O curioso caso do botox
Descoberta em linguiças, a toxina foi testada como arma química, tornou-se o melhor rejuvenescedor da medicina e deve sair em gel já no ano que vem
Em 1820, dezenas de pessoas bateram na porta do consultório do médico Justinus Kerner, no norte da Alemanha, reclamando de sintomas misteriosos. Além de visão dupla, boca seca e problemas intestinais, os doentes sentiam uma paralisia que progressivamente tomava conta dos seus corpos. A doença desaparecia após alguns meses. Mas, em alguns casos, a imobilidade muscular era tão severa que interrompia a respiração, levando à morte. Alarmado, o médico, que tinha apenas 29 anos, iniciou uma investigação obsessiva para tentar entender o que provocava a estranha enfermidade. E descobriu que todos os afetados tinham algo em comum: haviam comido linguiça de sangue de porco horas antes de passarem mal – sangue suíno coagulado é um prato tão popular na Alemanha quanto a versão bovina é na Argentina e no sul do Brasil, com o nome de morcilla. Além de barato, o alimento é prático: pode ser mantido em conserva por vários meses antes de ser consumido.
Mesmo sem ter como provar, Kerner ficou convencido de que algum ingrediente nas linguiças havia atacado o sistema muscular dos seus pacientes. Ele apelidou a substância misteriosa de “veneno de linguiça”, e emitiu um alerta para que a comunidade evitasse o consumo do alimento. O médico, que passou a ser conhecido como Kerner Linguiça, passou o resto da vida investigando o perigo – e as utilidades do veneno. Nas suas publicações, chegou a afirmar que, se um dia a substância fosse extraída das morcillas suínas, poderia ser inserida em músculos específicos, provocando uma paralisia localizada e temporária. O que seria muito útil para a medicina no futuro.
Quase cem anos se passaram até que a medicina evoluísse o bastante para testar as teorias do médico alemão. Mas, aos poucos, elas foram sendo comprovadas. Na virada do século 20, cientistas identificaram uma bactéria que se desenvolve em ambientes com pouco oxigênio, como alimentos em conserva. E descobriram que, quando ingerida, bloqueia a ação do neurotransmissor acetilcolina, que faz a comunicação entre os músculos e o sistema nervoso. O resultado é uma paralisia muscular. O microrganismo ganhou o nome de Clostridium botulinum, ou seja, a bactéria da linguiça. E a doença que provoca foi chamada de botulismo.
Ao aprofundar as investigações em laboratório, pesquisadores comprovaram que a toxina realmente tinha um efeito temporário no corpo humano. Após alguns meses, as vítimas desenvolviam novos terminais nervosos nos músculos, e a função muscular era restabelecida. Por outro lado, perceberam que a substância poderia ser muito mais letal do que Kerner havia previsto. Na sua forma mais pura, um único grama da toxina botulínica tinha o potencial de matar 1 milhão de pessoas. Sete quilos, portanto, poderiam acabar com a humanidade. Até por isso ela viraria arma.
Arma bioquímica
Com a aproximação da 2ª Guerra Mundial, o exército dos Estados Unidos, por meio do Programa de Armas Biológicas, começou a testar uma série de substâncias. Entre elas, a toxina botulínica. Os experimentos nunca foram revelados, mas existem relatos sobre cientistas que chegaram a produzir pílulas do tamanho de alfinetes com uma quantidade letal da substância. De acordo com um artigo publicado em 2004 pelo periódico britânico Clinical Medicine, o plano era que prostitutas chinesas envenenassem a bebida de oficiais japoneses do alto escalão durante alguma de suas festas. Nunca se soube se o plano foi colocado em prática.
Depois da guerra, pesquisadores aproveitaram o conhecimento deixado pelos militares para desenvolver um derivado diluído da substância, que chamaram de tipo A. Para a surpresa dos pesquisadores, ao aplicar o líquido em animais, não apenas a toxina relaxava os músculos, mas agia de forma localizada, sem se espalhar para o resto do corpo. No início dos anos 1960, o médico americano Alan B. Scott, ligado ao centro de pesquisas oculares Skeri, em São Francisco, resolveu testar a substância em humanos. Em uma ideia um tanto ousada, ele planejava injetar uma versão diluída da toxina botulínica nos músculos oculares de pacientes com estrabismo para reduzir o desalinhamento involuntário dos olhos. O tratamento foi um sucesso. Logo, a toxina também foi testada para aliviar espasmos faciais e cervicais, mais uma vez com bons resultados. Em 1988, a tecnologia foi comprada pela empresa farmacêutica Allergan. Inicialmente chamada de Oculinum, mais tarde foi lançada com o nome de Botox. O medicamento foi bem recebido por oftalmologistas de todo o mundo. Mas nenhum deles gostou tanto da novidade quanto a canadense Jean Carruthers. A médica resolveu testar a droga em pacientes que sofriam de blefaroespasmo, uma doença que provoca o fechamento involuntário das pálpebras. E, após algumas aplicações, descobriu que não apenas o produto era eficaz para tratar o problema, mas que, a cada consulta, os seus pacientes apareciam mais jovens. Misteriosamente, as rugas das suas testas estavam desaparecendo desde que iniciaram o tratamento. Incrédula, a médica compartilhou a notícia com o seu marido, o dermatologista Alaistair Carruthers, e juntos resolveram pesquisar os efeitos estéticos do produto. O casal aplicou a toxina na testa de 18 pacientes durante um ano. Em um artigo publicado em 1992 no periódico The Journal of Dermatologic Surgery and Oncology, concluíram que em 16 casos a toxina havia eliminado as rugas ao relaxar os músculos da face. E o melhor: não deixara efeitos colaterais.
Corrida pelo Botox
O tratamento não era tão simples. O líquido transparente tinha que ser injetado com uma seringa diretamente nas rugas, o que não era nada confortável. O efeito durava poucos meses. E, ainda por cima, cada aplicação custava o equivalente a R$ 1 mil. Mesmo assim, a novidade sobre o tratamento antirrugas foi se espalhando boca a boca. Em pouco tempo, o produto ganhou o apelido de “droga milagrosa” e uma legião de adeptos nos Estados Unidos, antes mesmo do tratamento ser aprovado pelo governo americano para o uso estético. Em 1997, quando uma leva de botox teve que ser recolhida por ser defeituosa, a falta do líquido gerou um verdadeiro pânico entre médicos e pacientes das grandes cidades americanas.
Desde então, a sua popularidade só aumenta. O número de usuários nos Estados Unidos saltou 748% entre 2000 e 2015. Hoje, o produto é usado por 6,2 milhões de pessoas nos EUA, liderando a lista dos tratamentos estéticos mais procurados. O Brasil não fica muito atrás. A Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS) divulgou no ano passado que os brasileiros são vice-campeões no ranking global de usuários de botox. O Brasil registra, anualmente, 7,4% das aplicações mundiais do produto, ficando atrás apenas dos EUA.
Segundo o cirurgião plástico Edilson Pinheiro, que atua em Fortaleza, a popularidade é compreensível. “Não existia nada parecido antes do botox. A única alternativa era fazer plástica na face, o que deixava as pacientes com o rosto todo esticado”, diz. A procura pelo produto foi tanta que o médico teve que mudar de foco profissional no meio da carreira. Ele havia se especializado em cirurgia plástica pela Clínica Ivo Pitanguy, mas acabou fazendo uma pós-graduação em dermatocosmiatria, uma área da dermatologia focada no rejuvenescimento. Hoje, a maior parte dos seus pacientes procura o seu consultório em busca do tratamento. Em geral, são mulheres com idades entre 40 e 50 anos que querem suavizar rugas da testa, acima dos lábios e em volta dos olhos.
Para o alívio das pacientes, a técnica de aplicação do produto tem sido aperfeiçoada para dar uma aparência cada vez mais natural aos rostos. “No início as mulheres ficavam com as caras congeladas. Pareciam ter o mesmo rosto sorrindo e chorando. Mas hoje não é mais assim”, afirma José Octávio de Freitas, diretor da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBPC). Parte da mudança é graças à anestesia que agora acompanha o produto, reduzindo o desconforto das injeções. Dessa forma, o médico consegue aplicar pequenas doses da substância em várias regiões da face, permitindo que a pele mantenha uma certa flexibilidade.
Ao mesmo tempo, os médicos agora evitam usar a toxina nos músculos responsáveis pelas expressões faciais, como o bigode chinês – aquele traço que vai do cantinho do nariz ao cantinho da boca. Como alternativa, usam substâncias que preenchem o vinco, como o ácido hialurônico. O objetivo é garantir que o paciente saia do consultório com a habilidade de se expressar.
Para o futuro, a tendência é que a toxina botulínica ganhe adeptos cada vez mais jovens. Uma técnica que já está sendo usada em alguns consultórios utiliza a substância para paralisar os músculos antes da formação de rugas. O objetivo é evitar o surgimento dos vincos com o passar dos anos. Apesar de polêmico, o tratamento recebe o respaldo de alguns médicos brasileiros. “Os músculos da face trabalham o dia inteiro, todos os dias. Ao paralisá-los por alguns meses, é possível dar um descanso para essa ginástica toda, e evitar o surgimento de rugas”, afirma Pinheiro. O tratamento, segundo o médico, é ideal para aquelas pessoas que têm uma tendência genética para ter vincos bem marcados, como no meio da testa. Mesmo assim ele se recusa a aplicar o produto em adolescentes.
Além disso, tudo indica que, em breve, as injeções na testa serão coisa do passado. O laboratório farmacêutico Revance, da Califórnia, está desenvolvendo a toxina botulínica em gel. Ao pesquisar ainda mais a substância, cientistas descobriram que os peptídeos, biomoléculas compostas de aminoácidos, podem ajudar a toxina a penetrar na pele e chegar aonde interessa, nos músculos. De acordo com um pronunciamento da empresa realizado em dezembro de 2015, o gel já foi testado e teve resultados promissores. Aproximadamente 89% dos sujeitos viram os seus pés de galinha desaparecerem após uma única aplicação do produto. A previsão é que o botox em gel seja lançado em 2017. O médico Julius Kerner, vulgo Dr. Linguiça, ficaria orgulhoso.
Botox: manual do usuário
1. As rugas são marcas que aparecem no rosto nos locais onde as pessoas costumam contrair a pele ao expressar emoções. Com o passar dos anos, os vincos vão ficando permanentes.
2. O botox é inserido no músculo. Em 48 horas, bloqueia os receptores de acetilcolina, um neurotransmissor que faz a comunicação entre músculos e o sistema nervoso. Quando o músculo deixa de receber sinais nervosos, o local fica paralisado.
3. Com o relaxamento muscular, as rugas e vincos da pele ficam menos visíveis. Mas o efeito é temporário. Após 3 a 5 meses, o corpo produz novos receptores de acetilcolina e o músculo volta a se contrair normalmente.
Fique atento
1. As injeções deixam pontos vermelhos na testa, que desaparecem após alguns dias.
2. Pequenos hematomas podem surgir logo após a aplicação.
3. Recomenda-se evitar a exposição ao sol alguns dias após o procedimento.
4. O tratamento não é indicado para portadores de doenças neurodegenerativas ou respiratórias.
5. Da mesma forma, a substância não deve ser aplicada em gestantes e lactantes.