Túmulos do Egito Antigo de 5.000 anos revelam práticas funerárias violentas
Alinhamentos astronômicos, desmembramentos e oferendas indicam origem popular dos mitos que mais tarde seriam apropriados pelos faraós.

Um cemitério pré-histórico localizado às margens do rio Nilo pode mudar o que se sabia sobre as origens da religião egípcia. Escavações em mais de 900 túmulos no sítio de Adaïma revelaram que práticas religiosas complexas – com rituais de desmembramento, alinhamentos astronômicos e até decapitações – já eram realizadas por comunidades camponesas cerca de mil anos antes da construção das grandes pirâmides.
A pesquisa, publicada na revista Journal of Archaeological Method and Theory, sustenta que elementos centrais da religião faraônica não surgiram como invenções de um Estado centralizado, mas foram herdados de ritos funerários populares, forjados no cotidiano de vilas agrícolas entre 3.300 e 2.700 a.C.
Entre os achados mais impactantes estão indícios de práticas funerárias que envolveram violência intencional e simbólica. Pelo menos 24 túmulos no setor oeste de Adaïma continham corpos decapitados, enterrados em valas coletivas ou em posições incomuns, como com os braços estendidos ao lado do corpo – em contraste com a posição fetal tradicional da época.
A decapitação, nesse contexto, não parece ter sido mero ato punitivo, mas parte de rituais que visavam estabilizar e sacralizar novas formas de autoridade social.
A violência funerária se aliava ao simbolismo cósmico. Túmulos foram orientados com base em eventos celestes específicos, como solstícios e o surgimento heliacal da estrela Sirius (chamada de Sepdet pelos antigos egípcios, posteriormente associada à deusa Ísis). Essa orientação astronômica marcava o tempo dos rituais e associava o morto à ordem cósmica, legitimando novas hierarquias locais.
Um exemplo é o túmulo S166, onde foi sepultada uma adolescente cujo braço esquerdo foi ritualmente decepado e colocado sobre o peito. O corpo foi posicionado de modo a encarar o pôr do sol no solstício de inverno, enquanto o sarcófago seguia o alinhamento de Sirius.
Trata-se de um gesto ritualizado que antecipa a narrativa mitológica de Ísis e Osíris, em que o corpo do deus é esquartejado e reunido pela deusa com ajuda da estrela-guia.
Outros túmulos também sugerem a emergência de significados religiosos a partir da experiência cotidiana. No S837, uma mulher foi enterrada com joias e um vaso cerâmico propositalmente quebrado – uma prática que remete a conceitos que só mais tarde apareceriam nos Textos das Pirâmides, coleções de fórmulas funerárias inscritas nas câmaras mortuárias de faraós para guiá-los na vida após a morte.

Já no S874, outra mulher foi sepultada com um cajado e uma peruca de fibras vegetais, e seu corpo estava orientado ao solstício de verão, indicando uma mudança de eixo simbólico em relação ao túmulo S166.

Esses enterros destoam do padrão geral da época e foram classificados pelos pesquisadores como “pontos de inflexão cultural”, onde inovações rituais romperam com práticas funerárias anteriores.
Com o tempo, surgiram ao redor desses sepultamentos agrupamentos de túmulos, sugerindo que passaram a ser vistos como locais sagrados. Eram, na prática, santuários populares construídos a partir da memória coletiva e do luto compartilhado.
O estudo contesta a versão tradicional de que a religião egípcia teria sido criada deliberadamente por faraós e sacerdotes como ferramenta de controle ideológico. Em vez disso, revela que os próprios camponeses do sul do Egito já realizavam rituais com alto grau de sofisticação cosmológica muito antes da consolidação do Estado faraônico.
Essas práticas envolviam observações astronômicas precisas, como o ciclo anual de Sirius, que marcava a cheia do Nilo. Inicialmente um marcador agrícola, o nascimento da estrela foi progressivamente ressignificado como sinal divino de fertilidade, renascimento e legitimidade real.
“Quando o Estado surgiu, ele não criou a religião do zero”, escrevem os autores. “Em vez disso, absorveu essas práticas de longa data e as reelaborou em narrativas reais, transformando a memória popular e o luto em instrumentos de poder centralizado.”
Adaïma, com seus 30 hectares de área e mais de 900 sepultamentos escavados, é hoje um dos cemitérios mais bem documentados do Egito predinástico.
A combinação de métodos arqueológicos tradicionais com aprendizado de máquina permitiu rastrear padrões sutis de mudança cultural ao longo de séculos – revelando que os alicerces da religião egípcia não nasceram nos palácios, mas nos cemitérios rurais.