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A cura da Aids

A ciência já sabe como dar o golpe final no vírus HIV: expulsá-lo do corpo humano. Conheça os bastidores da descoberta médica mais importante dos últimos 25 anos - e as histórias de pessoas que já foram curadas da doença

Por Valquíria Vita
Atualizado em 31 out 2016, 18h37 - Publicado em 11 dez 2013, 22h00

Ele é rudimentar. É uma bolinha minúscula, de 130 nanômetros, com apenas nove genes dentro. O vírus HIV não se compara, nem de longe, à sofisticação de uma célula humana (que tem 20 mil genes) ou mesmo uma bactéria (500 genes). Mas ele mudou a história da humanidade: espalhou pânico, transformou hábitos, arrasou países africanos, matou 30 milhões de pessoas. O homem respondeu criando os antirretrovirais, remédios que contêm a multiplicação do vírus e evitam que o soropositivo morra de Aids. Hoje, 8 milhões de pessoas têm as vidas preservadas por esses medicamentos. Eles não são uma cura, pois não eliminam o vírus – que continua escondido no organismo.

Mas essa história está prestes a dar uma virada dramática. A ciência finalmente descobriu como dar o último passo: arrancar o HIV dos lugares onde ele se esconde no corpo humano. No último ano, vários grupos de pesquisadores comprovaram que é possível expulsar o HIV de seus esconderijos e jogá-lo de volta na corrente sanguínea – de onde ele poderia ser eliminado, livrando completamente o organismo do vírus. Ou seja, cura. Os pesquisadores mantêm cautela, mas a possibilidade tem gerado euforia em setores da comunidade científica. Parece que, depois de passar as últimas décadas tomando dribles do vírus, a humanidade finalmente pode ter descoberto uma forma de encurralá-lo. “Há dois anos, se alguém falasse em cura, seria considerado maluco. Isso era considerado impossível”, diz John Frater, imunologista da Universidade de Oxford e um dos líderes do Cherub (Collaborative HIV Eradication of Viral Reservoirs), projeto que reúne cinco universidades inglesas num estudo contra o vírus. “Estou genuinamente entusiasmado”, afirma.

A técnica de expulsão do HIV é a inovação científica mais importante, e instigante, das últimas décadas. Mas não é a única novidade na luta contra o vírus. Há pessoas que, por meio de outros procedimentos médicos, foram curadas da Aids. Em alguns casos, elas desenvolveram resistência ao HIV; em outros, o vírus desapareceu do organismo. Você vai conhecer essas histórias a seguir.

ONDE O VÍRUS SE ESCONDE
Como o HIV é muito pequeno, penetra facilmente nas mucosas genitais durante o sexo, e delas vai para a corrente sanguínea, onde encontra sua vítima: as células T, peças centrais do sistema imunológico. O vírus penetra nessas células e as escraviza, transformando-as em máquinas de produzir HIV. É um processo diabolicamente eficiente, que gera 100 bilhões de novas cópias do vírus por dia. No começo, a pessoa não sente nada, no máximo febre e um mal-estar discreto. Mas as células T vão morrendo até que, após alguns anos, o sistema imunológico fica comprometido – e a Aids se instala.

Existem dois tipos de células T: as ativas e as inativas. É como no exército. Alguns soldados estão de prontidão nos quartéis e outros vivem na reserva, podendo ser convocados em caso de emergência. O HIV infecta tanto as células ativas quanto as inativas. O problema é que os medicamentos antirretrovirais só agem nas células ativas. Nas células inativas, que vivem numa espécie de hibernação, o remédio não faz efeito. Isso porque essas células não contêm um montão de HIV dentro. Na verdade, é algo mais assustador ainda.

Elas têm o vírus HIV copiado dentro do próprio código genético. Isso significa que, conforme vão sendo ativadas pelo organismo (um processo natural, que acontece ao longo da vida de todo mundo), começam a se reproduzir – e fabricar enormes quantidades do vírus. É por isso que os medicamentos antirretrovirais não curam a Aids. As células T inativas funcionam como um enorme reservatório de vírus. Ele até vai sendo esvaziado aos poucos, na medida em que as células inativas vão sendo repostas pelo organismo e o vírus vai sendo eliminado pelos medicamentos, mas isso leva uma eternidade: segundo estimativas, pelo menos 60 anos. Ou seja, o portador de HIV tem mesmo de passar a vida toda tomando antirretrovirais (que provocam efeitos colaterais como hipertensão, diabetes e danos aos rins, fígado e ossos).

A menos que exista uma forma de esvaziar à força os reservatórios de HIV.

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Essa possibilidade começou a se desenhar em outubro de 2006, quando o governo americano autorizou a venda de um novo medicamento, chamado vorinostat. Esse remédio foi criado para tratar o linfoma cutâneo de células T, um câncer no sistema imunológico. Esse câncer se manifesta na forma de lesões na pele, mas se origina no sangue. Ele é tratado com quimioterapia. Mas a quimioterapia só funciona bem com tumores que se multiplicam bastante (porque ela age na reprodução celular). E o linfoma cutâneo não é assim. Por algum motivo, ele faz o corpo aumentar a produção de histona deacetilase (HDAC), um tipo de enzima que faz as células pararem de se reproduzir. E isso reduz o efeito da quimioterapia. O vorinostat bloqueia a ação dessa enzima, colocando o câncer de novo em estado de multiplicação – e vulnerável à quimiotepia. Atiçar o câncer é uma estratégia arriscada. Por isso, o vorinostat só é usado em casos graves, nos quais dá resultado (70% dos pacientes respondem a ele).

A infecção – e o caminho da cura
O segredo está em acordar células dormentes, onde o HIV fica escondido

1. Contaminação
O HIV entra no organismo. Ele se instala nas células T, que são responsáveis por coordenar a ação do sistema imunológico. Há dois tipos de célula T: ativa e inativa. O vírus invade ambos os tipos.

2. Invasão do DNA
O HIV entra na célula e se infiltra no núcleo dela, onde está o DNA. As células ativas se multiplicam – e, com isso, multiplicam o HIV.

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As células inativas não se multiplicam. Graças à ação de uma enzima, elas ficam dormentes (e o vírus também).

3. O tratamento tradicional
Os medicamentos antiretrovirais, usados hoje, conseguem bloquear a progressão do HIV – e controlar a Aids. Mas não agem nas células inativas, onde o vírus fica escondido. Se a pessoa parar de tomar os antirretrovirais, o HIV “escondido” acorda. E a Aids volta.

4. A nova tática
Um novo tipo de medicamento é capaz de fazer as células inativas acordarem: e botarem para fora o HIV que trazem escondido. O vírus é jogado na corrente sanguínea.

5. A eliminação
Os antirretrovirais agem sobre o HIV, permitindo que ele seja eliminado.Os reservatórios vão sendo esvaziados, até não restar mais vírus.

 

Mais tarde, alguns pesquisadores descobriram que o vorinostat também tinha outro efeito: ele desperta as células T adormecidas. E isso é valiosíssimo no combate ao HIV. Porque quando essas células acordam, elas começam a se reproduzir e jogar vírus no sangue – onde ele fica vulnerável à ação dos remédios antirretrovirais. O HIV é eliminado, as células T morrem e, se esse processo for repetido por tempo suficiente, é possível eliminar todas as células infectadas – e sacar o HIV do organismo.

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David Margolis, da Universidade da Carolina do Norte (EUA), foi o primeiro cientista a testar esse procedimento. “Tive a ideia de acordar o HIV e empurrá-lo para fora do corpo, permitindo a erradicação do vírus”, diz. Depois de obter resultados positivos em testes de laboratório, ele ficou três anos pedindo permissão às autoridades de saúde americanas para fazer um estudo em humanos. O vorinostat tem efeitos colaterais, como fadiga, diarreia, hiperglicemia e anemia. Em casos raros, pode levar à formação de coágulos no sangue, o que é perigoso. Mas o grande receio era quanto ao vírus da Aids. Afinal, acordar células dormentes e estimulá-las a produzir HIV envolve risco. E se o vírus surgisse com alguma mutação, e os medicamentos antirretrovirais não fizessem efeito contra ele? Os pacientes seriam inundados pelo HIV, e morreriam.

Mesmo assim, Margolis obteve autorização para fazer o teste em oito portadores de HIV, que receberam vorinostat. Os resultados foram publicados em 2012 – e reanimaram o interesse da comunidade científica. Uma única dose de vorinostat aumentou em mais de quatro vezes a quantidade de vírus no sangue dos pacientes. Ou seja, a tese se comprovou. Funcionou. O remédio conseguiu o que era considerado impossível: expulsar o HIV de seus reservatórios (e fez isso sem provocar efeitos colaterais relevantes). Mas foi um estudo de breve duração. Agora, Margolis está realizando uma nova experiência, na qual os pacientes recebem mais doses de vorinostat, durante mais tempo.

Pelo menos um estudo, feito pela Universidade de Aarhus (Dinamarca) em parceria com a Universidade do Colorado (EUA), comprovou o mesmo efeito em células humanas testadas em laboratório. “Ainda temos um longo caminho, mas acredito que a cura para o HIV seja alcançável”, diz Ole Søgaard, líder do estudo dinamarquês. Søgaard está finalizando um novo estudo, desta vez dando o remédio diretamente a pacientes, e publicará os resultados nos próximos meses. Pesquisadores da Universidade de Monash, na Austrália, também estão testando o vorinostat e devem publicar resultados em breve. A equipe pioneira, de David Margolis, continua aperfeiçoando a técnica – em estudos que envolveram cientistas da Universidade da Califórnia e uma pesquisadora da multinacional farmacêutica Merck.

Ainda há dúvidas sobre o procedimento. Qual a dose ideal do medicamento? Por quanto tempo? Ele é o remédio ideal, ou surgirão outros? “É como o AZT, que foi a primeira droga da sua classe (antirretroviral). Talvez a gente encontre drogas melhores, ou resultados melhores combinando essa droga com outras”, diz Margolis.

Também há um dilema ético envolvido. Como convencer um paciente que toma antirretrovirais, e por isso está com o HIV sob controle, a participar de um estudo que envolve risco de acordar uma doença letal? “Os métodos que temos hoje são eficazes, relativamente seguros, bem tolerados e não tão caros”, afirma Daniel Kuritzkes, chefe do AIDS Clinical Trials Group (ACTG), um dos maiores grupos de pesquisa na área.

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Além disso, um paciente curado pode ser facilmente reinfectado – basta fazer sexo sem proteção com alguém que tenha HIV. O ideal mesmo seria criar uma vacina contra o vírus. Infelizmente, o vírus conseguiu burlar todos os esforços nesse sentido. Há várias razões que dificultam o desenvolvimento de uma vacina. A primeira é a intensa variabilidade do vírus. Embora o HIV seja dividido em somente dois tipos, 1 e 2 (que têm origem em primatas diferentes), ele sofre constantes mutações dentro de cada tipo. Estima-se que a capacidade de mutação do HIV seja mil vezes maior que a do genoma humano. Isso torna o HIV imprevisível e complica bastante as coisas. Como preparar o corpo para se defender se ninguém sabe exatamente como o vírus pode se comportar? Mesmo assim, os esforços seguem: em maio, um novo teste de vacina foi anunciado por pesquisadores do Imperial College, de Londres, que farão um estudo em Ruanda e Nigéria e divulgarão os resultados em 2015.

Mas, mesmo sem uma vacina, e com a técnica de desinfecção ainda em testes iniciais, já existem pessoas que chegaram lá – foram curadas do HIV.

Nós e eles
A longa história da Aids na Terra

1959
Surgem os primeiros registros de homens morrendo devido a infecções de origem inexplicável. Um deles, que morreu no Congo, teve tecidos do seu corpo preservados e analisados nos anos 90. Eles continham HIV.

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1981
O governo dos EUA publica um relatório descrevendo os casos de cinco homens homossexuais de Los Angeles, que tinham uma série de infecções raras. É o primeiro registro oficial da doença. Duas das vítimas morreram antes mesmo da publicação do artigo.

1983
Em abril, o Center for Disease Control (CDC), dos EUA, estima que dezenas de milhares de pessoas estejam infectadas pela doença. Ela ganha o nome de Aids (síndrome de imunodeficiência adquirida, em inglês).

1984
O pesquisador Robert Gallo, do Instituto Nacional do Câncer dos EUA, afirma que a Aids é causada por um vírus.

1985
O ator americano Rock Hudson morre de Aids. É a primeira grande celebridade a ser vitimada pela doença, que já tem casos em todo o planeta.

1986
O Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus batiza o causador da Aids de Human Immunodeficiency Virus (HIV), ou vírus da imunodeficiência humana.

1987
O governo americano aprova o uso da zidovudina (AZT), primeiro medicamento a combater o HIV.

1989
Magro e abatido, o cantor Cazuza anuncia publicamente que está com Aids. Morreria em 1990 depois de uma agonia que expôs a fragilidade das vítimas.

1991
O laço vermelho se torna o símbolo da luta contra a Aids. Magic Johnson, estrela do basquete dos EUA, anuncia que é soropositivo. O cantor Freddie Mercury, do Queen, morre vítima da doença.

1993
O filme Filadélfia, em que Tom Hanks interpreta um advogado com HIV, chega aos cinemas. O bailarino Rudolf Nureyev e o tenista Arthur Ashe morrem de Aids.

1994
A epidemia atinge 1 milhão de casos no mundo.

1995
Surge a terapia antirretroviral altamente ativa (highly active antiretroviral therapy – HAART), um coquetel de drogas que impede a progressão do HIV.

1997
O número de pessoas infectadas chega a 30 milhões no mundo.

2000
A busca por uma vacina se torna prioridade global na pesquisa contra o HIV.

2003
Cientistas comprovam que o HIV veio dos chimpanzés. O laboratório VaxGen, um dos que desenvolve vacinas, anuncia que os testes em humanos falharam.

2007
Médicos anunciam que um paciente está livre do HIV. Timothy Brown, conhecido como Paciente de Berlim, não registra a presença do vírus no corpo desde então.

2009 a 2013
São publicados os primeiros estudos sobre eliminação de reservatórios do HIV, apontando um caminho para a cura. A busca por vacinas continua.

OS PRIMEIROS CURADOS
Em 1995, o americano Timothy Ray Brown descobriu que era soropositivo. Logo começou a tomar os medicamentos antirretrovirais e estava indo bem, até que em 2007, quando estava morando na Alemanha, ele começou a se sentir muito fraco. E descobriu que estava com leucemia, um câncer que ataca as células T (pois é, justo elas). Seu médico, o oncologista Gero Hütter, se lembrou do seguinte: no norte da Europa, uma em cada cem pessoas é imune ao vírus da Aids. Devido a uma mutação genética, elas não produzem uma proteína chamada CCR5. E sem essa proteína, o vírus da Aids não consegue entrar nas células.

Como Timothy estava com leucemia, teria de receber um transplante de medula óssea. Nesse tipo de transplante, o sistema imunológico do paciente é morto (por meio de quimioterapia) e substituído pelas células do doador. O médico teve a ideia de usar, como doadora, uma pessoa que fosse imune ao vírus da Aids. Dessa forma, quem sabe, poderia acertar dois alvos com um só tiro: curar Timothy da leucemia e do HIV.

O primeiro transplante não teve o efeito esperado, e a leucemia voltou. Timothy aceitou se submeter a um segundo. Funcionou. Ele ficou um ano no hospital, teve várias complicações de saúde, mas se tornou o primeiro humano na história a ser curado do HIV. Parou de tomar os antirretrovirais, e o vírus nunca voltou. Timothy ficou conhecido como o “Paciente de Berlim”. Em julho deste ano, dois casos semelhantes ao dele foram apresentados na conferência da International Aids Society. Mas, nesses casos, os transplantes foram feitos há pouco tempo e ainda é cedo para dizer que o HIV não retornou.

Seja como for, transplante de medula é uma técnica complexa, que depende de fatores muito específicos – o procedimento de Timothy tinha apenas 5% de chance de sucesso. “Esse paciente ganhou na loteria”, afirma Caio Rosenthal, infectologista do hospital Emílio Ribas, de São Paulo. Além de pouco eficaz, o procedimento é muito arriscado. “A pessoa que vai receber o transplante de medula fica completamente sem defesas [imunológicas] durante um período”, explica Dirceu Greco, diretor do departamento de DST e Aids do Ministério da Saúde.

Além das pessoas que não produzem a proteína CCR5, há outro tipo de gente resistente ao HIV: os chamados controladores de elite. Eles são infectados pelo vírus, mas não desenvolvem Aids. “De todas as pessoas infectadas, 5% são chamados progressores lentos. Eles têm carga viral baixa e só vão ficar doentes muitos anos depois. E, dentro desses 5%, há também uma porcentagem de controladores de elite, que apresentam carga viral há mais de dez anos e conseguem viver sem remédios”, explica Breno Riegel, infectologista do Hospital Conceição, de Porto Alegre, e colaborador de estudos internacionais – incluindo uma pesquisa com antirretrovirais que foi considerada a mais importante do mundo em 2011 pelo jornal científico Science.

Para ser um controlador de elite, ou uma pessoa imune ao HIV, é preciso nascer com determinadas mutações genéticas. Mas também existe gente que se torna controladora de elite. Em março deste ano, pesquisadores do Instituto Pasteur, de Paris, apresentaram um estudo demonstrando a cura funcional de 14 pacientes franceses portadores do HIV. A palavra funcional significa que eles ainda carregam o vírus, mas não desenvolvem a Aids – mesmo tendo parado de tomar medicamentos antirretrovirais. Esses pacientes são identificados pela sigla Visconti, que vem de Viro-immunological Sustained Control After Treatment Interruption (Controle Viro-imunológico Sustentado Após a Interrupção do Tratamento). O líder do estudo, Asier Sáez-Cirión, destaca uma característica importante desses pacientes. Quando se descobriram infectados pelo HIV, na década passada, eles logo passaram a tomar o coquetel antirretroviral. Começaram a tomar os remédios no máximo 70 dias depois da contaminação. E essa rapidez ajudou muito. “Tratando desde cedo, você limita a entrada de vírus nos reservatórios (as células T inativas)”, diz Sáez-Cirión. E isso teoricamente permite que, depois de alguns anos tomando o remédio, seja possível parar com ele – e mesmo assim não desenvolver Aids. Na prática, as coisas costumam ser diferentes. “Quando a pessoa chega ao médico, na maioria das vezes ela já está soropositiva há anos, e daí o tratamento já não é mais tão eficiente”, explica Rosenthal. Um paciente que carrega o vírus há dez anos, por exemplo, já está com danos graves ao sistema imunológico.

Os pacientes do grupo Visconti tomaram os remédios durante três anos até que interromperam o tratamento. Eles conseguiram se manter saudáveis mesmo sem os antirretrovirais e estão assim há cerca de sete anos. Um deles está há uma década sem a medicação. Sáez-Cirión se refere a essa cura como “estado de remissão do vírus” – pois o HIV continua presente no corpo, ainda que não provoque o desenvolvimento da Aids. “Quando vimos os resultados, percebemos que isso pode ser um grande passo para a luta contra o HIV. Ficamos muito emocionados. Queremos reforçar a mensagem de que o tratamento precoce é importante”, diz Sáez-Cirión.

O tratamento precoce foi responsável por um caso ainda mais impressionante. Em março deste ano, cientistas americanos revelaram que um bebê (que não teve o nome nem o sexo divulgados) havia sido curado do HIV. Se uma grávida sabe que tem o vírus da Aids e recebe tratamento adequado, com medicamentos antiretrovirais, há 96% de chance de que o bebê nasça sem o vírus. Mas, neste caso, não foi assim. A mãe da criança, que não havia recebido atendimento pré-natal, chegou ao hospital já em trabalho de parto. Um teste feito na hora detectou que ela tinha HIV. Era tarde demais para tratar a mãe e impedir que transmitisse a doença para o filho.

Então os médicos fizeram o parto e levaram o recém-nascido para a pediatra Hanna Gay, da Universidade do Mississipi. Ela decidiu tratar o bebê com altas doses de antiretrovirais, que foram mantidos durante os primeiros 18 meses da vida da criança. A partir daí, a mãe sumiu e não veio mais pegar os remédios. Ela ficou dez meses sem aparecer, e o bebê não recebeu nenhum tratamento durante esse período. O que era um caso de relapso materno acabou resultando numa descoberta científica incrível: mesmo sem nenhum remédio, o HIV não retornou. Não havia mais vírus no sangue da criança. Aparentemente, o tratamento ultraprecoce evitou que o HIV entrasse nos reservatórios (mesma coisa que teria acontecido com os pacientes franceses).

Humanos x HIV
Veja quem já está vencendo a doença – e como

Terapia atual
Como é? – O portador de HIV recebe uma combinação de medicamentos (o chamado coquetel de antiretrovirais) que impede a multiplicação do vírus. A quantidade de HIV no sangue despenca, chegando a níveis muito baixos.

A pessoa desenvolve Aids? – Não.

Pode transmitir o vírus? – Sim. O HIV permanece escondido no organismo.

Terapia de próxima geração
Como é? – O portador de HIV recebe um medicamento que acorda as células onde o vírus estava escondido. Em seguida, toma o coquetel de antiretrovirais – que impedem a multiplicação do HIV. Com o tempo, isso pode levar à eliminação total do vírus do organismo.

Pode transmitir o vírus? – Em tese, não. Mas a técnica ainda está em fase experimental.

Geneticamente imune
Como é? – Existem pessoas que nascem com uma mutação na proteína CCR5 – e isso impede o HIV de entrar nas células.

Pode transmitir o vírus? – Há controvérsias. Embora o HIV não consiga se multiplicar, é possível que algumas cópias dele se instalem no organismo – o suficiente para infectar alguém.

Supercontrolador
Como é? – É uma pessoa cujo sistema imunológico consegue controlar o HIV, mesmo sem a ajuda de remédios. Ainda não se sabe o que torna uma pessoa controladora de elite. É o caso dos pacientes franceses do grupo Visconti.

Pode transmitir o vírus? – Sim.

Bebê de Mississipi
Como é? – O filho de uma mulher HIV-positiva começou a receber o coquetel de antirretrovirais logo após o nascimento. O vírus sumiu.

Pode transmitir o vírus? – Em tese, não. O bebê está aparentemente curado, com carga viral indetectável.

Paciente de Berlim
Como é? – Recebeu um transplante de medula óssea de um paciente que tinha CCR5 mutante, ou seja, era imune ao HIV. Com isso, ele também adquiriu imunidade ao vírus.

Pode transmitir o vírus? – Em tese, não. O HIV desapareceu do organismo.

REENGENHARIA GENÉTICA
A expulsão do vírus, o tratamento ultraprecoce, as vacinas e os transplantes não são as únicas frentes de pesquisa contra o HIV. Existe mais uma, que consegue ser ainda mais ousada: modificar geneticamente o corpo humano para torná-lo resistente ao vírus. A técnica foi idealizada em 2008 e está sendo desenvolvida pela Universidade do Sul da Califórnia em parceria com a empresa de biotecnologia Sangamo BioSciences. Primeiro, obtém-se uma amostra de células T do paciente (coletando um pouco de sangue). Em seguida, usando técnicas de manipulação genética, essas células são alteradas. Elas passam a produzir uma versão deficiente da proteína CCR5 – aquela proteína essencial para o vírus da Aids. As células geneticamente modificadas são reinjetadas na pessoa, se multiplicam e aos poucos vão substituindo as células T normais. E o paciente adquire imunidade ao HIV. Essa é a ideia.

A técnica já foi testada em algumas pessoas. A mais famosa delas é um homem, identificado apenas como “Paciente de Trenton” (o nome vem da cidade onde mora, em Nova Jersey). Ele recebeu as células modificadas e parou de tomar os medicamentos anti-HIV. Num primeiro momento, a quantidade de vírus em seu sangue disparou. Mas em seguida despencou, até zerar. O HIV sumiu. “Eu me senti um super-homem”, disse o paciente ao jornal New York Times. O resultado é animador, mas ainda não pode ser considerado cura. O estudo durou pouquíssimo tempo, apenas três meses (depois disso, o homem voltou a tomar os antirretrovirais, de forma preventiva). Seria preciso esperar mais para assegurar que o vírus não iria voltar. Além disso, o Paciente de Trenton possuía uma mutação genética que debilitava um pouco a proteína CCR5. Ele não era imune ao HIV, mas essa mutação pode ter aumentado a eficácia do tratamento – que não funcionou tão bem com os outros pacientes. Há um novo teste em curso, com nove soropositivos, e os resultados serão publicados até o final do ano.

Há um detalhe especialmente intrigante. No Paciente de Trenton, apenas 13,5% das células T adquiriram resistência ao vírus durante o estudo. Todas as demais continuaram vulneráveis. Mas essa mudança, modesta, já foi suficiente para que o organismo virasse o jogo contra o HIV e o eliminasse completamente do sangue. Talvez seja possível estender os limites do corpo humano – e, com uma pequena ajuda, torná-lo capaz de vencer a Aids. Talvez as drogas que expulsam o vírus de seus reservatórios funcionem cada vez melhor, e se tornem lugar-comum daqui a alguns anos. Talvez os tratamentos ultraprecoces livrem milhões de pessoas do vírus. Mas notícias promissoras não significam que devamos baixar a guarda. Pelo contrário. A prevenção e o sexo seguro (com camisinha) continuam sendo essenciais. Para de fato vencer a Aids, a humanidade terá de apelar para as armas mais poderosas que existem: a inteligência e o bom senso. Afinal, se o vírus pode evoluir, nós também.

O primeiro curado
O americano Timothy Ray Brown, 47, recebeu um transplante experimental de medula óssea – e, por conta disso, seu corpo se livrou do vírus HIV. Aqui, ele conta como foi o processo, e como vive hoje em dia.

O transplante, que você recebeu em 2009, era um procedimento arriscado, que poderia levar à morte. Por que você aceitou?
Quando os médicos começaram a tentar me convencer, eu disse não, porque o vírus HIV estava em remissão (sob controle). Mas eu tive leucemia, e tive de fazer o transplante por causa dela. Não fiz por causa da Aids; fiz por causa da leucemia.

E como você se sentiu quando descobriu que estava curado do HIV?
Eu não acreditei muito, até que o Dr. (Gero) Hütter publicou o caso no New England Journal of Medicine (em 2009). Aí eu pensei: ok, se outras pessoas acreditam que aconteceu, então eu vou acreditar. Se cientistas estavam acreditando, então era verdade. Me senti aliviado. Isso mudou a minha vida.

Você se sente curado?
Eu definitivamente me sinto curado. Meu corpo foi analisado da cabeça aos pés, fiz inúmeros exames de sangue, e não há sinal do HIV no meu corpo.

Como é a sua rotina médica?
Quando eu estava morando em São Francisco, ia ao médico pelo menos uma vez por mês. Mas, desde que me mudei para Las Vegas (onde administra uma fundação de luta contra a Aids), só vou ao médico se tiver necessidade. Mas eu continuo participando de estudos que possam ajudar mais pessoas a serem curadas.

O placar do jogo
Números da epidemia que mudou o mundo

– 26% da população na Suazilândia tem o vírus. É o país com maior incidência de contaminação.

– Em Bangladesh, menos de 0,1% da população está infectada. É a menor proporção.

– Mais de metade dos infectados são mulheres, mas o problema é muito pior no sul da África, onde mulheres representam 58% dos infectados.

– Até 2015, o orçamento estimado para combater a Aids no mundo inteiro é de US$ 24 bilhões anuais.

– Somente nos EUA, foram gastos US$ 344 bilhões no combate à Aids desde 1981.

– 30 milhões de pessoas já morreram de Aids

– Cerca de 15 milhões de pessoas têm acesso a tratamento com antirretrovirais.

– Nas Maldivas, menos de 100 pessoas possuem o vírus. É o país de menor incidência.

– Na África do Sul, 5,6 milhões de pessoas estão infectadas. É o líder mundial.

– 34 milhões estão infectadas no mundo.

 

PARA SABER MAIS
Administration of vorinostat disrupts HIV-1 latency in patients on antiretroviral therapy.
D.M. Margolis e outros, Nature, 2012.

Histone Deacetylase Inhibitors for Purging HIV-1 from the Latent Reservoir.
Thomas Rasmussen e outros, Molecular Medicine Journal, 2011.

Expression of Latent HIV Induced by the Potent HDAC Inhibitor Suberoylanilide Hydroxamic Acid.
D.M. Margolis, Daria Hazuda e outros, Aids Research and Human Retroviruses, 2009.

Establishment of HIV-1 resistance in CD4+ T cells by genome editing.
Elena E. Perez e outros, Nature Biotechnology, 2008.

 

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