dos xenotransplantes.

O futuro chegou?

No mundo todo, há cerca de quinze grupos de pesquisa que estudam o tema a fundo, a maioria em países desenvolvidos. Desses, só quatro já conseguiram criar porquinhos geneticamente modificados viáveis para transplantes.

Logo serão cinco, graças ao Brasil. O projeto XenoBR quer criar animais geneticamente modificados para que, no futuro, seus órgãos sejam utilizados em testes clínicos de xenotransplantes. A iniciativa é coordenada pelos professores Silvano Raia e Mayana Zatz, da USP, e financiada pela Fapesp. A equipe já dominou a técnica de eliminar os três genes “vilões” dos porcos usando a Crispr, e estuda também a possibilidade de incluir genes humanos nos bichos.

Em abril, o grupo inaugurou o primeiro biotério dedicado a criar esses animais. Localizado no campus da USP na capital paulista, ele tem capacidade para dez suínos. Uma outra instalação, ainda maior, está em construção. Segundo Zatz, o projeto terá o primeiro porquinho pronto para fornecer órgãos em dois anos, por meio de uma startup (também chamada XenoBR).

Um bonequinho humano, de tecido, tendo um coração costurado em si, representando o xenotransplante.
(Felipe Del Rio/Superinteressante)

Lá fora, a coisa está mais avançada. Mas ainda há muito chão a percorrer. Nos próximos anos, o mais provável é que os xenotransplantes continuem acontecendo em casos isolados, para pacientes com poucas opções. No médio prazo, é preciso começar os ensaios clínicos – estudos maiores, aprovados pelas agências reguladoras, que avaliam a eficácia e segurança da técnica em centenas ou até milhares de humanos.

Esses testes ajudarão a responder muitas perguntas que, hoje, estão fora do nosso alcance. Uma delas é como evitar a rejeição crônica – quando o corpo começa a enxergar o órgão como um invasor meses ou até mesmo anos depois da cirurgia. Isso pode acontecer também com transplantes tradicionais, e, até hoje, não sabemos por quê. Se é assim com órgãos humanos, imagina com animais.

Também é preciso descobrir qual é a melhor terapia imunossupressora para evitar a rejeição aguda, em curto prazo. Os estudos até agora sugerem que serão necessários medicamentos mais fortes e potentes, por mais tempo. Isso, é claro, aumenta os riscos de efeitos colaterais e deixa o transplantado mais vulnerável a doenças infecciosas.

O mais provável é que os próximos avanços aconteçam nos transplantes renais. Isso porque, caso algo dê errado, ainda dá para retirar o xeno-órgão e colocar o paciente em diálise, que substitui a função dos rins, até que ele encontre um doador humano ou outra alternativa. Não dá para fazer o mesmo com o coração, por exemplo.

Com tudo isso em mente, os xenotransplantes ainda parecem um sonho distante – e, de fato, viabilizar a prática em grande escala vai levar anos, quiçá décadas. Mas o professor Silvano Raia, uma das maiores autoridades do tema no mundo, lembra que houve uma época que transplantes normais pareciam utópicos. O primeiro paciente a receber um coração no mundo, em 1967 na África do Sul, viveu apenas 18 dias. “Hoje, são frequentes maratonistas e atletas com coração transplantado”, diz. Quem sabe, no futuro, haverá humanos meio Peppa subindo nos pódios. 

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