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Sequestro do voo 375: O dia em que o Brasil quase teve seu 11 de setembro

Em 29 de setembro de 1988, um avião comercial da VASP foi sequestrado com mais de 100 passageiros a bordo. O objetivo? Jogá-lo contra o Palácio do Planalto.

Por Maria Clara Rossini
Atualizado em 4 dez 2023, 13h08 - Publicado em 28 nov 2023, 18h14

Os anos 1980 também são conhecidos como “a década perdida”. O Brasil afundava em uma crise econômica nos primeiros anos de redemocratização após a ditadura militar. A inflação e desemprego atingiam níveis recordes, e os planos econômicos implementados pelo então presidente José Sarney não surtiam efeito.

Esse contexto histórico é importante para entender um dos eventos mais impactantes da aviação brasileira: o sequestro do voo 375, da falecida companhia aérea VASP. O avião saiu de Belo Horizonte às 10h50 do dia 29 de setembro de 1988, e tinha como destino o aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.

Na época, o aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, não tinha detector de metal e máquinas de raios x. Isso permitiu que o maranhense Raimundo Nonato entrasse com um revólver calibre 32 no avião. Cerca de 20 minutos após a decolagem da aeronave, ele anunciou o sequestro. Ameaçando o piloto e copiloto, ele ordenou que o trajeto fosse desviado para Brasília. Seu objetivo era atingir o Palácio do Planalto, para matar o presidente Sarney.

A motivação

Raimundo Nonato Alves da Conceição viveu as consequências da crise econômica que assolou o Brasil em 1988. Nascido em Vitorino Freire, no interior do Maranhão, ela fazia parte de uma família pobre. Aos 28 anos, Nonato já havia trabalhado como tratorista em várias empreiteiras, mas foi demitido em meio à crise e não conseguiu achar outro emprego. 

Ele culpava o presidente Sarney (que já havia sido governador do Maranhão) pelo desemprego e miséria que sua família se encontrava. Nonato dizia que tinha “contas a acertar” com o presidente.

Roteiro do sequestro

O avião era um Boeing do modelo 737-317. Ele transportava 108 pessoas, incluindo a tripulação e o sequestrador.

Nonato anunciou o sequestro enquanto as aeromoças ofereciam o serviço de bordo. O comissário Ronaldo Dias tentou impedi-lo, mas acabou baleado. O tripulante Gilberto Renhe também levou um tiro e fraturou a perna. Na época, a porta da cabine de comando não era blindada, o que permitiu que o sequestrador entrasse dando tiros na fechadura.

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O comandante do voo era Fernando Murilo de Lima e Silva, com quem o sequestrador negociou suas condições. Entre os tiros e momentos em que Nonato saia da cabine, Murilo conseguiu digitar o código de sequestro (7500), no transponder do avião. Esse é um aparelho que indica a localização da aeronave e permite enviar códigos de quatro dígitos ao controle de tráfego aéreo.

Murilo viajava ao lado de um amigo próximo, o copiloto Salvador Evangelista. (Os dois gostavam de gravar música juntos e reunir as famílias para jantar). Quando a torre de comando recebeu o código de emergência, tentou se comunicar com a dupla por meio do speaker da cabine. Evangelista se abaixou para pegar o equipamento e responder à equipe. Nesse momento, acabou baleado na nuca. 

O corpo de Evangelista tombou, morto, no manche do avião. Murilo avisou sobre a morte do copiloto à torre de comando, e seguiu para Brasília com o cadáver do amigo ao lado.

Sabendo do sequestro, a Força Aérea Brasileira (FAB) enviou um caça Dassault Mirage III para acompanhar o avião e interceptá-lo, caso fosse necessário. Se o voo 375 se aproximasse muito do Palácio do Planalto, o caça precisaria abater o avião civil.

Truques aéreos

Brasília estava com o céu limpo naquele dia, com exceção de algumas nuvens que pairavam sob a capital. Sem que o sequestrador percebesse, o comandante posicionou o avião de modo que ficasse acima das nuvens, e alegou que estava sem visibilidade. Nonato acreditou.

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O combustível estava próximo ao fim, e o avião corria o risco de sofrer uma pane. Murilo sugeriu pousar em um dos aeroportos mais próximos: Anápolis ou Goiânia. Nonato aceitou o pouso em Goiânia, mas depois de um tempo ordenou que o avião fosse para São Paulo.

O comandante não tinha escolha: não havia combustível para chegar em São Paulo, mas estava com uma arma apontada para sua cabeça. Para completar, o motor esquerdo do avião tinha acabado de parar. Foi aí que ele decidiu fazer uma manobra aérea conhecida como tunneau barril, só realizada em aviões militares. É quando o avião gira no eixo horizontal, ficando de cabeça para baixo. Foi a única vez que uma manobra dessas ocorreu em um avião comercial civil.

A ideia era desestabilizar Nonato, fazendo com que ele soltasse a arma. Mesmo desequilibrado, o sequestrador não caiu no chão, e continuou com o revólver na mão. Murilo, então, colocou o avião em parafuso, que é basicamente uma queda livre em que a frente do avião fica apontada para o chão. Aí, sim, Nonato caiu no chão.

Assim que o comandante restabeleceu o controle do avião, ele se viu na frente da pista de pouso de Goiânia, e conseguiu aterrissar. Ele conta que o motor direito parou assim que eles tocaram o solo.

Negociação em solo

O sequestro ainda não tinha acabado. Já no chão, Nonato pediu que o avião fosse reabastecido e voltasse para Brasília. Murilo explicou que isso não seria possível, e que a aeronave já estava comprometida. A condição de Nonato para liberar os passageiros, então, seria que a FAB liberasse um outro avião para que ele pudesse fugir. Murilo aceitou pilotar e auxiliar na fuga, caso os reféns fossem soltos.

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A FAB disponibilizou um avião Bandeirante para Nonato. Enquanto saía de uma aeronave para embarcar em outra, o sequestrador foi baleado na perna pela polícia. Foi levado para o hospital, e morreu alguns dias depois. O atestado de óbito alega morte por anemia falciforme, uma doença congênita que nada tinha a ver com os ferimentos. Essa causa é curiosa, e no mínimo questionável.

Já Murilo foi condecorado com a Ordem do Mérito Aeronáutico por seu desempenho e por ter evitado uma tragédia maior. Ele morreu em 2020, aos 76 anos, por insuficiência respiratória. Em entrevista, seu filho contou que a maior indignação do pai foi nunca ter recebido um agradecimento de José Sarney.

Referência para o 11 de setembro

Curiosamente, poucos brasileiros lembram desse episódio da aviação brasileira. Isso deve mudar a partir do dia 7 de dezembro, quando estreia o filme “O Sequestro do Voo 375”, produzido pelo Estúdio Escarlate. Trata-se de uma dramatização dos eventos que ocorreram em 29 de setembro de 1988.

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Danilo Grangheia interpreta o piloto Murilo em “O Sequestro do Voo 375”. Nonato é interpretado por Jorge Paz (Estúdio Escarlate/Reprodução)

A ideia do filme surgiu em 2012. O jornalista Constâncio Viana passou os anos seguintes fazendo uma pesquisa profunda sobre o caso para retratá-lo fielmente no longa. (Algumas informações deste texto, inclusive, foram confirmadas em uma entrevista que o Constâncio deu à Super). Os detalhes do incidente também são relatados no podcast “O Sequestro do Voo 375”, disponível nas plataformas de streaming de áudio.

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Também conversamos com Joana Henning, a produtora do filme. Ela trouxe uma informação que só aumenta o impacto do evento: os terroristas da Al-Qaeda provavelmente estudaram o sequestro do voo brasileiro antes de realizar o atentado às Torres Gêmeas.

“Na apuração do Constâncio, há um relato de uma autoridade oficial, em exercício, confirmando que foram encontrados recortes de jornal sobre o atentado brasileiro em uma das células da Al-Qaeda”, diz Joana. “Não podemos divulgar quem é essa autoridade, mas achamos importante incluir essa informação nos créditos do filme, pois é relevante para a história”

Além do caso brasileiro, Joana diz que foram encontrados recortes de outros dois sequestros de avião ao redor do mundo. É evidente que os terroristas aprenderam com os erros das tentativas anteriores. Para começar, os sequestradores dos Estados Unidos sabiam pilotar o avião, então não dependiam do comandante. Além disso, eles agiram em conjunto e de forma articulada – já Nonato foi o único sequestrador do 375.

“Muitos estudos apontam o 11 de setembro como um marco na aviação brasileira [tornando obrigatório o raio x e as portas blindadas, por exemplo]. Se o Brasil tivesse dado atenção a esse caso, divulgado e levantado esse alerta ao mundo (em vez de abafá-lo no pós-ditadura), talvez o 11 se setembro pudesse não ter acontecido”, especula Joana.

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