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Relembre a última – e traumática – recontagem de votos nos EUA, em 2000

Donald Trump anunciou que não aceitará a derrota nas urnas – alegando, sem provas, que houve fraude. Não é a primeira vez que uma apuração acaba em bagunça.

Por Bruno Carbinatto
Atualizado em 7 nov 2020, 10h59 - Publicado em 7 nov 2020, 10h56

As eleições presidenciais nos EUA terminaram na última terça (03), mas o resultado oficial ainda não saiu. A contagem de votos – que não segue um método padronizado e eficaz, como no Brasil –, continua em alguns estados. Projeções feitas com base nas cédulas já apuradas indicam a vitória do democrata Joe Biden, frustrando a tentativa de reeleição de Donald Trump.

O republicano já anunciou que não vai aceitar a derrota e que pretende constestar o resultado. Em seu Twitter e em declarações à imprensa, Trump afirmou, sem provas, que houve fraude no processo eleitoral e que pedirá a recontagem dos votos em estados-chave, como Pensilvânia, Georgia e Michigan. O resultado da de Trump deve demorar algum tempo para se concretizar – ainda que alguns de seus pedidos na justiça já tenham sido negados.

Não é a primeira vez que um pleito é contestado no país. Entre alegações de fraude, erros de verdade nas apurações e um passado escravista, é comum que as eleições da democracia mais orgulhosa do mundo acabem em uma enorme bagunça. 

O caso de contestação mais recente – e talvez o mais famoso – é o da eleição presencial de 2000. Na época, o vice-presidente democrata Al Gore disputou com o governador do Texas George W. Bush uma das apurações mais acirradas da história dos EUA.

O sistema eleitoral americano não funciona com base na maioria absoluta dos votos. É possível perder o pleito mesmo sendo o favorito de mais da metade dos eleitores.

Cada estado possui um número pré-determinado de delegados eleitorais – que não muda desde 1964. Os 50 estados, somados, têm 538 delegados. O número de delegados de cada estado é proporcional à sua população: Nova York tem 29, a Califórnia tem 55, mas Utah tem apenas 6. O candidato que ganhar a maioria dos votos dentro de um estado ganha todos os delegados do estado. Vence quem conquistar 270 delegados primeiro.

Quando 49 estados terminaram de contar os votos, na noite de 7 de novembro de 2000, nenhum dos candidatos havia atingido a marca. O resultado ficou nas mãos da Flórida.

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O estado da Disney é historicamente indeciso, o que tornou a reta final desesperadora. Quando a contagem terminou, Bush estava na frente por menos de 2.000 votos – de um total de quase 6 milhões. No caso de uma disputa tão acirrada, a própria lei da Flórida exige a recontagem – e foi o que aconteceu.

Quando a dobradinha de apuração acabou, em 10 de novembro, a diferença havia caído ainda mais: apenas 327 votos separavam os candidatos. A campanha de Al Gore entrou com um processo para pedir uma recontagem manual dos votos. Sem auxílio de máquinas: seres humanos precisariam verificar cédula por cédula.

Os democratas conseguiram forçar quatro distritos eleitorais – entre eles, o de Miami, um tradicional polo progressista – a recomeçar a apuração. Mas o problema é que a lei exigia que a recontagem terminasse até o dia 14 de novembro, apenas quatro dias após o pedido.

A contagem manual é muito demorada. Al Gore, então, recorreu à Suprema Corte do estado da Flórida, que permitiu estender o prazo até 26 de novembro. Mesmo assim, dos quatro locais de recontagem, apenas dois cumpriram o prazo; um entregou o novo resultado com duas horas de atraso, e o condado de Miami desistiu no meio do processo porque sabia que não daria conta.

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Você acha que acabou? Ledo engano. Al Gore pediu uma nova recontagem manual de mais de 70 mil votos, e a Suprema Corte da Flórida concordou. Parecia uma vitória para o democrata, mas só aumentou a confusão.

O problema é que em alguns condados – cada local define seus próprios métodos de votação –, os eleitores tinham que furar um papel no lugar indicado para selecionar o candidato. Se o papelzinho não saísse totalmente do buraco, havia o risco da máquina não conseguir ler o voto. Esse era o trunfo da contagem manual: os apuradores conseguiriam identificar exatamente a intenção de cada eleitor.

Para piorar, o design da cédula era confuso – veja abaixo. Houve uma quantidade considerável de eleitores que queriam votar em Al Gore, mas acabaram furando o segundo buraquinho por engano, que na verdade correspondia ao candidato Pat Buchanan. Em uma eleição onde apenas algumas centenas de votos eram decisivos, isso pode ter feito toda a diferença.

eleições americanas – casos em que questionaram votos
(Wikimedia Commons/Reprodução)
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Bush, é claro, não ficou de braços cruzados vendo sua vantagem cair a cada recontagem. Enquanto os oficiais eleitorais se debruçavam sobre milhões de cédulas questionáveis, sua campanha recorreu a Suprema Corte dos Estados Unidos para parar a recontagem. A mais alta instância do Judiciário americano aceitou seus argumentos e suspendeu o processo em 9 de deembro.

Um dia depois, 10 de dezembro, Al Gore foi obrigado a desistir, mais de um mês após o dia oficial da eleição. Bush ganhou a Flórida – e a presidência – por apenas 0,009% dos votos. Até hoje, muitos acreditam que o democrata teria vencido se a recontagem não tivesse sido cancelada.

Já foi pior

No século 19, o cenário político era bem diferente do que conhecemos hoje. Para resumir uma história longa e complicada, basta dizer que os estados do norte, mais industrializados, eram a favor da abolição da escravidão, enquanto os do sul, agrícolas, defendiam a manutenção da escravidão.

Nas eleições de 1860, o presidente eleito pertencia ao partido favorito do norte era fortemente abolicionista: Abraham Lincoln. Os estados sulistas, é claro, não gostaram nada disso, e decidiram contestar o resultado da maneira mais radical possível – declarando independência.

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(Estamos nos referindo aos partidos como sendo do norte ou do sul para evitar confusões com a nomenclatura, já que na época o partido conhecido como democrata era o mais conservador, e o conhecido como republicano era o mais progressista – o oposto da divisão ideológica atual).

A Guerra Civil que se seguiu terminou com a derrota da confederação sulista, que foi readmitida à União sob as condições de aceitar o fim da escravidão e dar direitos eleitorais aos negros. Em 1876, porém, o problema ressurgiu de uma maneira mais dissimulada:

O partido do norte passou a ser favorecido também nas regiões do sul de maioria negra, porque os negros passaram a votar. Por isso, os sulistas iniciaram uma campanha contra o voto de ex-escravos – baseada essencialmente em ameaças e violência física. Foi assim que os sulistas conseguiram votos suficientes para eleger o candidato Samuel Tilden.

O norte conseguiu cancelar os votos de três estados baseado nas evidências claras de supressão dos votos dos negros. Por isso, nenhum candidato foi eleito automaticamente, e seguiu-se uma enorme negociação entre os partidos. No fim, os sulistas concordaram em dar a presidência para o republicano nortista Rutherford B. Hayes em troca do fim da ocupação militar nortista que ocorria na região desde o fim da Guerra Civil.

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Por fim, houve um escândalo em 1888, quando um esquema de compra de votos foi descoberto e exposto para toda a sociedade. Os sulistas tiveram acesso a uma carta da turma do norte que atribuia grupos de cinco eleitores a militantes do partido, que eram incumbidos de comprá-los. Era um esquema de corrupção bastante simples, já que os votos não eram secretos.

No fim, o partido favorito do norte de fato venceu a eleição, com margens bem pequenas em dois estados decisivos: Indiana, onde o esquema de fraude foi exposto, e em Nova York, que também apresentou indícios de compra de votos.

Mesmo com o escândalo, o candidato sulista Grover Cleveland decidiu não contestar o resultado – quatro anos depois, ele venceria as eleições. Mas o episódio fez com que a opinião pública passasse a favorecer o voto secreto, e os estados gradualmente adotaram o método. Em 1891, todas as cédulas do país passaram a ser depositadas anonimamente.

 

 

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