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A morte como ela é

Quando morremos, milhares de partes do nosso corpo estão na ativa tentando reverter o processo. E muita coisa ainda acontece depois do último suspiro

Por Otavio Cohen
Atualizado em 8 Maio 2018, 17h25 - Publicado em 25 Maio 2015, 16h00

Quando Steven Thorpe chegou ao Hospital Universitário de Coventry, no Reino Unido, a equipe médica disse à família que não havia mais nada a fazer. O adolescente de 17 anos havia sofrido ferimentos gravíssimos na cabeça em um acidente de carro e os danos no seu cérebro eram irreversíveis. O diagnóstico era morte encefálica. Mas a família não perdeu as esperanças. O procedimento que comprova a ausência total de atividade cerebral foi realizado mais 3 vezes, até que o quinto exame revelou ondas cerebrais fraquíssimas – o que significava uma chance de sobrevivência. Duas semanas depois, Steven acordou do coma e começou a se recuperar. O caso, que chamou a atenção da medicina em 2008, mostra que o limite entre a vida e a morte é mesmo tênue.

Se um procedimento errado quase acabou com a vida de um jovem em pleno século 21, dá para imaginar por que a morte ainda assusta os médicos (para nem falar de nós, reles mortais). Duzentos anos atrás, quando não existiam aparelhos que identificassem os sinais vitais, os diagnósticos errados para o fim da vida eram frequentes. Em 1846, a Academia de Ciências de Paris aceitou que a morte significa a ausência de respiração, de circulação e de batimentos cardíacos. Mas mais de um século depois, outro francês, Paul Brouardel, concluiu que o coração não sustenta a vida sozinho. Uma pessoa decapitada pode ter batimentos cardíacos por uma hora, o que não quer dizer que ela esteja viva.

Quando surgiram os respiradores artificiais nos anos 1950, os critérios para definir o fim da vida ficaram ainda mais confusos. Ficou decidido que ele acontece quando as células do cérebro param totalmente de funcionar e desligam o encéfalo, a parte do sistema nervoso central que controla funções automáticas, como a respiração e a circulação. Geralmente, isso acontece depois de acidentes ou AVCs. A morte cerebral permite a doação de órgãos – já que o resto do corpo continua intacto e imune à dor (embora existam relatos de reações parecidas com às da dor na hora da retirada dos órgãos, como batimentos cardíacos acelerados e pressão alta.) Na teoria, o cérebro é a placa mãe de um computador. Quando ela queima, a máquina não funciona mais, mesmo que todas as outras peças ainda estejam em bom estado. A explicação parece simples, né? Mas daí a identificar com precisão quando isso acontece é outra história.

O fim (ou não)

De certa forma, a primeira definição de morte, a da ausência de circulação e respiração, não está totalmente errada. Estima-se que em 99% dos casos são as falhas no coração e no pulmão que encerram de vez a vida (só 1% dos casos tem origem na morte cerebral). Pense de novo na analogia do computador. O sistema coração-pulmão é a bateria da máquina, que garante o funcionamento das outras peças. Quando essa bateria descarrega, você pode continuar usando o computador ligado à tomada. É o que acontece com grávidas que não têm mais sinais cerebrais, mas que são mantidas “vivas” por aparelhos até dar à luz. De acordo com o americano Dick Teresi, autor do livro The Undeath (Os Não-Vivos), desde 1981, 22 mulheres tiveram bebês estando clinicamente mortas. Seus corpos estavam vivos – mas o cérebro já não os controlava mais.

Por isso, para compreender a morte, é preciso entender como trabalha a nossa “bateria”. O coração funciona com estímulos elétricos que provocam a contração (que joga o sangue para frente) e o relaxamento (que o enche novamente). É muito importante que esses movimentos sejam sincronizados. Se o coração bater rápido demais, não dá tempo de enchê-lo totalmente e a quantidade de sangue bombeada para o corpo diminui. Bater devagar demais também não é bom sinal, pelo mesmo motivo: vai faltar sangue para manter as condições vitais. Isso é especialmente perigoso para os pulmões. Sem sangue por lá, eles não levam mais oxigênio para as células. Sem oxigênio não há metabolismo e, bem, sem metabolismo as células morrem. Para um médico, a ausência de batimentos cardíacos é uma corrida contra o tempo. “Depois de 8 minutos, a chance é extremamente pequena”, diz o cardiologista Diego Chemello, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Mas a prática é continuar tentando. Em 2012, o jogador de futebol congolês Fabrice Muamba ficou 78 minutos com o coração parado, e até hoje ninguém sabe direito como. O mais provável é que a atividade elétrica do coração dele nunca tenha zerado totalmente e o oxigênio que ele recebeu por aparelhos tenha garantido sua sobrevivência.

Além das batidas irregulares, a parada cardíaca pode ser causada por um infarto, responsável por 70% das mortes súbitas no Brasil. O sangue que chega ao coração pela artéria coronariana vem cheio de glicose, ácidos graxos e sais minerais que controlam a atividade elétrica do músculo. Se essa artéria é obstruída por gordura (o famigerado colesterol), o suprimento de nutrientes é interrompido e acontece uma pane elétrica. De fato, o infarto é um problema elétrico. Por isso que o aparelho preferido dos paramédicos de séries de TV se chama desfibrilador. O impacto do choque é de 200 joules, o suficiente para acender uma lâmpada de 100 watts por dois segundos – e para botar nosso coração no ritmo.

Se o coração parar de bater, a circulação é interrompida na mesma hora. Nos 3 primeiros minutos, a recuperação é quase certa porque o organismo tem reserva de oxigênio e nutrientes (sim, toda a nossa vida só deixa 3 minutos de economias). Mas isso logo acaba e as células param de funcionar. As do cérebro puxam a fila. É nos neurônios que são feitas as reações químicas e elétricas mais complexas do corpo, que mais precisam de oxigênio. Para se ter uma ideia, o tecido cerebral recebe 10 vezes mais sangue que o muscular, que realiza uma função mecânica e bem menos complicada – o movimento. “Depois de 5 minutos, pode haver danos permanentes”, diz o cardiologista Guilherme Fenelon. A consequência pode ser perda da fala ou dos movimentos, por exemplo. Mas também pode ser bem mais esquisita: em 2011, a escocesa Debbie McCann acordou de um derrame com um problema que fez sua fala ficar parecida com sotaque italiano.

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No fim das contas, seu corpo não foi feito para viver para sempre. No fim, o coração vai parar de bater, a respiração vai cessar e, como uma lâmpada, o cérebro vai se apagar. A vida acaba aí. Mas a morte, não. Ela está apenas começando.

As muitas mortes

ESTRANGULAMENTO
No enforcamento, a carótida e a jugular são esmagadas, o que faz com que o fluxo de sangue no cérebro pare. Ao mesmo tempo, a pressão na região pode também afetar o ritmo dos batimentos cardíacos. Ou seja, o estrangulamento para o funcionamento dos dois órgãos mais importantes para a vida: cérebro e coração.

FALÊNCIA MÚLTIPLA DE ÓRGÃOS
Uma das principais causas da falência múltipla de órgãos é o choque séptico. Acontece assim: uma infecção que o sistema imunológico não consegue deter causa a dilatação dos vasos sanguíneos. Com os vasos largos, a pressão cai, o coração não se enche mais adequadamente, bate fora do ritmo e os órgãos vitais ficam sem sangue. E adeus mundo cruel.

CÂNCER
Os tipos mais comuns de câncer (pulmão, mama, colo-retal e estômago, segundo a OMS) matam do mesmo jeito: pela metástase. As células doentes se multiplicam descontroladamente e podem pegar carona no sangue ou no sistema linfático até chegar a outras áreas do corpo, como pulmões, ossos e cérebro. Sufocadas pelas doentes, as células saudáveis deixam de funcionar.

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AFOGAMENTO
Uma pessoa não consegue ficar com o pulmão vazio por muito tempo, porque ele tenta se encher involuntariamente. Aí a água inalada obstrui a faringe, chega aos alvéolos pulmonares – e falta oxigênio.

CARBONIZAÇÃO
É a falta de oxigênio que faz com que uma pessoa morra em um incêndio. Apesar de o fogo queimar os tecidos do corpo – o que também acabaria levando à morte -, a asfixia mata antes.

ENVENENAMENTO
Cada veneno age de uma maneira. A morte por cianeto, preferido dos autores de romances policiais, acontece por causa de ligações químicas do veneno com o ferro do sangue, que é essencial para a respiração celular. É o ferro, afinal, que carrega o oxigênio. Sem ele, as células morrem.

ACIDENTE
Os acidentes matam pela perda de sangue. Se as feridas forem graves, vai faltar irrigação nos órgãos principais. O coração pode parar de bater porque não consegue se encher mais. “Se a situação não for contornada, a pessoa perderá a consciência por falta de oxigenação no cérebro”, diz o cardiologista Diego Chemello.

O começo do fim

Antes de virar pó, nosso corpo vira um monte de outra coisa

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0 minuto
Ao contrário do que diz o clichê, ninguém “cai duro no chão” ao morrer. Como o sistema nervoso não libera mais os neurotransmissores que contraem os músculos, o cadáver fica totalmente flácido.

5 minutos
O corpo deixa de responder a estímulos externos. Não há mais respiração nem batimentos cardíacos.

1 hora
É hora do sangue parar. Primeiro, coagula o conteúdo das veias, por onde o sangue corria mais lentamente. O líquido das artérias segue a gravidade e fica perto do chão, onde a pele fica azulada.

2 horas
Sem circulação não há metabolismo. Sem metabolismo, não há calor. O corpo, que estava a 36,5°C, começa a se resfriar, 1°C por hora até entrar em equilíbrio com o ambiente.

3 horas
O corpo fica rígido quando as reservas de ATP dos músculos acabam. Quanto mais musculosa for a pessoa, mais reservas de energia ela terá, e mais vai demorar para endurecer. A primeira parte do corpo que enrijece é o rosto, que tem músculos menores. Depois, endurecem os ombros, braços e tórax.

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De 5 a 8 horas
Sem oxigênio, as células das paredes dos vasos necrosam e ficam frágeis, principalmente nos capilares dos dedos, que são mais finos. Acontece a hipóstase: o sangue sai dos vasos e impregna os tecidos vizinhos.

8 horas
O corpo continua a enrijecer. Os músculos das pernas finalmente se contraem. Por causa disso, os dedos do cadáver podem estar levemente fechados e os joelhos, um pouco dobrados.

12 horas
O corpo é como uma toalha molhada no varal. Depois de um tempo, a água evapora e os tecidos se retraem. Os olhos ficam fundos, os lábios escuros, e pelos e unhas parecem crescer – mas é a pele que se retraiu.

24 horas
Um adulto de 75 quilos pode perder até 1,3 quilo de sua massa nas primeiras 24 horas, graças à evaporação de água (nada dos famosos 23 g que a ficção diz ser o peso da alma). Se o cadáver estiver no calor, ao ar livre, pode ficar seco, como carcaças de animais no deserto.

2 dias
As bactérias continuam a liberar gases, o que faz com que o corpo inche. O cheiro piora por causa da decomposição das proteínas do corpo, e um líquido avermelhado, resultado do rompimento dos alvéolos pulmonares, pode sair pela boca e narinas.

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3 dias
O corpo, que até então estava rígido, volta à flacidez. Isso porque os tecidos musculares já estão se decompondo. A ordem é a mesma do endurecimento: primeiro a cabeça, depois braços e tronco e, por fim, as pernas.

Mais de 7 dias
Se o corpo estiver em um ambiente com muita umidade e temperatura alta, a gordura do corpo em decomposição reage com sais do solo (como o potássio) e o cadáver fica macio e escorregadio, como um sabão. Em seguida, o corpo começa a desaparecer até sobrarem só os ossos.

Para saber mais
The Undead: How Medicine Is Blurring the Line Between Life and Death
Dick Teresi, Pantheon, 2012

Death to Dust: What Happens to Dead Bodies
Kenneth V. Iserson, Galen Press, 1994

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