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Os planos mirabolantes para preservar a múmia de Lênin, que faz 100 anos

Em 1924, o cadáver gerou uma briga peculiar no Kremlim: havia quem quisesse mantê-lo congelado, submerso num líquido translúcido e até selado em nitrogênio.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 24 jan 2024, 16h57 - Publicado em 24 jan 2024, 16h44

Em 21 de janeiro de 1924, após 53 anos de vida, três derrames e consultas com 26 médicos diferentes, Vladmir Lênin morreu. Um de seus últimos pitacos na política soviética foi que Stálin não assumisse o comando da URSS – ele o considerava rude e autoritário demais para o cargo. 

O funeral atraiu 1 milhão de pessoas ao longo de três dias. Depois, após uma longa discussão o frio do inverno ajudou a preservar o corpo nesse interim , as lideranças soviéticas decidiram embalsamá-lo e mantê-lo exposto temporariamente em um mausoléu na Praça Vermelha.

A solução provisória se tornaria permanente (bem como o mausoléu, que originalmente era de madeira, mas passou a ser um edifício). Os órgãos internos foram removidos; o resultado da autópsia do cérebro é motivo de debate até hoje ele pode ter tido arteroesclerose, neurossífilis e até uma doença genética.

A morte política de Lênin havia começado antes. Em seus últimos anos de vida, já debilitado, ele foi afastado do dia-a-dia da administração da URSS. Seus aliados passaram a ignorar suas ideias novas, suas alterações em textos antigos e suas considerações sobre o futuro do país prova disso é que Stálin assumiu o poder.

Lênin foi transformado uma doutrina que não necessariamente refletia suas ideias, o Lenilismo. Em 1924, Trotsky expressou a preocupação de que o Leninismo tinha pouco a ver com Lênin e corria o risco de se tornar uma coleção de citações vazias, usadas fora de contexto para legitimar qualquer decisão.

Os esforços de preservação de seu corpo tinham o mesmo objetivo: esvaziar Lênin de sua humanidade e torná-lo um ícone, uma estátua. Seu cadáver empregou dezenas de especialistas ao longo dos últimos cem anos e transformou a Rússia em algo insólito: a maior (quiçá única) potência científica na área de conservação de corpos.

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No mínimo 77% da massa original do revolucionário já foi substituída por substâncias inorgânicas de vários tipos.  O grosso dessa porcentagem, é claro, equivale ao conteúdo de água médio no recheio de um ser humano – algo entre 60% e 70%. Mas não só: o nariz foi reconstruído, os globos oculares são falsos e até os cílios precisaram ser trocados.

O historiador Alexei Yurchak da Universidade da Califórnia, que é um especialista na morte de Lênin, explica que seu corpo embalsamado é um caso único na história de múmias, relíquias e afins, porque o objetivo era manter sua aparência e suas feições intactas, ainda que não restasse nada da carne e da pele reais.

No ideário católico, por exemplo, é fundamental para santidade de uma relíquia que o pedaço em questão de fato tenha sido retirado do corpo de um santo, ou que se trate de um objeto que realmente pertenceu a um santo. Autenticidade é essencial, não vale distribuir pedaços da cruz de Cristo se eles forem réplicas.

Lênin é o contrário disso. Resta tão pouco de sua matéria orgânica original que ele já é algo mais próximo de uma réplica.

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O corpo em si não é motivo de admiração (até porque a doutrina marxista-leninista é materialista e ateia). A ideia, ao preservá-lo, é que ele funcionasse mais como uma estátua ultrarrealista, que permitisse o culto à imagem.

Lênin preserva, até hoje, a aparência de uma pessoal saudável e corada. Sua pele tem uma elasticidade bastante convincente e suas juntas permanecem flexíveis. A gordura natural do corpo, que em um cadáver normal passa por um processo de liquefação chamado hidrólise, foi substituída por uma substância inorgânica capaz de manter a forma do corpo inalterada, aplicada com microinjeções.

Lênin, em suma, é um boneco. Vamos entender como os soviéticos chegaram a decisão de mantê-lo assim.

Conversa mórbida

Em 5 de março de 1924, rolou uma reunião peculiar da Comissão para Organização do Funeral de Lênin. Ela é narrada detalhadamente neste artigo escrito por Yurchak.

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Leonind Krasin, um engenheiro, sugeriu uma grande caixa de metal com tampa de vidro, preenchida com algum líquido absolutamente transparente que fosse capaz de preservar o corpo e, ao mesmo tempo, mantê-lo vísivel ao público.

Felix Dzerzhinsky, que liderava a comissão do funeral e era chefe do serviço secreto soviético (na época chamado OGPU, depois rebatizado com a famosa sigla KGB), rechaçou a ideia de mantê-lo em um tanque “como um pedaço de carne morta”, e defendeu congelar Lênin.

Um pesquisador chamado Grigory Belen’ky comentou que o congelamento tampouco era uma boa solução, porque a manutenção é dificílima: o corpo adquire uma coloração preta quando há qualquer mudança sutil de temperatura.

Aventou-se, então, a possibilidade de mantê-lo selado em um recipiente com nitrogênio. O argumento é que, sem oxigênio, não haveria proliferação de bactérias e outros micróbios decompositores. Logo o comitê se lembrou, porém, de que existem seres vivos anaeróbios, cujo metabolismo não depende da respiração.

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Então, Kliment Voroshilov, membro do Conselho Militar Revolucionário, sugeriu que não se fizesse nada com o corpo: ele seria mantido no bálsamo provisório e, quando começasse a apodrecer, seria enterrrado. “Se durar mais um ano, está bom o suficiente”.

De início, portanto, ninguém realmente tinha a intenção de preservar Lênin para sempre. Foi só no final de março que se chegou a um consenso, após uma série de discussões meio tedioosas, meio absurdas (o comitê original se desmembrou em dois comitês, um favorável e um contrário à preservação do corpo por tempo indeterminado).

Ficou decidido que o professor de medicina Vladimir Vorobiev e o bioquímico Boris Zbarsky poderiam embalsamar o corpo usando um método novo e inventado especificamente para Lênin. A dupla trabalhou por nove meses, e foi bem-sucedida.

Até hoje, a lista de procedimentos a que o corpo precisa ser submetido envolve tarefas com diferentes periodicidades. Algumas são diárias, outras são semanais, algumas levam dois meses e são realizadas uma vez a cada dois anos, aproximadamente. A maior parte foi aperfeiçoada em relação ao método original de Vorobiev e Zbarsky.

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A declaração oficial, lida ainda em 1924, reforça que o objetivo era manter a aparência, e não a matéria viva.

“Nós não queremos transformar o corpo de Vladimir Ilyich em um tipo de relíquia. (…) Ele já se imortalizou o suficiente com seus ensinamentos brilhantes e sua atividade revolucionária. Nós queremos preservá-lo porque é de grande importância manter a aparência física deste líder memorável para a próxima e as futuras gerações.”

O cientista político Ken Jowitt argumenta que a transformação de Lênin em uma ideia tornou a URSS uma ditadura única dentre as várias do século 20, porque ela girava não em torno de uma pessoa, mas de uma organização burocrática (o partido) e suas prescrições (o Lenilismo). Até Stálin, centralizador, cruel e autoritário como era, morreu criticado por incentivar o culto à própria personalidade.

O corpo que jaz na Praça Vermelha, portanto, não é um corpo. Está mais para uma escultura macábra, talhada na fronteira da arte com a biologia. Um destino estranhamente adequado para alguém que, ainda vivo, perdeu o status de pessoa e renasceu como ideia.

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