O colono espanhol que pensava que a Amazônia era o Éden
No século 17, Antonio de León Pinelo ficou tão deslumbrado com a América do Sul que a confundiu com o Paraíso. Hoje, ateamos fogo ao Éden todos os dias.

Esta é a carta ao leitor da edição 474 da Super, de abril de 2025.
O Gênesis não lista os animais que viviam no Éden com Adão e Eva antes do pecado original. Mas, a julgar pelas pinturas que retratam o Paraíso, o mundo judaico-cristão começou em um safári.
Em 1615, o flamengo Pieter Brueghel pintou coelhinhos e pavões cortejando Adão e Eva, acompanhados de camelos e um avestruz. Cem anos antes, em 1505, Bosch deu as pinceladas finais em sua versão psicodélica do Jardim: retratou o casal acompanhado de um pelicano de três cabeças, um cãozinho bípede e até um besourão cascudo pré-cambriano – tudo isso em 1505, meio milênio antes de Dalí.
Pinturas como essas são alegóricas, é claro. Mas, entre os séculos 16 e 17, as Grandes Navegações alimentaram o interesse por cartograf ia na Europa, e os católicos de interpretação mais literal passaram a discutir a localização do Éden na prática. Onde, na Terra, existiriam climas e biomas tão variados – capazes de abrigar camelos e pelicanos-cérberos ao mesmo tempo?
Nos idos de 1600, o jurista Antonio de León Pinelo deu um pitaco: na América do Sul. Pinelo nasceu em 1589 na cidade espanhola de Valladolid, em uma família de judeus portugueses que se converteram ao catolicismo para escapar da Inquisição.
Em 1604, com 14 anos, cruzou o Atlântico com a família para buscar refúgio na América. Desembarcou em Buenos Aires, estudou no colégio jesuíta da província de Tucumán e então se mudou para Lima, capital do Vice-Reino do Peru, para estudar Direito.
Chegando lá, se encantou pela região em que os Andes encontram a Amazônia. Em uma faixa de algumas centenas de quilômetros, o terreno se ergue dos 100 metros de altitude da floresta equatorial para os 6.768 metros do Monte Huascarán. Essa transição brusca de uma planície quente e úmida para uma cordilheira fria e seca cria uma variedade enorme de habitats. Como um zoológico – em que cada recinto simula o bioma do animal que abriga.
Pinelo concluiu, então, que o Éden consistia na Amazônia e seus arredores, e que os quatro rios mencionados no Velho Testamento não eram Tigre, Eufrates e companhia: Amazonas e Orinoco seriam candidatos mais imponentes. O deslumbramento com os trópicos é compreensível. Os europeus nunca tinham visto algo tão exuberante. Não existiam fotos de satélite nem Discovery Channel.
A edição 474 da Super traz dois textos longos sobre a Amazônia e seus habitantes originais, escritos pelos repórteres estagiários Bela Lobato e Dudu Lima, minigênios do jornalismo científico. Foi coincidência – e, quando percebi, pensei em trocar uma das matérias. Depois de alguns banhos pensativos, porém, escolhi deixar a edição assim.
Afinal, a floresta rende e merece bem mais que 20 páginas. Dez por cento da biodiversidade do mundo está lá. São 390 bilhões de árvores de 16 mil espécies que soltam 20 bilhões de toneladas de vapor de água na atmosfera todos os dias. Trata-se do bioma mais rico da Terra, que perde uma área equivalente a cinco campos de futebol por dia nas mãos de grileiros, madeireiros e do agronegócio.
Todo brasileiro nasce a dois passos de um paraíso, mas uma quantidade preocupante de nós é indiferente à existência dessa filial americana do Éden, e não falta quem se dedique a destruí-la. As consequências você já conhece. Deus pode ter criado um bocado de coisa em seis dias, mas nenhuma delas foi o aquecimento global. Este é crédito nosso.
Bruno Vaiano
Editor-chefe
bruno.vaiano@abril.com.br