Negros na Europa
Santos, peregrinos, heróis, escravos, inimigos: pessoas da África Subsaariana não eram uma visão improvável na Europa medieval.
Um dos reis mais famosos da Idade Média europeia era negro. Seu nome era Preste João. Um monarca da “Índia” que enviara uma carta ao imperador bizantino Manuel Comneno (1118-1180) dizendo que era descendente de um dos três Reis Magos, tinha um riquíssimo reino isolado entre islâmicos, e que iria ajudar os cristãos europeus em suas batalhas contra eles. Seu reino tinha maravilhas como touros com sete chifres, águias que podiam carregar um cavaleiro com armadura, e homens com três olhos atrás da cabeça. Também uma fonte da juventude. A carta era uma fraude, provavelmente surgida na Itália.
Mas, levada a sério pelo papa Alexandre 3º (r. 1159-1181), circulou por toda a Europa. Por muito tempo, discutiu-se onde ficava a “Índia”, mas, no século 15, se formou um quase consenso: era a Etiópia, que então chamavam de Abissínia. Quando os portugueses finalmente encontraram o Imperador da Etiópia, em 1498, clamaram ser o Preste João.
Esse personagem era uma lenda, mas outro rei negro seria bem conhecido dos europeus: Mansa Musa (1280-1337) do Mali, que historiadores consideram um forte candidato a ter sido o homem mais rico de todos os tempos. A história da peregrinação a Meca do rei, distribuindo ouro pelo caminho, ficou tão famosa que ele foi parar num Atlas catalão de 1375.
E essa é só uma das dezenas de imagens de negros na iconografia medieval. Há mais retratos que relatos de negros na Idade Média. Europeus que nunca haviam visto uma pessoa negra de perto ainda assim eram familiarizados com a ideia de pessoas negras na igreja, por imagens de santos como São Maurício, patrono da Catedral de Magdeburgo, Alemanha, São Moisés, o Negro, eremita do Egito do século 5, e, mais que todos, Gaspar, um dos três Reis Magos, que passou a ser retratado como negro no século 12. Na Heráldica, a “cabeça de mouro”, mostrando um homem negro com uma faixa, se tornou emblema de lugares distantes como a Córsega, o Reino de Algarve, Barcelona, e as cidades alemãs de Friesing e Coburg.
Escravos e peregrinos
A presença física de negros foi maior na Península Ibérica, por conta do domínio dos mouros, entre os quais negros eram parte da população livre e escrava. O historiador português Jorge Fonseca calculou que, ao fim da Reconquista, em 1498, 7% dos ibéricos seriam negros africanos. Através da Península Ibérica e o Norte da África, negros foram parar em outras partes da Europa, possivelmente levados por vikings, que vendiam escravos. Uma pesquisa de 2013 encontrou um esqueleto identificado como uma mulher de características subsaarianas que viveu em Fairford, Inglaterra, em algum período entre 896 e 1025. No século 15, o semilegendário fora da lei escocês Black Morrow era identificado como negro.
Os combatentes que foram para as Cruzadas também se tornaram familiares com negros, e não só no papel de inimigo. Os padres da Etiópia já então eram guardiões da Igreja do Sagrado Sepulcro. Esse contato continuaria pelos séculos.
Em 1159, a Igreja de Santo Estêvão foi reformada e ganhou um mosteiro para os etíopes. Em 1480, em outra reforma, terminou rebatizada de Santo Estêvão da Abissínia em reconhecimento a eles e ainda hoje, dentro do território do Vaticano, é administrada por católicos etíopes.
Africanos cristãos também faziam peregrinações. Em 1203, estacionado em Constantinopla, na infame Quarta Cruzada, o cavaleiro francês Robert de Clari relatou ter encontrando o rei da Núbia (no atual Sudão do Sul) e sua comitiva. Clari não o identificou, mas documentos núbios parecem indicar que era o célebre rei Moisés Jorge, que havia derrotado o reconquistador de Jerusalém, Saladino, 28 anos antes. O rei tinha uma cruz gravada na cabeça, o que é costume na região até hoje, e dizia estar em peregrinação para Santiago de Compostela, após ter passado por Jerusalém, fazendo uma escala em Roma. Tomaria o mesmo caminho na volta para, se tudo corresse como planejado, morrer em Jerusalém. Ninguém sabe o que aconteceu com esse rei.
Constantinopla seria saqueada dias depois pelos próprios cruzados, o que abre a possibilidade de ter sido morto por cristãos. Mas ele é um testemunho de que negros faziam peregrinações pela Europa. Crônicas bizantinas da mesma época contam da recepção a peregrinos da Etiópia. A partir de 1402, os etíopes mandaram diversas missões diplomáticas para Roma, França e Espanha.
Fora todos os viajantes, negros locais ocasionalmente eram alçados à posição de poder. O rei de Castela, a partir de 1410, tinha uma Guarda Moura, principalmente negros convertidos que atuavam como cavaleiros da mais alta reputação. Seria na Península Ibérica, porém, que o racismo se desenvolveria. A ligação dos negros e mestiços – “morenos” vem de “mouros” – com o Islã levaria à perseguição racial dos “cristãos novos”, identificados pela cor da pele.
O crescente número de escravos após a chegada de Portugal às costas da África, em 1450, levaria à identificação do negro, islâmico ou não, com o escravo. Tomando o lugar de antigos santos, peregrinos e heróis da cristandade.