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Os jesuítas contra-atacam

A Companhia de Jesus foi usada para conter a Reforma Protestante e propagar a fé cristã. Acabou se espalhando nos quatro cantos do mundo, foi perseguida e banida - mas resistiu. E só agora, quase cinco séculos depois, alcançou o cargo mais alto da Igreja.

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Atualizado em 31 out 2016, 18h32 - Publicado em 2 jul 2013, 22h00

Reportagem: Rodrigo Cavalcante Edição: Karin Hueck

O Vaticano estava pressionado. Estadistas do mundo inteiro aguardavam com ansiedade a posição oficial da Igreja. Depois de quatro anos de hesitação, o papa finalmente tomou a decisão. No dia 21 de julho de 1773, em breves 45 parágrafos, Clemente 14 extinguiu da Igreja a Companhia de Jesus, a poderosa e temida ordem dos jesuítas. A expulsão foi fruto das pressões de diversos governantes incomodados com o poder que os jesuítas haviam acumulado em 200 anos de existência, quando se tornaram uma das maiores organizações religiosas do planeta. Os soldados de Cristo, como eram chamados, formaram a tropa de elite na defesa do Vaticano durante a Reforma Protestante, quando novas religiões cristãs como o luteranismo e o anglicanismo foram fundadas. Além disso, foram os jesuítas que propagaram a fé pelos rincões da terra, das montanhas do Tibete às florestas tropicais do Brasil. Seus mais de 700 centros de ensino educaram filósofos como René Descartes e, ao redor do pátio de seus colégios, nasceram grandes cidades, como São Paulo. Apesar de banida pelo papa, a Companhia de Jesus não apenas sobreviveu como, no mês passado, chegou ao mais alto cargo da Igreja com o jesuíta argentino Jorge Bergoglio como papa Francisco. Com seu jeitão simpático e fisionomia pacífica, é até difícil imaginar que a ordem da qual ele faz parte tenha sido moldada com disciplina militar por um soldado basco ferido por uma bala de canhão.

A fundação
Um militar basco, uma explosão. Em uma batalha contra tropas francesas na cidade de Pamplona, na Espanha, o soldado Iñigo López de Loyola (depois conhecido como Inácio) viu sua perna direita ser estraçalhada após ser atingida por uma bala de canhão em 1521. Nascido em 1491 no castelo de sua família na Província de Azpeitia, no País Basco, Loyola aspirava a uma vida de glória militar, dedicando-se a exercícios marciais, encontros amorosos e à leitura de livros de cavalaria – talvez o equivalente, hoje em dia, a um jovem fã de filmes de ação e de UFC. Entediado durante a recuperação e sem acesso a livros de cavalaria, não lhe restou alternativa a não ser passar a vista sobre algumas obras de devoção, como a Legenda Áurea, best-seller da época com relatos da vida dos santos. Em meio à leitura, Loyola percebeu que a vida dos santos e mártires era repleta de ação. “Aparentemente, Loyola identificou alguma coisa de invejável nas vidas heroicas dos santos, uma espécie de cavalaria espiritual, e seguiu o exemplo”, conta o historiador inglês Jonathan Wright, autor de Os Jesuítas.

Decidido a empregar sua energia à causa de Cristo, o guerreiro basco de 26 anos largou tudo para se submeter a orações e penitências. Pragmático, Loyola buscou a melhor formação universitária para enfrentar os debates teológicos da época, inflamados desde que o sacerdote Martinho Lutero decidira desafiar Roma fixando 17 teses na porta da igreja em Wittenberg (algo que pode parecer banal nestes tempos de protestos públicos via Facebook, mas que na época foi revolucionário). Depois de estudar em Salamanca e Barcelona, Loyola decidiu ir até Paris, o mais fervilhante centro universitário do mundo cristão. Jovem, cabeludo, com posições independentes e vida errante, foi várias vezes perseguido por autoridades eclesiásticas desconfiadas de sua linha espiritual. “Como muitos dos reformadores, ele era asceta e puritano e, durante algum tempo, viveu como eremita, deixando crescer o cabelo e unhas, e sem comer carne”, diz o historiador inglês Paul Johnson, autor do livro História do Cristianismo. “Contudo, virou pelo avesso o processo da Reforma ao acreditar no princípio da obediência absoluta à Igreja”. Ou seja: em vez de ingressar no grupo dos rebeldes que desafiavam o Vaticano, Loyola formou sua própria milícia cristã para a defesa e a propagação da fé. Em agosto de 1534, ele e mais seis companheiros de oração se reuniram em um retiro para prestar votos de pobreza, celibato, imitar a vida de Cristo e converter infiéis em Jerusalém e nas regiões que estavam sob o domínio dos turcos otomanos. Assim nasceu a Companhia de Jesus.

A conquista do mundoO grupo não perdeu tempo e partiu para Veneza, conexão obrigatória de quem queria partir para o Oriente. Naquele tempo, as coisas já estavam militarmente complicadas por lá. Após meses tentando embarcar sem sucesso – nenhum barco topou sair -, mudaram de planos e decidiram ir a Roma para se colocar à disposição do papa para qualquer missão, por mais espinhosa que fosse. Apesar de alguns círculos no Vaticano não verem com bons olhos os inovadores métodos espirituais do grupo, a Igreja Católica não podia se dar o luxo de dispensar a energia de missionários dispostos a qualquer sacrifício pela fé. Depois de conquistar o apoio de alguns cardeais, a proposta da nova ordem foi aprovada pelo papa Paulo 3º em 27 de dezembro de 1540.

Se a missão era propagar a fé pelo mundo, nada melhor do que pegar carona nas naus portuguesas e espanholas em destino às terras recém-descobertas. Nove anos depois do reconhecimento da ordem, os jesuítas chegaram ao Brasil na armada de Tomé de Souza, e logo ergueram um colégio em Salvador, no momento em que a criação de centros de ensino foi incorporada como missão da ordem. “Não era a ideia inicial da Companhia, ao menos de Inácio de Loyola, investir no ensino”, diz o historiador português Jorge Couto. “Mas a pressão das elites católicas italianas, espanholas e francesas o convenceu a se dedicar à educação”.

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Logo, o Vaticano percebeu que os jesuítas poderiam ser úteis na formação do clero e na criação de uma rede de ensino que não desviasse os jovens da fé católica. Assim, os centros de ensino jesuítas ganharam reputação e se multiplicaram. Nos 50 anos que se seguiram à fundação da Companhia, foram erguidas cerca de seis instituições ao ano. A rápida expansão fez com que, em meados de 1600, a Companhia de Jesus controlasse a mais poderosa rede de ensino do mundo, tendo entre seus alunos futuros papas como Gregório 15 e filósofos como René Descartes. Com aulas espalhadas pelas regiões mais remotas do planeta, os jesuítas se destacaram em astronomia, matemática e ciências naturais.

Para a Companhia, a propagação da fé pelo mundo não era figura de linguagem. Um dos seus votos implicava “ir a qualquer lugar que sua Santidade ordenasse, sem alegar nenhuma desculpa, sem requisitar nenhuma verba para a jornada, em nome da prosperidade da religião cristã”. Para isso, os missionários passavam por um alistamento parecido com o dos militares de hoje em dia: deveriam se adaptar a qualquer ambiente do planeta, e eram vetados caso apresentassem alguma limitação física. Mas não faltavam jovens dispostos a pregar – e morrer – na África, Ásia, América ou na China.

O herói que inspirava esses jovens (e pode ter influenciado a escolha do nome do novo papa, além de São Francisco de Assis) foi São Francisco Xavier, um dos cofundadores da Companhia que desbravou regiões da África, Índia e Japão. Morto em 1552 na ilha chinesa de Sanchoão (São João) e canonizado em 1622, a Igreja Católica considera que São Francisco Xavier converteu mais pessoas ao Cristianismo do que qualquer outro missionário, desde São Paulo – por isso, tornou-se o padroeiro dos missionários. Na época em que Xavier foi canonizado, a Companhia de Jesus já havia se consolidado como uma multinacional: o número de integrantes passou de mil, na época da morte de Loyola (1556), para 15.544, em 1626. Sem dúvidas, foi esse milagre numérico que multiplicou também o número de inimigos da ordem – dentro e fora da Igreja.

A expulsão
Fora dos domínios de Roma, os maiores inimigos dos jesuítas eram os protestantes que haviam sofrido ataques incansáveis da Companhia durante a chamada Contra-Reforma. Numa época em que as guerras religiosas assolavam a Europa, os jesuítas eram recrutados para missões secretas em países protestantes, o que os tornava perseguidos como atualmente são os terroristas islâmicos. Na Inglaterra, por exemplo, o jesuíta Edmund Campion foi enforcado e esquartejado, acusado de traição por trabalhar clandestinamente no país.

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Para os protestantes, os métodos de ação dos jesuítas eram ameaçadores por se diferenciarem da visão tradicional que tinham dos velhos monges católicos, como sedentários e preguiçosos. Diferentemente das ordens que se dedicavam a uma vida contemplativa nos claustros, os jesuítas pareciam fazer questão de se envolver no dia a dia da vida terrena, com todos os seus embates. “Em contraste com outras ordens localizadas nos arredores das cidades, os jesuítas tentavam deliberadamente estabelecer suas igrejas perto das vias públicas mais movimentadas”, diz Jonathan Wright, em referência a algo facilmente confirmado por qualquer um que conhece o centro histórico de Salvador ou de São Paulo. Quando se tornaram confessores dos poderosos reis da Europa, não se furtavam de participar diretamente na ação política e diplomática. O jesuíta português Antonio Vieira, por exemplo, foi homem de confiança de Dom João 4º, e acabou enviado aos Países Baixos para negociar a devolução do nordeste do Brasil. Mas a influente pregação de Vieira contra a escravização dos indígenas logo o fez entrar em conflito com a Igreja e com os proprietários de terra brasileiros. Com o passar do tempo, essa intimidade com o poder aliada a uma independência de posições fizeram com que os jesuítas fossem vistos como uma ameaça para as outras ordens católicas. Dominicanos e franciscanos viam com preocupação a perda de espaço para os jesuítas como confessores dos nobres e poderosos.

Mas o embate mais desgastante se deu em torno das missões jesuítas na América do Sul. Elas eram aldeamentos indígenas que tentavam recriar uma sociedade cristã européia mais pura nos trópicos. Quando o modelo se expandiu, passou a enfrentar a oposição de setores da Igreja Católica, que não concordavam com uma catequese que se adaptava a valores culturais dos índios. Em meados do século 18, as missões haviam alcançado tamanha fama que os jesuítas passaram a ser acusados de tentar criar um império independente, em uma campanha difamatória na América e na Europa. Os líderes da Companhia se tornaram tão poderosos que acabariam apelidados de “Papas Negros”, em oposição ao oficial do Vaticano, que se veste de branco.

O primeiro choque de poder se deu em Portugal. Desde o terremoto de Lisboa, em 1755, que destruiu a cidade, o principal ministro do rei, o Marquês de Pombal, não estava nada feliz com as insinuações de alguns jesuítas de que o evento era uma punição pelos pecados do país. Mas foi uma crise envolvendo as missões jesuítas que serviriam de combustível para a expulsão da ordem. Ao trocar a cidade de Colônia de Sacramento com a Espanha por terras ao leste do rio Uruguai, sete missões guaranis passaram a fazer parte de Portugal. Quando alguns índios guaranis se rebelaram contra a mudança, os jesuítas foram acusados de apoiá-los, e uma agressiva campanha foi montada contra a ordem. Membros da Companhia foram presos e torturados e, em abril de 1759, acabaram banidos de Portugal. Em seguida, foi a vez da França em 1764 e da Espanha em 1767.

Restava saber quando a Companhia finalmente seria extinta. A oportunidade veio com a escolha do papa Clemente 14, em 1769. Após hesitar por quatro anos, o pontífice finalmente cedeu à pressão do embaixador espanhol Moniño e lançou, em 21 de julho de 1773, a bula Dominus ac Redemptor, que, apesar de não conter nenhuma acusação específica à Companhia, alegava que a remoção dela era necessária “pelo bem da paz cristã”. A ordem usada pelo Vaticano para destruir os hereges acabou destruída pela própria Igreja Católica.

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A volta por cima
A supressão da ordem não representou um golpe apenas para os missionários. Na prática, foram desativados mais de 700 centros de ensino e 600 bibliotecas. Graças à proteção de alguns monarcas, contudo, a ordem nunca foi extinta completamente. Na Rússia, a imperatriz Catarina fez questão de fazer vista grossa e deixou os jesuítas em paz no seu reino. Na Prússia, parte da atual Alemanha, eles também foram poupados.

Mas o Vaticano logo teve de reconhecer que havia feito da Companhia de Jesus um bode expiatório. Em pouco tempo, ficou claro que os Estados europeus não estavam implicando especificamente com os jesuítas – mas, sim, com uma interferência direta de qualquer fé sobre os seus assuntos. Em 1814, o papa Pio 7º restaurou a ordem sob a justificativa de que “O mundo católico exige com unanimidade o restabelecimento da Companhia de Jesus”.

A Companhia rapidamente se reestruturou, mas a vida para os jesuítas e a Igreja não seria nada fácil nos séculos seguintes. Em um mundo impactado pela Teoria da Evolução de Darwin e por ideologias que viam a religião como fonte de atraso e ignorância, a Igreja Católica precisava se reinventar. Mas, em vez de tentar se adaptar aos novos tempos, o Vaticano preferiu reagir reforçando seus símbolos mais tradicionais. Mais uma vez, os jesuítas estariam na vanguarda da defesa da fé.

O primeiro movimento, no século 19, foi o resgate do símbolo do “Sagrado Coração de Jesus”, uma imagem poderosa que lembrava ao mundo que os ataques impiedosos contra a fé sangravam o coração de Cristo. Depois, veio o resgate da imagem de Maria, por meio do dogma da Imaculada Conceição, em 1854. E finalmente, quando o Concílio Vaticano 1º declarou, em 1870, a infalibilidade papal nos assuntos relativos à moral e à fé, os jesuítas também estavam presentes na condenação aos erros do “racionalismo, do materialismo e do ateísmo”.

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Dali em diante, a Igreja sobreviveu não apenas às duas Guerras Mundiais no século 20, como testemunhou a expansão, ascensão e queda dos regimes comunistas – queda ajudada por um empurrãozinho nada desprezível do carismático papa João Paulo 2º. Após a morte do João de Deus, que resgatou o poder da Igreja no Ocidente, houve quem apostasse que já era hora de um jesuíta assumir o papado. Mas a eleição do cardeal alemão Joseph Ratzinger parecia confirmar a tese de que caberia aos jesuítas manter-se sempre à margem da burocracia do clero para executar missões em nome do papa.

Se, em momentos de emergência, o Vaticano sempre contou com os jesuítas, a crise produzida pela renúncia de Bento 16 talvez tenha criado as condições ideais para a chegada do primeiro jesuíta ao papado. Enquanto Francisco levanta a bandeira da humildade já nos primeiros dias do seu pontificado, resta saber quais serão as armas que o primeiro soldado de Cristo na Santa Sé usará para defender sua fé. Um bom histórico, sua ordem já tem.

PARA SABER MAIS
História do Cristianismo
Paul Johnson, Imago, 2001.

Os Jesuítas
Jonathan Wright, Ediouro, 2006.

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