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Clara água, cara água: porque o recurso está cada vez mais escasso e caro

Três quartos da superfície do globo são oceanos. Daí que, vista de longe, a Terra é pura Água. Mas não é água pura. Esta é cada vez mais rara, e 30% dos 5,5 bilhões de habitantes do planeta já sofrem com a escassez. Você verá uma radiografia dessa escassez e entenderá por que, nos próximos anos, a conta de água da humanidade não será mais tão barata.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h05 - Publicado em 30 abr 1995, 22h00

Ricardo Arnt

Há três anos, um editorial da revista inglesa The Economist, uma das mais influentes do mundo, afirmou em editorial que a água era “commodity”, isto é, uma mercadoria como madeira ou petróleo, e alertou para a elevação do custo dessa “commodity”. Um leitor desavisado poderia se espantar: mas como pode custar caro um líquido que a gente vê em todo lugar?

Mas o que a gente vê em todo lugar não é o que a gente aproveita. Mais de 97% da água do planeta é de mares. Salgada. Não serve nem para uso industrial. A potável mais pura da natureza está nas calotas polares e nas geleiras, que armazenam 2% da água do planeta. Muito frio e muito longe. Lençóis subterrâneos, lagos, rios e a atmosfera guardam o 1% restante. E é só essa que está à disposição.

As chuvas e a neve descarregam sobre os continentes parte do que evapora dos oceanos. São 40 673 quilômetros cúbicos ao ano. Mas quase dois terços se perdem. Restam 14 000 km3 como fonte de suprimento estável para um consumo anual global, hoje em torno de 4 500 km3.

No consumo global, 69% das águas potáveis, 15% do uso doméstico e 20% das águas de irrigação são de origem subterrânea. Mas essas reservas não são eternas; são como jazidas de petróleo, não renováveis. A superexploração provoca rebaixamento dos lençóis freáticos e problemas amargos para muitos países.

Nos últimos vinte anos, novas 1,8 bilhões de bocas vieram se somar à humanidade e diminuíram em um terço o suprimento de água do planeta. O pior é que a necessidade de água cresce ainda mais rápido do que o aumento da população. Para atendê-la, cavam-se poços e constróem-se barragens. Já há 36 000 barragens no mundo. O problema é que as novas alternativas para matar a sede da civilização custarão cada vez mais caro.

Onze países da África e nove do Oriente Médio sofrem secas permanentes. Mas a situação vai se complicando também em outros lugares, no México, Hungria, Índia, China, Tailândia e Estados Unidos. Para um número crescente de países há perspectivas de esgotamento de reservas. Veja, a seguir, alguns retratos da crise:

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• Na Cidade do México, o governo tenta disciplinar o consumo e escavação de poços. A exploração desordenada rebaixou o lençol freático e isso tem ocasionado o afundamento do centro da capital — 20 cm ao ano, há décadas. A Catedral Metropolitana que já se encontra dois metros abaixo do nível da rua, está tombando.

• Um dos desastres mais graves é o do mar de Aral, na Ásia. Ele já perdeu 40% em superfície e 60% do volume. Os rios Amu e Syr, que desaguavam nele, foram desviados para irrigar 7,5 milhões de hectares de algodão.

• A Arábia Saudita, onde 75% da água provêm de lençóis subterrâneos, irrigou o deserto e virou exportadora de trigo em 1984. Em 1992, o rei Fahd autorizou o aumento da exploração de água do subsolo, de 5,2 bilhões de m3/ano para 7,8 bilhões. Prevê-se o esgotamento das reservas em 50 anos.

• Na Líbia, as reservas subterrâneas da costa do Mediterrâneo já ficaram salobras. Esvaziadas, foram invadidas por água salgada. O governo constrói o Grande Rio Artificial, rede de 1 000 quilômetros de dutos, que trará água de reservas do deserto até a costa. Cerca de 730 milhões de m3/ano serão transfe-ridos durante 40 ou 60 anos, a um custo total de 25 bilhões de dólares. Mas logo a nova fonte também vai secar.

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• Na China — com 22% da população mundial e apenas 8% da água doce — falta água em Pequim, Tianjin e nas planícies produtoras de grãos, no Norte. Os lençóis da capital diminuem 2 metros por ano, e um terço dos poços já secaram.

Hoje, quando secam as torneiras de bairros inteiros na cidade grande e a madame do bairro vizinho manda lavar a calçada, ninguém repara. Mas isso também terá que mudar. Nos próximos quarenta anos, 90% do crescimento populacional vai se concentrar nas cidades. Como a agricultura consome dois terços de toda a água retirada da superfície e do subsolo, uma parte dos recursos da irrigação deverá ser desviada. É provável que a água, então, alcance um valor de mercado comparável ao do carvão, do petróleo ou da madeira — e que o desperdício venha a ser punido pela legislação.

Economizar já é imperativo. Em Israel — onde 70% do esgoto é reciclado para irrigação —, foi criada a microirrigação: redes de tubos porosos ou perfurados sob o solo, diretamente sob as raízes dos vegetais, fazem circular água em gotas.

Nos Estados Unidos, o consumo industrial já diminuiu 36% desde 1950. Na Alemanha, mantém-se estável desde 1975, apesar de um aumento de 44% na produção. No Japão, diminuiu 24% desde 1989.

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É preciso, também, encontrar alternativas para o abastecimento. Há 7 500 usinas em operação no Golfo Pérsico, Califórnia, Espanha, Malta, Austrália e no Caribe, convertendo 4,8 bilhões de m3 de água salgada em água doce, por ano. Mas o processo ainda é caro. Cada metro cúbico sai por 2 dólares.

Em 1975, o príncipe saudita Mohamed al-Faissal encomendou ao explorador polar francês Paul Émile Victor um estudo para transportar um iceberg do mar de Wedell, na Antártida, até a Arábia Saudita. Conclusão: a viagem de 10 000 km de um bloco de gelo com 100 milhões de toneladas, a 2 km/hora, duraria nove meses. Graças a técnicas de antiderretimento, chegariam 80 milhões de toneladas de gelo na Arábia. A experiência, porém, ainda não foi tentada.

A Amazônia detém a maior bacia fluvial do mundo. O Brasil tem mesmo muita água, mas, ainda maiores que as reservas, são as taxas de desperdício, estimadas em 40% só na rede pública. A ilusão de abundância esconde a péssima gestão dos recursos hídricos.

O estado de São Paulo resume o impasse. Recebe muitas chuvas, tem rios, e vive em racionamento branco. Periodicamente, falta água na capital.A demanda sobe: 290 000 litros por segundo em 1989, 354 000 em 1992, provavelmente 880 000 em 2010. A irrigação gasta 43% dos recursos, a indústria, 32%, e as cidades, 25%.

Na região Norte, as reservas recebem mais agrotóxicos, mercúrio dos garimpos e lixo bruto. Aliás, 63% dos 12 000 depósitos de lixo no Brasil estão em rios, lagos, restingas, ou seja, nos chamados corpos d’água.

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No Nordeste, açudes, barragens e represas armazenam 80 bilhões de m3 de água sem melhorar a vida dos 17 milhões de nordestinos. Contudo, os 400 mm de chuvas anuais do semi-árido representam 4 vezes mais do que as chuvas da Califórnia — onde foram criados celeiros agrícolas. A desertificação não ameaça apenas o Nordeste. Há focos de desertificação em Montes Claros (MG), em São Fidélis (RJ), em Marília (SP), em regiões do Paraná, e em 14 municípios do Rio Grande do Sul.

A incúria pode ser medida pela timidez das políticas de reciclagem. A maior estação de tratamento do Brasil, a de Barueri (SP), só agora começou a planejar a reciclagem. Algumas experiências privadas deram certo: a Companhia Cacique de Café Solúvel, em Londrina, e a Fiat, em Betim, conseguiram boa economia de custo com reciclagem e no uso dessas águas.

A civilização sempre dependeu da água. Agora é o inverso: a água é que dependerá do nosso grau de civilização. Dependerá, principalmente, do quanto estamos dispostos a pagar.

Para saber mais:

Mergulho na água

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(SUPER número 10, ano 4)

Cada vez menos reservas

Vários países do mundo já dispõem, há anos, de estoques de água por habitante menores do que a média aceitável de 2000 metros cúbicos/ano/pessoa. E a escassez deve aumentar.

Suprimentos renováveis de água per capita (metros cúbicos por pessoa)

Região/País 1992 2010

Argélia 730 500

Burundi 620 360

Cabo Verde 500 290

Líbia 160 100

Egito 30 20

Israel 330 250

Jordânia 190 110

Arábia Saudita 140 70

Kuait 0 0

Barbados 170 170

Bélgica 840 870

Cingapura 210 190

Fonte: Worldwatch Institute

O mar de Aral, na Rússia, é um dos exemplos mais graves de destruição ambiental e desertificação causada pelo homem. Um dos resultados: prejuízos graves à pesca, com navios encalhados na areia.

Seca em São Paulo

A estação de tratamento de água de Guaraú, na Grande São Paulo, é a maior do país. Recicla parte das águas usadas nas cidades da região. Faz parte de um projeto-monstro para diminuir o problema de seca no Estado de São Paulo.

Deserto no Sul

A região de Alegrete, no Rio Grande do Sul, vem sofrendo um processo de desertificação constante. Há vários projetos de recuperação do território, que tentam aumentar a fixação de água no solo, utilizando plantas ou muros para conter a areia.

Irrigação no Nordeste

Desde 1847, fala-se em desviar e “transpor as águas” do Rio São Francisco e do Tocantins, para perenizar os rios intermitentes do Nordeste e vencer a seca. O governo do Ceará investiu US$ 48 milhões na construção do Canal do Trabalhador, de 118 km de extensão, com esse objetivo.

Agricultura na Arábia

A Arábia Saudita é quase toda coberta por desertos. Mais de 75% da água potável e usada na agricultura é retirada de lençóis freáticos. Os projetos de irrigação transformaram o país em produtor e exportador de trigo, mas a água deve acabar em 50 anos.

Como se recicla

O problema da seca não pode ser resolvido só com o consumo da água que existe, uma fonte que não é renovável. Por isso, estão sendo tentadas — ou utilizadas cotidianamente — formas de reciclagem das águas já consumidas nas cidades ou no campo, ou da maior fonte de água, os oceanos e mares.

Árabes querem importar icebergs

Os icebergs da Antártida que se desprendeu em 1991, podem vir a fornecer água.

Esgotos são reoxigenados para uso

Centros de tratamento com grandes misturadores

reoxigenam em tanques a água já usada.

Usinas para dessalinização

Vários países usam água dos oceanos, retirando o sal, em grandes usinas, bem parecidas com as refinarias de petróleo.

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