Gravidez: extraordinária pela própria natureza
A gestação humana é inédita no reino animal: invade o corpo da mãe como nenhuma outra e termina em partos, no mínimo, trabalhosos. Tudo isso é culpa da evolução, que tem como único objetivo criar filhotes geniais: nós.
Se você parar para pensar, produzir um ser humano dentro de um outro ser humano é uma coisa mirabolante. Gerar um filho está entre as coisas mais malucas que podem acontecer com qualquer pessoa. Desenvolvemos um órgão completamente novo para isso – a placenta – e o corpo da mãe passa nove meses cedendo seus nutrientes mais valiosos para acomodar o novo morador. Estamos acostumados a pensar que tudo isso faz parte do processo normal de gerar uma vida – mas não é bem assim. As outras espécies têm gestações bem mais simples e banais do que a nossa.
Outras espécies conseguem caçar, correr e se proteger mesmo carregando inúmeras crias.
Nós não.
Para começar, nossa gestação é mais “radical” do que a média. Grande parte dos bichos, mesmo na nossa classe de mamíferos, é capaz de manter uma baita autonomia durante o processo. Suas fêmeas se locomovem para caçar, fugir e proteger o próprio lar com razoável sucesso e facilidade, inclusive no final da gestação, mesmo carregando seis, sete ou oito crias ao mesmo tempo. Imagine fazer isso com uma barriga de oito meses de um único bebê humano?
Se você já assistiu a algum canal de vida animal, também já deve ter visto um fenômeno parecido na hora do parto. As fêmeas das outras espécies continuam pastando, caminhando e não parecem nem piscar de dor enquanto dão à luz. Nós somos um pouco diferentes. Nosso parto é tão doloroso que evidências arqueológicas mostram que a figura da parteira existe há pelo menos 7 mil anos. Ou seja, ao menos desde a Idade do Cobre o parto não é algo a ser encarado por uma pessoa sozinha.
Essa “gravidez especial” é consequência direta da evolução humana. A capacidade dos nossos ancestrais de andar sobre duas pernas, por exemplo, foi essencial para que nos transformássemos na espécie dominante do planeta: otimizamos a energia gasta para andar e liberamos as mãos do chão, que viraram formidáveis produtoras de ferramentas. Mas ferramos as mães. Com o bipedismo, nossos quadris se tornaram mais curtos e estreitos, o que diminui o espaço que o bebê tem para passar na hora do parto.
Dilema obstétrico: a combinação de quadris estreitos e nenês com cabeças (e cérebros) grandes complicou os partos da nossa espécie.
Isso não seria um problema tão grande se não fosse a segunda mudança que nos tornou a espécie dominante do planeta: um baita cerebrão. Ao longo da evolução, o cérebro do gênero Homo não parou de crescer – principalmente o córtex cerebral, a parte responsável pelos pensamentos e movimentos complexos. A massa encefálica é responsável por 2,5% do nosso peso. Outros mamíferos, como gatos (1% do peso), cachorros (0,8%) ou até mesmo os elefantes (0,1%), ostentam cérebros bem mais humildes. O volume do cérebro humano triplicou ao longo da evolução – e a consequência direta, é claro, foram bebês mais cabeçudos.
A combinação de quadris estreitos com nenês com cabeção (chamada pelos cientistas de “dilema obstétrico”) tornou o nascimento humano um negócio delicado – literalmente, um trabalho de parto.
Um órgão alien
Parte do que torna a gravidez tão doida é a nossa placenta. A maioria dos nossos colegas mamíferos têm placentas bem tímidas e discretas – elas interagem superficialmente com o organismo da mãe, só o mínimo para captar do sangue os nutrientes necessários para manter o feto crescendo. Alguns grupos, como os marsupiais, nem permitem o contato direto do futuro bebê com o sistema circulatório materno.
A placenta humana é agressiva: se espalha pelo corpo da mãe e passa a manipular seu organismo sem dó.
Já os ratos e nós, os primatas, damos aos fetos um acesso único ao organismo da mãe, graças a um tipo de placenta chamada hemocorial. Conforme o bebê cresce, esse órgão se ramifica no espaço que puder encontrar, cavando inclusive através do endométrio, tecido cuja função seria separar o útero do sistema circulatório da mulher. Essa expansão da placenta é tão agressiva que abre espaço para células fetais se espalharem por todo o organismo materno – os cientistas já encontraram algumas vivendo no cérebro de mães décadas depois do nascimento dos filhos. De novo: isso é raridade no mundo animal. Na gravidez com tipos menos invasivos de placenta, quem costuma controlar o jogo é a mãe. O suprimento de nutrientes depende exclusivamente do organismo dela.
A placenta tão arraigada no corpo materno faz com que, pelo menos na teoria, o bebê humano fique parecido com um alien dentro da mãe, um que realmente altera o funcionamento do corpo hospedeiro. Qualquer problema com o feto e a placenta pode levar a uma hemorragia interna. Esse é o motivo pelo qual alguns abortos espontâneos podem levar a grandes sangramentos: a gestação humana destrói completamente a divisão entre o “território materno” e o “território do filho” no organismo – não dá para mexer em um sem afetar o outro.
Espécie especial
Mas todas essas características parecem contraintuitivas: por que a seleção natural não eliminou essas complicações da gestação humana? É porque o risco compensa. Novamente, todas as pistas apontam para o cérebro. A gravidez menos sofrida e mais comum no mundo animal produz mecanismos de autopreservação da mãe que teriam tornado impossível que bebês com um cérebro tão poderoso quanto o humano se desenvolvessem.
Cérebros são órgãos caros de se manter. Se você recebesse uma conta de luz de todo o seu organismo, o cérebro sozinho seria responsável por 20% do gasto de energia que seu corpo tem. Em estado de repouso, como você deve estar enquanto lê essa revista, ele chega a representar 70% do seu custo energético. Imagine quanto custa, para o corpo da mãe, produzir um segundo órgão desses dentro da barriga.
“A seleção natural age sobre os genes do feto para aumentar a transferência de nutrientes para ele”, afirma a bióloga evolutiva Deena Emera, da Universidade Yale, em um artigo publicado pelo periódico PLOS One. Evolutivamente falando, é muito provável que uma gravidez tão invasiva tenha sido a única forma de prover acesso irrestrito à energia que o bebê precisa para garantir um supercérebro.
Toda essa gravidez custosa é justificada pelo supercérebro humano. Mas a maternidade extraordinária não acaba por aí.
Não há dúvidas de que esse custo todo vale a pena para nós como espécie. Ter um cérebro mais poderoso supera os riscos da bizarra gravidez humana. Graças às nossas incríveis células cinzentas, desenvolvemos tudo que nos torna humanos: a linguagem, as relações sociais complexas, a ciência, a arte. Foram elas também que desenvolveram a tecnologia que permite driblar as complicações naturais da gestação humana – a começar pelas cesáreas.
Mas a história não acaba aí: mesmo com acesso a um buffet ilimitado de nutrientes maternos por nove meses, o bebê humano ainda nasce frágil e dependente – muito mais do que outras espécies. Bebês girafas, por exemplo, começam a caminhar horas depois de nascer, e filhotes de golfinho já nascem sabendo nadar. Se você já viu um recém-nascido humano, já deve ter percebido que chegamos ao mundo sem nem conseguir virar a cabeça sozinhos. Até o nosso cérebro, obra-prima da seleção natural, ainda precisa de um bom tempo para amadurecer depois de sair do útero. Nossos filhotes precisam de muita atenção e companhia – principalmente de suas criadoras. E aí entra outro mecanismo especial da nossa maternidade.
Amor de mãe
Se uma substância merece crédito como “madrinha” da relação que surge entre mãe e filho, essa é a ocitocina, o “hormônio do amor”. Ela está presente desde o parto – são seus picos no sangue que induzem as contrações – além de fazer “descer” o leite para amamentação.
O aumento da ocitocina no corpo da mãe durante o trabalho de parto também afeta o cérebro dos bebês: ela é tida como a responsável por “sincronizar” os neurônios do hipocampo do feto, área que é responsável por formar as memórias. Assim, teria papel essencial em ajudar o recém-nascido na transição da vida dentro do útero para a vida fora dele.
A atribuição mais famosa do hormônio, porém, é a de promover o vínculo emocional mãe-bebê. E o mecanismo por trás dela é genial: uma série de estímulos banais de um recém-nascido servem como gatilhos para a produção de ocitocina na mãe. Só de sentir o cheiro do bebê ou ouvi-lo fazer barulho, o cérebro materno se enche dela. A mera decisão de amamentar, antes mesmo do bebê levar a boca ao mamilo, desencadeia outra bomba de ocitocina.
Nesse ponto é que o amor vira uma vantagem adaptativa: ele estimula a produção de ocitocina, que estimula a expulsão do leite, que por sua vez estimula a amamentação que leva a mais ocitocina, mais amor e mais leite. Do ponto de vista evolutivo, tudo isso culmina na proteção e na nutrição ideal para o cérebro em formação da criança, além de sessões mais curtas de amamentação. Em estado selvagem, isso deixaria mãe e bebê expostos por menos tempo a predadores.
O cérebro da mãe também fica turbinado. Sob o efeito da ocitocina, ele se torna mais capaz de reconhecer as emoções de recém-nascidos. Há também um aumento na atenção e concentração e uma melhora até da memória espacial e de longo prazo, o que alguns cientistas atribuem à vantagem conferida às mães que, em estado selvagem, localizavam melhor as fontes de comida e abrigo. Traduzida para tempos atuais, a memória extra pode muito bem dar uma mãozinha na hora de lembrar quais são as vacinas que faltam, quando é a próxima visita ao pediatra, quantas fraldas estão na bolsinha do nenê – e, caramba, a mamadeira ainda está fervendo!
Se não bastasse promover sensações de “conexão emocional”, a ocitocina funciona como um redutor natural de estresse – estudos mostram que mulheres, enquanto amamentam, são menos sensíveis ao cortisol, hormônio que surge em resposta ao alerta e à preocupação. Nada mais justo, depois que a evolução tornou o nascimento humano tão complicado.
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