Escrever bem é conseguir se colocar no lugar do outro
O maior obstáculo a um bom texto é a dificuldade de imaginar como é, para o leitor, não saber algo que você já sabe. Entenda esse bug cognitivo.
Carta ao leitor da edição 466, de agosto de 2024.
Meu maior medo é sair cedo para buscar pão e encontrar um comunicado do síndico no mural de cortiça do prédio. Costuma ser uma tragédia. Algo desse tipo:
“Viemos por meio desta informar que a partir de segunda (28) até sexta (2) o portão principal de veículos não estará funcionando. O mesmo estará passando por uma reforma estrutural em seu sistema de trilhos, o que irá evitar o desgaste contumaz das roldanas. Durante o período diurno, o mesmo será deixado aberto. No período noturno, o mesmo ficará no modo manual. Haverá um reposicionamento de câmera para aquela área para que não ocorra nenhum tipo de sinistro”.
Esse é um aviso real, que encontrei em um grupo de Facebook em 2021. Com um tapinha ligeiro, dá para deixar assim: “De segunda (28) a sexta (2) o portão de veículos não funcionará por causa de uma reforma nos trilhos, com o objetivo de evitar o desgaste das roldanas. Ele será deixado aberto durante o dia e fechado com o cadeado à noite. Colocaremos uma câmera para evitar problemas”. Ufa. Melhorou.
É fácil perceber que o texto original é péssimo. Mas é bem mais difícil escrever algo que já saia, logo de cara, como a versão editada. Quando pensamos com clareza, temos a ilusão de que escrevemos com clareza. Mas o problema é que nossos pensamentos dependem de um montão de conhecimentos prévios – conhecimentos que você tem, mas que as outras pessoas podem não ter.
Pense nos profissionais da TI, por exemplo. Quando eles dizem na reunião que, “utilizando cloud e BPM, vamos alavancar os KPIs”, eles não percebem que os outros funcionários da empresa podem estar boiando no jargão. Do mesmo jeito que qualquer adulto que já passou por um escritório sabe o que é TI, mas, se você estivesse conversando com uma criança, sequer poderia usar essa sigla. Elas não sabem o que é tecnologia da informação.
Esse é um problema que Steven Pinker, um professor de psicologia de Harvard, denomina “maldição do conhecimento”. Nós não sabemos como é não saber as coisas que sabemos. É por isso que existe a figura do editor – que supervisiona a criação de um jornal, revista ou livro e, entre outras coisas, assegura que o texto final seja claro, compreensível.
Neil Gaiman diz que “a segunda versão de um texto é quando você faz parecer que sabia o que estava fazendo o tempo todo”, Reza a lenda que Ernest Hemingway dizia quase a mesma coisa (rs): “Escreva bêbado, edite sóbrio”.
A edição de um texto dói, é invasiva – inclusive quando editamos a nós mesmos. Cada autor põe uma palavrinha atrás da outra de um jeito particular. É incômodo descobrir que esse jeito não deu conta do recado. No jornalismo, bons repórteres têm sangue frio para aceitar que a edição melhora um texto; bons editores respeitam o estilo e a apuração do repórter.
São duas missões difíceis. Os textos mais fáceis de ler são os que exigem mais técnica. O objetivo da Super não é tanto ser especial pelo que escrevemos, mas pela maneira como escrevemos: desce tão redondo que você nem sente que existe um texto ali.
Esperamos que esta edição não lhe dê trabalho, caro leitor. A chance é remota quando você está nas mãos de repórteres como o Rafael Battaglia, autor da matéria de capa impecável desta edição. Faz seis anos que trabalhamos juntos, e tive o prazer de vê-lo se tornar um gênio na missão de editar a si mesmo.
Bruno Vaiano
Editor-chefe
bruno.vaiano@abril.com.br