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Os enigmas da Ilha de Páscoa

Os rapanuis construíram uma civilização próspera num pedaço de terra menor que Ilhabela. E o fim dela ainda é um mistério.

Por Reinaldo José Lopes
Atualizado em 18 jan 2021, 16h06 - Publicado em 4 fev 2019, 16h27

Diz a lenda que o chefe polinésio Hotu Matu’a, cujo nome queria dizer “Grande Pai”, cruzava o Oceano Pacífico com a família numa embarcação primitiva quando decidiu aportar em Rapa Nui – o isolado pedaço de terra que hoje conhecemos como Ilha de Páscoa. Ao desembarcar naquele cenário vulcânico, ele poderia imaginar qualquer coisa, menos que estaria na origem de duas grandes controvérsias científicas muitos séculos depois.

Foram as gerações de colonizadores saídos da Polinésia, provavelmente a partir do ano 1000 da Era Cristã, que ergueram os moais, estátuas gigantes que adornam a ilha até hoje. Como eles fizeram isso? E outra: teriam sido responsáveis por um dos mais sérios desastres ambientais da história, que acabou varrendo do mapa sua própria civilização? Ainda não há respostas definitivas para essas duas perguntas.

Certeza, só uma: não deve ter sido fácil esculpir e transportar aquela quantidade de moais. Entre os anos de 1100 e 1400, foram construídos quase 900 – alguns com mais de 10 metros de altura e pesando dezenas de toneladas. A empreitada parece tão sobre-humana que muita gente acaba comprando a tese de que extraterrestres podem ter dado uma mãozinha. Esqueça, essa história é bobagem. Escavações já revelaram moais inacabados nas pedreiras onde eram esculpidos. Em volta deles, foram encontradas ferramentas simples de pedra com as quais os rapanuis davam forma às esculturas. Num dos sítios arqueológicos, descobriu-se até um osso de dedo humano – provavelmente de um operário descuidado, que ignorou as normas de segurança no trabalho.

Homenagem aos mortos

Não existe nenhum registro escrito sobre os rapanuis anterior à chegada dos europeus, ocorrida no domingo de Páscoa de 1722 – daí o nome pelo qual conhecemos a ilha hoje em dia. Sabe-se, porém, que eles eram comandados por um único líder. A sociedade se dividia em vários clãs familiares.

Seus integrantes viviam em casas feitas de madeira, palha e folhas secas. O ponto mais importante de cada vila era o centro cerimonial, onde havia um altar – chamado ahu – sobre o qual os gigantescos moais eram colocados de pé. As estátuas eram construídas em homenagem a alguém importante do clã que havia morrido. Sua posição estratégica – sempre de costas para o mar, olhando para o vilarejo – servia para que, direto da outra vida, o morto continuasse a zelar por seu povo.

O que realmente intriga os arqueólogos, portanto, não é exatamente a habilidade dos rapanuis como escultores, mas como carregadores. As teorias sobre como estátuas de até 82 toneladas foram transportadas de um ponto a outro são variadas e conflitantes. Alguns pesquisadores defendem, por exemplo, a ideia de que os monumentos eram deitados e arrastados sobre trilhos de madeira. Outros acreditam que o deslocamento acontecia com as estátuas na posição vertical. E todos garantem que sua hipótese é a correta (leia mais no final desta reportagem).

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Agricultura e galinhas

O fim da civilização rapanui também permanece cercado de mistérios. Sabe-se que a ilha, embora pequena, chegou a suportar uma população numerosa, de até 15 mil habitantes. Embora não seja unanimidade entre os pesquisadores, esse número faz sentido. Considerando-se a tecnologia dominada pelos nativos de Páscoa àquela altura, só com um contingente populacional desse porte seria possível construir e transportar tantos moais. Mas alimentar toda essa gente era um problema sério – ainda mais numa ilha tão ilha isolada, de apenas 160 quilômetros quadrados e com recursos naturais limitados (para dar uma ideia, Ilhabela, no litoral, de SP, tem 347 km2; Ilha Grande, no RJ, 193 km2

A solução foi a agricultura intensiva, principalmente alimentos ricos em carboidratos como batata-doce, inhame, banana e cana-de-açúcar. O clima não ajudava muito. Já naquela época, a Ilha de Páscoa era um lugar relativamente frio, de pouca chuva e muito vento. Mesmo assim, produzia-se o suficiente para que a civilização prosperasse. Os “filhos de Hotu Matu’a” abriram canais de irrigação, desenvolveram quebra-ventos e aprenderam a usar pedras escuras aquecidas ao sol durante o dia para esquentar o solo ao redor das mudas à noite. Construíam também enormes galinheiros de pedra, para criar sua principal fonte de proteína animal.

Durante séculos, todo esse esforço parece ter dado bons resultados. Até que, provavelmente a partir de 1400, a obsessão por moais parece ter passado do limite. Na disputa para ver quem construía a estátua mais espetacular, os habitantes de Páscoa podem ter promovido um desmatamento hediondo. De algum lugar eles precisavam tirar a madeira necessária para produzir ou transportar esculturas cada vez maiores, além de construir cada vez mais casas e fazer cada vez mais fogo. Resultado: da floresta subtropical nativa, quase nada teria sobrado num espaço relativamente curto de tempo.

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A ilha se encontrava no limite entre o equilíbrio e o colapso em função da pressão populacional. Com sua mata sendo rapidamente destruída, a balança pendeu para o lado ruim. Junto com as árvores, desapareceram todas as espécies nativas de aves. Com o tempo, também a agricultura intensiva teria se revelado um tiro no pé, levando a um processo desenfreado de erosão do solo. Veio a fome. Em seguida, guerras e até canibalismo. Assim teria chegado ao fim a outrora próspera civilização rapanui.

Esse processo de decadência, de acordo com a maior parte dos estudiosos, ocorreu entre os séculos 16 e 17, antes da chegada dos europeus. Segundo o arqueólogo chileno Claudio Cristino, um dos maiores especialistas em Ilha de Páscoa, a tradição oral rapanui menciona um período de guerras entre aldeias. Quando derrotavam os integrantes de determinado clã, os vencedores derrubavam os moais do vilarejo inimigo – a maior humilhação que podia ser feita. As expedições europeias que visitaram a ilha a partir do século 18 ajudaram a piorar a crise, espalhando epidemias e levando nativos como escravos. No fim do século 19, havia pouco mais de 100 pessoas – basicamente o mesmo número que teria aportado por lá mil anos antes e fundado a sociedade rapanui.

Ecocídio

O geógrafo americano Jared Diamond chama a tragédia ocorrida na ilha de “ecocídio”, um suicídio ecológico. “Essa história é o exemplo extremo de destruição florestal”, ele escreve em Colapso: Como as Sociedades Escolhem o Fracasso ou o Sucesso. A teoria foi bem recebida, até porque, caso ela esteja certa, a Ilha de Páscoa funcionaria como um amostra em pequena escala do que pode acontecer com o planeta inteiro.

Mas nem todo mundo concorda com a tese.

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Para alguns pesquisadores, os antigos habitantes de Páscoa podem não ter sido os únicos responsáveis pelo seu próprio extermínio. Eles argumentam que a fragilidade ecológica daquele ambiente insular levaria qualquer civilização ao colapso, com ou sem desmatamento ostensivo. Acreditam que a floresta cobria uma área relativamente pequena, talvez irrelevante. E que a principal causa do colapso pode ter sido um fenômeno natural, como um El Niño particularmente intenso (o mesmo fenômeno por trás do quente verão de 2019).

Uma dessas vozes dissonantes é a do antropólogo americano Terry Hunt, da Universidade do Havaí. Segundo Hunt, não há evidência de que o colapso tenha começado antes do contato com os europeus. O antropólogo também sustenta que a ilha foi colonizada bem depois do que se acredita, por volta de 1200.

Assim, não haveria tempo para que, em pouco mais de 3 séculos, a população chegasse a 15 mil habitantes. Sem superpopulação, a teoria de Diamond não faria sentido. Para Hunt, a floresta sumiu por causa de uma mudança climática que ocorreu ao longo dos séculos. E o problema foi agravado por uma espécie trazida pelos europeus: os ratos. Multiplicando-se exponencialmente e alimentando-se de frutos e sementes, os roedores dificultavam o crescimento de novas árvores.

Outro especialista que discorda do “ecocídio”  é o britânico John Flenley, coautor de The Enigmas of Easter Island (“Os Enigmas da Ilha de Páscoa”, inédito no Brasil). Para ele, o que provavelmente ocorreu foi uma combinação de fatores. “A superpopulação, o declínio dos recursos naturais, a exaustão do solo, as guerras e uma possível mudança climática levaram os rapanuis à extinção.”

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De pé ou deitado?

Restam dúvidas sobre a técnica utilizada pelos rapanuis para deslocar os moais. Uma das teorias mais corroboradas diz que os antigos habitantes de Páscoa usavam trilhos feitos de madeira, sobre os quais as estátuas eram deitadas e puxadas ou empurradas. Para erguê-las no destino final, eles iam colocando pedras embaixo das esculturas até que elas ficassem de pé. Há quem acredite, no entanto, que o deslocamento se dava com os moais da posição vertical. Eles seriam puxados de um lado e de outro alternadamente, mais ou menos como fazemos quando somos obrigados a mover a geladeira da cozinha – só que com o auxílio de cordas. Os defensores dessa tese apontam como evidência os vários moais quebrados que até hoje podem ser vistos na ilha. Eles teriam tombado e rachado durante o transporte, e acabaram abandonados no meio do caminho.

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