Cérebro humano
Cem trilhões de conexões celulares, em eterna troca de informações, tecem a estrutura mais complexa do Universo: o cérebro humano.
Lúcia Helena de Oliveira
Preste atenção. Ler este pedido é possível porque os olhos traduziram a imagem de cada letra em centenas de milhares de sinais elétricos que, em linha quase reta, escorregaram até a parte de trás da massa gelatinosa abrigada na caixa do crânio. Daquela região, próxima à nuca, foram disparados outros milhares de mensagens que se esparramaram pelas laterais, encontrando na superfície rugosa da massa uma área capaz de reconhecer as letras e montar palavras. Em seguida, partiram dali, em todas as direções, ondas elétricas que, ao varrer a víscera cinzenta, encontraram o significado da frase, escondido em um canto qualquer da memória.
Compreendida, a ordem foi comparada a outras mensagens, desde relatórios sobre o organismo a informações sobre o ambiente, que chegam a todo instante ao cérebro humano – uma construção tão complexa que os melhores cérebros que se dedicaram a estudá-la concluíram, sem preocupação com a modéstia, que não existe nada igual em todo o Universo conhecido. Então, se ao cérebro que defrontou com a primeira linha deste texto nada pareceu mais importante do que o pedido de prestar atenção, se por algum motivo não brotou na memória uma forte saudade nem irrompeu no organismo uma dor de dente, é bem capaz que o sistema nervoso tenha decidido escalar mais células para interpretar a leitura, atendendo à solicitação. E, caso todo o processo tenha ocorrido, durou exatamente o tempo necessário para ler as quatro primeiras palavras do texto.
De uma célula para outra, no entanto, a informação trafega no cérebro 1 milhão de vezes mais devagar do que um sinal de computador. Apesar da desvantagem inicial, porém, o cérebro consegue reconhecer um rosto em fração de segundo; portanto, no final das contas, está um corpo à frente da Informática. A diferença é possível porque bilhões de células nervosas, os neurônios, podem trabalhar ao mesmo tempo na solução de um único problema, como identificar uma forma ou compreender uma ordem, enquanto um computador processa bovinamente, passo a passo, as informações que recebe. Só recentemente começaram experiências para fazê-los trabalhar em paralelo, como o cérebro humano.
Apenas nos últimos dez anos os cientistas começaram a desvendar para valer os mecanismos cerebrais que tornam o homem inteligente. E as últimas descobertas aconselham apagar da memória a gasta analogia do computador. Parece muito mais adequado comparar o cérebro humano a um movimentado pregão da Bolsa ou a um igualmente agitado debate estudantil em que as informações pipocam de forma desorganizada e muitas vezes prevalece quem fala mais alto. No ano passado, cientistas americanos concluíram que qualquer estímulo que chega ao cérebro não segue uma rota definida, mas percorre diversos caminhos de neurônios, e alguns vão levar a dados que nada têm a ver com a assunto tratado.
Mas sempre que determinado estímulo encontra uma espécie de eco em algum dado estocado na memória, esse circuito passa a ser mais ativado, como se gritasse alto e bom som uma pista. No final, é como se o cérebro escolhesse as pistas e, por intuição, decidisse em favor de uma resposta, mesmo que incompleta, pelos dados de que dispõe. Graças a essa maneira aparentemente desajeitada de ser inteligente, às vezes nem com muito esforço o homem resolve equações cuja solução uma calculadora de bolso daria em um zás-trás.
Em contrapartida, é essa fórmula de sempre trabalhar simultaneamente com um grande número de informações que dá à inteligência humana toda a flexibilidade, fazendo com que o homem seja capaz de reconhecer depois de muito tempo um amigo que deixou crescer a barba, ou de imaginar um passeio de gôndola sem nunca ter pisado em Veneza e, principalmente, de lidar com toda sorte de imprevistos. Para chegar a essa compreensão dos mecanismos da inteligência, os americanos criaram um computador programado de acordo com os conhecimentos que se tem sobre a anatomia cerebral, ou seja, a forma como os neurônios se distribuem. É que na geometria dessas células de 1 centésimo de milímetro de diâmetro e de seus prolongamentos pode estar o segredo de ser humano.
Cada um dos 100 bilhões de neurônios do cérebro está ligado a 10 mil outros e assim é capaz de receber 10 mil mensagens ao mesmo tempo; a partir desse colossal volume de informações, o neurônio tira uma única conclusão, a qual, por sua vez, pode ser comunicada a milhares de outras células.
Calcula-se que existam entre os neurônios nada menos de 100 trilhões de contatos, as sinapses. Junto com a câmara de pósitrons, o único aparelho que permite visualizar o cérebro em atividade, o computador simulador de neurônios é um dos recentes recursos que podem ajudar o homem a conhecer os segredos da sua inteligência. Mas devagar com o andor. Podemos entender os mecanismos básicos. No entanto, dizer que a gente entenda tudo é um grande exagero, adverte o neurologista Esper Cavalheiro da Escola Paulista de Medicina. Conhecemos muito melhor o cérebro do macaco do que o do homem, informa esse professor, que passa o dia no laboratório. O chimpanzé, por exemplo, é um dos animais mais inteligentes, pois pode até aprender uma dúzia de palavras em linguagem de surdo-mudo e manter certa comunicação com seres humanos, compara. Mas, entre o cérebro do chimpanzé e o do homem existe um abismo.
A quantidade de novos genes que o homem adquiriu na evolução, em relação aos genes de seus ancestrais primatas, é muito pequena para justificar o avanço no sistema nervoso. Esse salto para a inteligência é um dos maiores enigmas da espécie humana. Coincidência ou não, aponta Cavalheiro, junto com o crescimento da área ligada a funções intelectuais, aparece a linguagem, uma aquisição que permite aos homens registrar informações, de maneira que cada geração não precise reinventar a roda. Os outros animais, sem aquela parte frontal do cérebro, não deixam história.
Se pudesse ser esticado, o cérebro humano também seria o maior entre os de todas as espécies. Pois, na realidade, a sua superfície cor de chumbo, o córtex, esconde nas reentrâncias nada menos de 9 décimos de sua área. E, em matéria de cérebro, ter uma vasta superfície vale muito mais do que a víscera pesa – afinal, seu quase 1,3 quilo ( 1,350 nos homens e 1,100 nas mulheres) é metade de um cérebro de baleia colocado na balança. A importância do córtex se deve ao fato de sediar a maior parte dos neurônios, as células nervosas que deixam fluir as idéias. Tais células foram observadas pela primeira vez em 1873 pelo fisiologista italiano Camillo Golgi (1843-1926), que descreveu seus milhares de prolongamentos espalhados feito galhos: são os dendritos, a porta de entrada das mensagens enviadas por outras células; o neurônio possui ainda um único axônio, ponto de partida da informação que processa.
São esses prolongamentos revestidos de uma substância branca que cruzam o cérebro de um lado para outro, tecendo a massa branca na parte interna da víscera. O fisiologista espanhol Santiago Ramón y Cajal (1852-1934) notou em 1889 que os prolongamentos dos neurônios, medindo de milésimos de milímetro até mais de 1 metro, não formam fios contínuos, feito cabos elétricos. Pois, na realidade, uma célula nervosa não encosta em outra. Uma informação salta o vazio entre um neurônio e outro graças a proteínas muito especiais, sintetizadas nas próprias células nervosas: são os neurotransmissores. Até a década de 70 se conhecia uma dúzia dessas substâncias mensageiras químicas; hoje os cientistas contabilizam mais de cinqüenta.
Isolá-las e conhecer as suas principais propriedades é uma coisa, esclarece o neurologista Jorge Facure da Universidade de Campinas, no interior de São Paulo. Mas ao se verem os neurônios em ação é quase impossível saber quais neurotransmissores estão sendo liberados naquele momento. Faz sentido: afinal, muitos neurônios fabricam mais de uma dessas substâncias, selecionando o momento de usá-las, a concentração e até a dose indicada, tudo conforme o sinal que pretendem transmitir. Nos Estados Unidos, conta o médico Facure, que já trabalhou ali, existem prédios inteiros ocupados por laboratórios dedicados exclusivamente ao estudo de neurotransmissores, tal a sua complexidade.
Há dois anos, Facure está à frente de uma equipe da Unicamp concentrada numa das mais instigantes investigações sobre o cérebro humano: trinta pesquisadores das mais diversas áreas – da Medicina à Informática, da Física à Psicologia – reúnem todos os dados ao alcance da ciência para tentar descobrir se existe alguma relação entre a mente e a matéria. Em outras palavras, a pesquisa confronta a delicada questão da possível existência de uma mente – que alguns preferem chamar alma – habitando os circuitos nervosos e controlando o funcionamento cerebral.
De fato, tão complicado como entender a inteligência é compreender por que ela se manifesta de maneira diferente de pessoa para pessoa. Ou seja, compreender por que uns são mais criativos do que outros, por que há quem goste de compor música e quem prefira escrever, como enfim a inteligência se desdobra em infinitos perfis. De acordo com os cientistas, para se tirar alguma conclusão dessa trama cerebral, o fio da meada é a comunicação entre os neurônios, cujas membranas funcionam feito uma divisória, separando cargas elétricas opostas: dentro da célula nervosa existem substâncias predominantemente negativas e, do lado de fora, encontram-se substâncias predominantemente positivas.
Um estímulo qualquer, como a visão de um retrato, subitamente inverte a situação: dentro do neurônio a eletricidade passa a ser positiva e, fora, negativa. A inversão, que dura um ínfimo milésimo de segundo, gera uma onda elétrica que percorre o neurônio de ponta a ponta. Ao alcançar o final do axônio – que se bifurca sucessivamente -, a corrente elétrica provoca uma alteração na membrana da célula. Assim, abrem-se brechas por onde escapam espécies de pacotes recheados de determinado neurotransmissor. Os pacotes logo se encaixam nos dendritos das células nervosas e ali se derretem, liberando o mensageiro químico. Este, por sua vez, provoca a inversão de carga que gera o sinal elétrico.
Para o neurônio que recebe a informação, as coisas não são tão simples. Afinal, é alcançado ao mesmo tempo por milhares de outras mensagens. O sinal elétrico resultante não é necessariamente a soma de todos os sinais recebidos, explica Esper Cavalheiro, da Escola Paulista de Medicina, enquanto rabisca um exemplo. Segundo tal esquema, se alguém segura uma xícara de café muito quente, um neurônio pode ordenar: larga; um segundo neurônio, porém, passa a informação de que aquela é uma raríssima peça de porcelana chinesa. Provavelmente, a segunda mensagem irá atenuar a intensidade da primeira, de modo que a pessoa, apesar da dor, controlará o movimento da mão até pousar a xícara com cuidado sobre um móvel.
De acordo com as informações que um neurônio está habituado a receber, vai formando um comportamento. Passa a precisar de certa quantidade de energia, a produzir determinada dose de proteína, a reagir de modo específico a um estímulo. No final, um neurônio é sempre diferente de outro. Pode-se perguntar, no entanto, como o cérebro interpreta separadamente cada informação, sem confundi-las. O segredo é receber as mensagens por dendritos diferentes. Um neurônio, capaz de calcular a distância de onde veio uma mensagem, pode assim concluir qual de suas entradas ou dendritos foi usada naquela vez e, conseqüentemente, qual neurônio a está enviando.
O neurônio vai além: ao decodificar determinado sinal, sabe que a célula que o enviou está, por sua vez, sendo estimulada por tais e quais neurônios. Alguns cientistas, porém, acham que essa explicação é um tanto simplista.. Na opinião do neurofisiologista Luiz Menna-Barreto, da Universidade de São Paulo, não se pode entender o mecanismo de compreensão de mensagens quando se pensa em um único ou mesmo em poucos neurônios. O cérebro sempre raciocina em cima de centenas de milhares de células nervosas. É muito mais adequado imaginá-lo como um jogo de batalha naval em três dimensões, onde os pontos assinalados seriam neurônios ativados, sugere Menna-Barreto. Conforme o padrão formado por esses pontos, o cérebro entende um significado.
Existem neurônios que já nascem sabendo o que fazer: é o caso dos que controlam o ritmo cardíaco, feito marca-passos, disparando constantemente ondas elétricas em uma freqüência predeterminada. Outros, porém, surgem como folhas em branco, mas, à medida que um estímulo chega ali pela primeira vez, fica gravado para sempre de alguma maneira ainda não muito clara para os cientistas. Ou seja, aquele neurônio ativado passará a gerar regularmente a onda elétrica desencadeada pelo estímulo, que pode até já ter desaparecido.
Do mesmo modo, na batalha naval imaginada por Menna-Barreto, existem padrões inatos de comportamento cerebral, como os do sono. Mas outros padrões são criados pela experiência. Isso é possível graças à mais fantástica característica do cérebro humano: a plasticidade. Pode-se visualizar as ligações entre os neurônios como caminhos, a maior parte deles criados na infância. No decorrer da vida, o cérebro deixa de lado na memória as ruas por onde transitam poucas informações. Em compensação, rasga novas estradas e abre avenidas nas áreas por onde passam muitos estímulos nervosos. Isto é, faz crescer novos prolongamentos unindo mais neurônios ou aumenta as áreas de contato, as sinapses, já existentes entre as células.
Quanto mais sinapses, mais recursos de informações, resume o neurologista Saul Cypel, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Logo, mais inteligente ou criativo aquele cérebro tende a ser. Segundo ele, a existência de mais sinapses em determinadas áreas cerebrais justificaria uma facilidade maior para lidar com um assunto do que com outro. Alguém que cresceu ouvindo música, exemplifica, provavelmente desenvolveu muitas sinapses na área do cérebro responsável por esse tipo de percepção. Daí, tende a ter talento para a música. Se a habilidade pode ser, fisiologicamente, questão de prática, não se pode esquecer de outro ingrediente fundamental à plasticidade das células nervosas: a emoção, algo que em neurologuês pode ser descrito como um mero conjunto de reações químicas na massa cinzenta.
O sistema nervoso tende a formar as tão importantes conexões entre as suas células ali onde existe uma dose concentrada de afeto. A percepção auditiva dos pais é um exemplo claro: o menor choramingo do filho explode, na calada da noite, como efeito despertador de uma turbina de Boeing. Isso porque a emoção fixa as sinapses: assim, toda informação relacionada àquela criança merece atenção do cérebro. Na realidade, a emoção está em jogo mesmo nas atividades mais banais do dia-a-dia. Toda vez que se lê um texto, os trechos mais marcantes, agradáveis ou desagradáveis, ganham mais sinapses no cérebro. É o afeto que ajuda a determinar a importância e a permanência de um registro na memória. Mas, de qualquer maneira, toda informação nova é gravada nos neurônios e forma sinais elétricos, que de seu lado inauguram diferentes caminhos de axônios para compreendê-la. Em suma, ninguém é exatamente o mesmo após ler uma matéria como esta.
Para saber mais:
(SUPER número 1, ano 10)
Flagrando os miolos em ação
Médicos americanos pediram a voluntários que resolvessem problemas de raciocínio abstrato – e concluíram que o cérebro daqueles que se saíram melhor no teste consumia um terço a menos de energia. Isso leva à suspeita de que quanto mais neurônios conectados, menor o esforço do sistema nervoso para raciocinar. Descobertas como essa são possíveis graças à câmara de pósitrons, que permite aos cientistas bisbilhotar a intimidade do metabolismo cerebral. Os pósitrons são partículas que, imediatamente após sua emissão, se combinam com uma substância radioativa.
As combinações são interpretadas por um computador que desenha do cérebro uma imagem parecida com a de uma tomografia. O truque do exame está em ligar, por exemplo, flúor radioativo, que permanece cerca de meia hora no organismo, com aquilo que se pretende observar. Assim, ligado à glicose – combustível que o cérebro consome seis vezes mais do que qualquer outro órgão – o flúor acusa as áreas que gastam mais energia. Com o mesmo método pode-se examinar a ação de drogas e neurotransmissores.
Uma escalada em três degraus
Até os 20 anos de idade aproximadamente, o sistema nervoso ainda é capaz de alterar a sua arquitetura formando novas sinapses. No entanto, como para tantas outras coisas, os primeiros anos de vida são os mais importantes no desenvolvimento cerebral, que obedece a um rígido passo-a-passo. Nos primeiros meses surgem nas chamadas regiões primárias conexões nervosas que fazem o bebê perceber, por exemplo, um objeto escuro. Sem elas, não se formariam, nos três primeiros anos de vida, sinapses nas áreas cerebrais secundárias, que já são capazes de interpretar informações com maior riqueza de detalhes – o objeto escuro é reconhecido como uma caneta.
Isso leva ao terceiro e mais importante passo: o surgimento de sinapses em áreas de associação, especializadas em cruzar as informações mais diversas no cérebro, verdadeiros pontos de convergência. Segundo o neurologista Saul Cypel, de São Paulo, as experiências são fundamentais para o cérebro poder escalar os três degraus do seu desenvolvimento: Prova disso é que crianças paralíticas, justamente pela impossibilidade de explorar o mundo ao seu redor, tornam-se adultos com dificuldade de perceber, por exemplo, distância e dimensões.
Tudo que o cérebro faz para reconhecer um rosto
1) Uma pessoa vê um rosto que lhe parece familiar, mas por algum motivo não identifica imediatamente de quem se trata. O cérebro então registra os traços essenciais daquela imagem – o bigode, o formato da face e do nariz.
2) Com essas pistas, a memória busca retratos aparentados. Assim o cérebro compara a imagem que vê com as lembranças de um ex-chefe, de um antigo médico da família, de um primo distante, de um professor dos tempos de colégio. Este último possui o mesmo formato de rosto e tem nariz e cabelos iguais. Mas na imagem gravada na memória o seu rosto aparece de barba.
3) Sem ter certeza absoluta, o cérebro se decide pelo professor, cujo rosto é o mais parecido. A partir daí, surgem lembranças: a de que certa vez o professor ofereceu uma feijoada, a do rosto de sua amiga, a de que ele tocava violão – e tudo vai reforçar a decisão de que é de fato o professor, só que sem barba.
4) Um computador não chegaria a essa resposta, a menos que encontrasse dados idênticos na memória. Além disso, processaria as informações uma por uma, enquanto na verdade o cérebro pode acionar ao mesmo tempo milhões de lembranças arquivadas.