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O lado bom da ansiedade

Se não sentíssemos emoções como a ansiedade, tomar decisões importantes na vida seria muito mais arriscado.

Por Maurício Horta e Otavio Cohen
Atualizado em 19 jan 2021, 19h30 - Publicado em 21 Maio 2018, 11h45

Nós quase não pensamos sobre o presente. Quando pensamos, geralmente é para decidir o que faremos no futuro. De resto, funcionamos no automático. E mesmo algumas decisões são tomadas sem pensar. Talvez, a maioria delas. “Eu agi por impulso”, diria qualquer um que tomasse uma decisão precipitada, seja comprar uma roupa, seja dar um murro na cara de algum desafeto. Mas, algumas vezes, acontece também em momentos muito menos urgentes, como aceitar um trabalho do qual não conseguirá dar conta, ou pedir demissão diante de um grande estresse. O que nos faz agir assim certamente não é a nossa capacidade de raciocinar, mas um padrão estranho com o qual talvez tenhamos nascido, talvez tenhamos aprendido. Para um dos mais importantes neurocientistas da história, o português António Damásio, o nome desse padrão é “marcador somático”. Como veremos, eles são essenciais para aprender quais emoções sentimos diante das diferentes situações que enfrentamos ao longo da vida. Incluindo o medo – e, por consequência, a ansiedade.

Em Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano, Damásio propõe três cenários que nos forçam a agir – do mais automático até o que exige mais raciocínio. Primeiro, a fome. Quando você está sem comer há certo tempo, o nível de glicose do seu sangue cai, e neurônios no seu hipotálamo detectam essa alteração – seu corpo não está nas condições ideais de funcionamento. Há uma situação pedindo uma ação, há um conhecimento fisiológico dessa situação em seu hipotálamo, e há uma estratégia num circuito neural que trará a resposta “fome”, que por sua vez fará você procurar por comida.

Isso é o que se chama de “homeostase” – a propriedade de um organismo manter suas condições ideais de funcionamento. É o mesmo que acontece quando estamos numa temperatura baixa – sentimos frio, automaticamente nossos pelos ficam eriçados e, conscientemente, buscamos abrigo ou roupas -, numa temperatura alta – sentimos calor, começamos a suar e conscientemente começamos a nos abanar – e quando somos feridos – sentimos dor, nosso cérebro dispara mecanismos analgésicos, como a produção de opioides naturais, e automaticamente nos afastamos do objeto que causa dor, para depois conscientemente cuidarmos do ferimento.

No segundo exemplo proposto por Damásio, há um objeto caindo. Há uma situação pedindo ação, há opções de ação (pegar ou não o objeto), cada um com uma consequência diferente. Mas não há tempo para que se construa uma estratégia racional para escolher a opção. Se nunca tivéssemos visto um objeto cair, não reagiríamos. Só que a experiência que tivemos ao longo da vida com situações parecidas nos faz agir dentro de um padrão. O objeto cai e, antes que a gravidade termine seu trabalho, você o pega. Estímulo e resposta passam a ser fortemente ligados.

O terceiro cenário é a escolha de uma carreira. Diferentemente da segunda situação, essa escolha exige o raciocínio. São muitas as opções, suas consequências têm inúmeras ramificações, que, por sua vez, envolvem curto, médio e longo prazo, com vantagens e desvantagens em diversas instâncias. Tudo precisa ser pesado e mediado pelo raciocínio. Ele avaliaria o custo e o benefício de cada escolha e chegaria à melhor. Mas será que quem manda nas nossas decisões – mesmo as mais complexas – é de fato o raciocínio?

Digamos que sua família seja de médicos bem-sucedidos e que você tenha preparo para passar num vestibular de medicina. Por outro lado, você sabe que o curso exigiria pelo menos seis anos de graduação mais uns dois anos de residência. E que você é muito mais interessado em cinema do que no tratamento de doenças de desconhecidos. Ao mesmo tempo, você sabe que o mercado de trabalho de profissionais do audiovisual é mais restrito do que o de médicos, e que um médico mediano tem mais sucesso financeiro do que um diretor mediano. Se você ficar nessa lenga-lenga de pensar o que é melhor para você, dificilmente chegará a uma conclusão. Talvez você acabe decidindo se tornar jornalista, para fazer matérias sobre saúde na televisão – um meio-termo que não satisfará nem a ambição financeira, nem o prazer pessoal.

Mas isso não é exatamente o que acontece com as pessoas. Algo interfere em nossas decisões racionais. Algo muito imediato. Algo que se parece muito mais com o cenário da fome e o do objeto caindo do que com a razão pura. E esse algo é o tal do marcador somático de Damásio. “Quando um marcador somático é justaposto a um resultado futuro em particular, a combinação funciona como um sinal de alerta. Quando em vez disso é justaposto um marcador somático positivo, ele se torna um incentivo”, escreve Damásio.

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Ao pensar em ser cineasta, você sente um grande prazer que não tem nada a ver com a razão. Mas, quando imagina um cenário bastante realista – o de um cineasta sem sucesso que, em vez de receber prêmios em Cannes, vê-se obrigado a filmar vídeos institucionais para empresas de pequeno porte para pagar seu aluguel -, você sente um medo ainda maior. Em seguida, vem a imagem de um contracheque inferior ao valor da soma de contas mensais – aluguel, prestação de eletrodomésticos, gás, eletricidade, condomínio etc. Não, o que você imagina não é uma simples conta negativa. É o desespero sem escapatória, que começa no arrepiar de seus pelos e no acelerar de seu coração, dizendo: “Não estudarás cinema.”

Então, você pensa em se tornar médico. Mas logo se lembra de como seus pais se sacrificaram em plantões de 24 horas seguidas. Seria horrível se você não pudesse acompanhar de perto o crescimento de seus filhos, não? É aí que você sente uma leve tristeza. Como já não está mais muito otimista, chuta o balde e começa a imaginar quantos acidentados com corpos destroçados sangrando até a morte você terá de enfrentar nesses plantões. E, de repente, seu estômago se revira: “Não estudarás medicina.”

Nesse breve tempo, você sentiu diferentes ameaças se aproximarem de você. Pobreza, solidão, sangue. E isso o faz rejeitar imediatamente qualquer um dos caminhos, diminuindo com isso as alternativas que lhe restam. Não quer dizer que sua razão tenha ido água abaixo. Você continuará a pensar de forma racional, mas os marcadores somáticos já terão reduzido suas alternativas. De repente, jornalismo e administração de empresas parecem alternativas extremamente racionais – embora tenham sido peneiradas por um processo seletivo altamente emocional.

Constantemente, adquirimos marcadores somáticos. Eles são emoções que, seja por experiência própria, seja por meio da comunicação, se colam a certos cenários futuros que fazemos. Quando a imagem de uma consequência negativa está conectada a um marcador negativo ligado, por exemplo, ao medo e à aversão, você experimenta em suas entranhas um sentimento desagradável.

E se está ligada a um marcador positivo de prazer ou felicidade, você experimenta um sentimento agradável. É por esse sentimento ser físico que Damásio o considera somático, e por estar relacionado a uma imagem que ele lhe deu o nome de marcador. A ação desse marcador é imediata, e protege você de possíveis perdas futuras.

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A publicidade usa o medo e o prazer para influenciar nossas escolhas inconscientes. A propaganda política faz o mesmo para apoiar este ou aquele candidato. Nossos pais e professores fazem o mesmo para tentar moldar nosso comportamento – com maior ou menor sucesso. Intencionalmente ou não, notícias e filmes também têm esse impacto.

Escolher a profissão não era um problema quando vivíamos na savana. Ou caçávamos – o que em geral ficava a cargo dos homens – ou coletávamos vegetais – o que ficava a cargo das mulheres e dos homens quando faltava o que caçar. Mas o mecanismo que cria os marcadores somáticos evoluiu da mesma forma que o medo de cobras, de solidão e de contaminação.

Para aprender a se proteger e a tirar vantagem de situações novas – e não apenas de padrões selecionados pela evolução -, nossos ancestrais precisavam aprender a ter medo e desejo por meio da experiência e das histórias contadas por seus familiares.

Com a capacidade de adquirir marcadores somáticos, aprendiam, por exemplo, a reagir imediatamente diante do uso de uma nova arma de um inimigo, ou a evitar sem pestanejar uma fruta venenosa que matou um irmão. Com os marcadores somáticos, nosso corpo aprende a reagir da mesma forma diante da possível ameaça de um leão, da água de um lago contaminado e da perspectiva de não conseguir pagar as contas no futuro.

Mas, afinal, como é que o corpo reage a emoções?

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A anatomia das emoções

Temos muitos tipos de emoções – estados do corpo que nos deixam aptos a um tipo específico de ação. As mais básicas delas – que compartilhamos com outros mamíferos – são emoções primárias. Felicidade, tristeza, medo, raiva, surpresa e aversão – nascemos com todas elas, e para cada uma delas temos uma expressão facial universal. O centro dessas emoções é o sistema límbico, que tem, entre outras estruturas, a amígdala (envolvida na sinalização de medo e recompensa, além do comportamento sexual), o hipocampo (que permite comparar experiências atuais com experiências passadas), a área tegmental ventral (que libera a dopamina, hormônio do prazer) e o hipotálamo (que sintetiza neuro-hormônios, que, por sua vez, controlam a secreção de hormônios responsáveis pela alteração do corpo em diferentes estados emocionais).

Evoluímos programados para reagir emocionalmente a alguns estímulos. Quando isso acontece, o sistema límbico prepara o corpo para a reação correspondente a esse estímulo fazendo três coisas:

  • manda o sistema nervoso autônomo (SNA, parte do sistema nervoso que controla funções da “vida vegetativa”, como a respiração, a circulação do sangue, o controle de temperatura e a digestão) dizer às vísceras que fiquem no estado certo;
  • manda o sistema motor dizer aos músculos esqueléticos que fiquem na postura corporal e na expressão facial certa para a reação certa;
  • manda o sistema endócrino produzir hormônios que causem as mudanças corporais e mentais certas.

Vamos pegar o exemplo de quando encaramos uma cobra preparada para dar o bote. Quando a amígdala recebe esse estímulo, ela manda o tronco encefálico (manda-chuva do SNA) e o hipotálamo (manda-chuva do sistema endócrino) agirem no que é chamado de resposta de “luta ou fuga” – a preparação de condições ideais do corpo para se livrar da ameaça.

O fígado começa a liberar glicose para você poder ter uma reação física; aumentam a pressão arterial e os batimentos cardíacos, para o sangue circular mais rapidamente; a respiração fica rápida, para aumentar a absorção de oxigênio e a liberação de monóxido de carbono; dilatam-se as pupilas; as artérias da pele e do sistema digestivo se contraem, para mandar sangue aos músculos (daí o friozinho na barriga e na pele); os músculos se enrijecem; a face se contrai, formando a típica expressão de medo; os trajetos de processamento da dor são bloqueados, e a atenção se torna completamente focada no risco (você não vai pensar em comida enquanto foge de uma cobra). Alternativamente, ficamos paralisados, com respiração superficial e batimentos cardíacos desacelerados, para não chamarmos a atenção de nosso possível atacante.

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Isso é o que acontece com o medo. Já a tristeza desacelera o raciocínio e nos leva a ruminar a situação que a desencadeou. A alegria acelera o raciocínio e focaliza a atenção a um só tópico. E assim seguem as emoções.

Só que o sistema límbico não basta para reagirmos emocionalmente às situações tão variáveis que o humano enfrenta. É verdade que sentimos o medo de um trovão, a felicidade de um prato de comida quando sentimos fome e a aversão ao cheiro de cadáveres. Mas, até aí, não somos muito diferentes de um cachorro. A nossa grande diferença são as emoções secundárias – aquelas que sentimos quando aprendemos a relacionar essas emoções primárias a novas categorias de objetos e situações.

Para isso, precisamos estabelecer relações entre o sistema límbico e a parte do cérebro humano que mais se desenvolveu em comparação com outros animais: o neocórtex. Ou, mais especificamente, o córtex pré-frontal (implicado no planejamento, na expressão da personalidade, na decisão e na moderação do comportamento social) e os córtices somatossensoriais (cada um responsável pela visão, audição, olfato, paladar e toque).

Ao longo da vida, passamos por um processo de educação por parentes e autoridades, que tendem a incorporar as convenções sociais e éticas de uma cultura, e também enfrentamos diferentes experiências. Todos esses tipos de objetos e situações ocorrem sob uma coloração emocional, geralmente por meio de recompensas e punições. Assim, eles são processados em nossos córtices de forma associada a essas emoções. É o que cria a conexão entre um tipo de objeto ou situação e uma emoção.

Vamos ver o caso de quando ouvimos falar que uma pessoa querida morreu. Quando isso acontece, segundo Damásio, nosso pensamento cria, em diversos córtices sensoriais, imagens mentais com aspectos do seu relacionamento com essa pessoa. Imagens, sons, sensações que você compartilhou com ela.

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Automática e inconscientemente, redes neurais no córtex pré-frontal respondem a essas imagens mentais, comparando-as aos pares de situação/objeto e emoção secundária. “Ou seja, essa emoção vem de representações dispositivas adquiridas, e não inatas, embora as disposições adquiridas sejam obtidas sob a influência de disposições inatas”, escreve Damásio. Assim, nossa biografia vai acumular um repertório único de emoções, com diferentes estímulos-chave para diferentes emoções-fechadura em cada pessoa. O que me causa medo não é necessariamente amedrontador para você.

Mas, uma vez dado esse passo de aprendizado de emoções, essas disposições são passadas de forma automática e inconsciente para o sistema límbico. A partir daí, segue-se o mesmo caminho das emoções primárias.

Para mostrar como emoções secundárias são diferentes das primárias, podemos pegar o exemplo de pessoas que, por alguma lesão ou por algum déficit neurológico, tenham uma ativação menor do córtex pré-frontal – parte do cérebro que processa os pares de situação aprendida e emoção secundária. Dito de forma mais simples, pessoas que não conseguem aprender emoções. É o caso do que o psicólogo canadense Robert Hare classifica como psicopatas.

É comum dizer que psicopatas não sentem emoção. Isso não é verdade. Eles sentem, sim. Mas apenas emoções primárias, inatas. Tal como nós, eles ficam com raiva quando sua vontade não é acatada, sentem prazer com sexo, comida, status social, e assim por diante. Ainda assim, não se comovem com a morte de um conhecido, não internalizam valores morais e não sentem culpa ou indignação quando tais valores são violados.

Psicopatas são especialistas em mentir, e são muito mais propensos a roubar, estuprar, matar e cometer outros crimes menos graves. Em geral, são espertos, mas, apesar de saberem que suas ações podem prejudicar os outros e ser punidas pelo sistema legal ou pelo rancor de suas vítimas, tendem a repetir seus atos. Isso porque a maquinaria neurológica que constrói e ativa os marcadores somáticos não funciona normalmente neles.

Geralmente, pessoas têm, sim, emoções primárias automatizadas, estruturadas em nossos genes. Mas, diferentemente dos psicopatas, elas também têm um espaço enorme para emoções pessoais, aprendidas e muito variáveis conforme a cultura. Japoneses tendem a ser mais contidos em suas demonstrações de emoção do que italianos não necessariamente por alguma diferença genética, mas possivelmente por diferenças entre suas culturas.

A cultura influencia na coleção de marcadores somáticos de um indivíduo. Da mesma forma, pessoas que vivem em grandes cidades violentas são mais ansiosas do que moradores de pequenos vilarejos de pescadores por diferenças entre suas experiências de vida – e pela diferença de marcadores somáticos por elas criados e pelas situações em que eles serão ativados.

Marcadores somáticos – que são sentimentos especiais gerados a partir de emoções secundárias – não bastam para tomarmos decisões. Mas eles reduzem alternativas, destacam certas opções e influenciam a escolha final. Depois de passar por essa peneira emocional, tomar decisões racionais se torna mais rápido e fácil.

Numa situação cheia de custos e benefícios a curto e longo prazo – como a escolha de uma profissão que exige muito tempo de estudo -, um marcador somático muito positivo conectado à consequência a longo prazo pode nos fazer escolher essas opções pouco imediatas. Ainda que o tempo entre sacrifício e recompensa apenas aumente nossa ansiedade. Tal como o que acontece quando se escreve um livro.

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Este conteúdo foi publicado originalmente no livro Como as Pessoas Funcionam, dos jornalistas Maurício Horta e Otavio Cohen.

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