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Navegador do outro mundo

Noventa anos antes de Vasco da Gama descobrir a rota para as Índias, o almirante chinês Zheng He percorreu mais de trinta países da Ásia e da África. Suas frotas reuniam dezenas de gigantescos navios e ¿ surpresa ¿ não colonizavam nem escravizavam.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h10 - Publicado em 31 jan 1999, 22h00

Isabela Boscov

Imagine se, em vez de português, você hoje falasse chinês – ou se Brasil fosse escrito assim: . No que dependesse de um almirante chamado Zheng He, poderia ser verdade. Entre 1405 e 1433, ele comandou uma imensa frota que percorreu a Ásia e o leste da África, até a atual Tanzânia. Faltou pouco para dobrar o Cabo da Boa Esperança, na pontinha do continente africano – o que o português Bartolomeu Dias só faria em 1488 – e achar o caminho para a América (veja mapa na página 74). Tudo isso oito décadas antes de exploradores cujos nomes o Ocidente sabe de cor, como Cristóvão Colombo.

Muitas diferenças, porém, separam as sete expedições de Zheng He das similares ocidentais. A primeira delas era bem visível: reunindo até 28 000 homens e 317 navios (alguns mais compridos que um campo de futebol), suas esquadras eram colossos flutuantes. Mais: pelo menos desde 1117 – setenta anos antes dos europeus – os chineses já usavam a bússola para navegar. Também dividiam o casco do navio em gomos, evitando que se inundasse todo em caso de acidente, truque que os ocidentais levariam séculos para descobrir.

Um eunuco esperto

Zheng He era uma figura que não seria encontrada em nenhuma corte européia da época. Filho de muçulmanos, nasceu em 1371 na província de Yunnan, a última em poder da dinastia mongol Yuan. Quando a dinastia Ming (1368-1644) tomou-a, seguiu a tradição: capturou e castrou os filhos dos prisioneiros. Entre eles estava o futuro almirante, enviado aos 13 anos ao príncipe Zhu Di. Descrito como um rapaz inteligente, hábil na guerra e na diplomacia, o jovem eunuco logo ganhou a confiança do nobre. Assim, quando o príncipe arrancou o trono imperial das mãos do próprio sobrinho, deu a Zheng He a missão de montar a frota, apesar de sua idade – 35 anos –, considerada avançada para a época.

O mais curioso é o uso que se deu a essa esquadra tão poderosa. Embora os escritos de Zheng He tenham sido destruídos quando a China encerrou suas grandes navegações, não há notícia de que o almirante tenha colonizado ou escravizado as nações que visitou. É verdade que não levava desaforo para casa, mas a idéia não era usar a força, e sim demonstrá-la – sem deixar dúvidas.

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A armada ia carregada de porcelana, seda, tesouros e presentes que distribuía entre os soberanos estrangeiros. Em troca, exigia apenas que reconhecessem a China como o centro do mundo e seu imperador como o tal. “E, com aquela muralha de navios ancorada bem ali, ninguém recusava”, explicou à SUPER o historiador belga criado no Brasil Eric Vanden Bussche, que estuda chinês em Pequim para se aprofundar na compreensão da História do país.

Cidade flutuante

A primeira frota do almirante Zheng He zarpou em 1405 com 317 navios e 28 000 homens. Só na Primeira Guerra Mundial, em 1914, uma esquadra comparável seria lançada novamente aos mares

Um sinal dos deuses

Quando o príncipe Zhu Di subiu ao “trono do dragão” e se tornou o imperador Yong Le (1402-1424), levou consigo algumas preocupações. Embora seu sobrinho deposto fosse dado como morto, corriam boatos de que ele estaria foragido. E se reaparecesse para reivindicar o poder?

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Esse foi o primeiro motivo pelo qual Zheng He reuniu a mais impressionante frota da História da China. De uma só tacada, o imperador pretendia localizar o fujão e deixar bem claro para os “bárbaros” que era ele quem mandava.

“Bárbaros”, no caso, eram todos que fossem estrangeiros ou etnias minoritárias. Hoje, 94% dos chineses pertencem à etnia han e os 6% restantes dividem-se entre outros 55 grupos. Naquele tempo não era muito diferente. “Mesmo sob o domínio da dinastia mongol (1271-1368), a maioria chinesa sempre tratou de preservar suas características culturais”, conta Bussche. Para manter a paz com os vizinhos, o país negociava – mas sob os olhos vigilantes dos burocratas da corte. Esses funcionários eram fiéis aos ensinamentos do sábio Confúcio (551-479 a.C.), e Confúcio torcia o nariz para estrangeiros e comerciantes.

Há, no entanto, quem prefira outra explicação para o controle do comércio. “Mais do que a ética confuciana, pesava o desejo do Estado de controlar o lucro”, disse à SUPER o inglês John Moffett, responsável pela biblioteca do Needham Research Institute da Universidade de Cambridge, centro de estudos chineses na Inglaterra que é referência em todo o mundo.

Unicórnios celestiais

O imperador Yong Le, de qualquer forma, andava de olho nas riquezas dos países estrangeiros. O seu entusiasmo aumentou ainda mais quando começaram a entrar na China, ao fim de cada expedição, raridades como marfim, ervas, pedras preciosas, chifres de rinocerontes, incenso e madeiras exóticas. Comoção mesmo houve com a chegada de um par de girafas, que foram declaradas “unicórnios celestiais” – um sinal de que os deuses aprovavam as navegações.

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Os deuses, talvez. Os chineses mesmo tinham suas dúvidas. Desde 1403, todas as províncias contribuíam como podiam com a frenética atividade no estaleiro de Nanquim (então capital do país), que ocupava vários quilômetros à margem do Rio Yang Tsé. Matérias-primas, artesãos e operários eram deslocados em massa, e os cobradores de impostos espremiam os contribuintes. “As necessidades da frota eram tão imensas que, desde o início, ela foi um ônus para a população”, diz Louise Levathes em seu livro When China Ruled the Seas (quando a China governava os mares), um extenso relato sobre as navegações de Zheng He.

Casca de noz

A caravela Santa Maria, uma das três com que Cristóvão Colombo chegou à América em 1492, tinha 26 metros de comprimento. Pareceria um bote perto do colossal navio de tesouro capitaneado por Zheng He em 1405

O império de portas fechadas

Quando tinha meio mundo ao seu alcance, a China desistiu dele. Depois da morte do imperador Yong Le, em 1424, só mais uma expedição partiu. Os soberanos seguintes jogaram o país num período tumultuado. Ora ele abria suas portas, ora fechava. Venceram os que achavam que a frota só torrava dinheiro, enquanto a população sofria com epidemias e fome e tinha de pagar a conta de obras como a mudança da capital de Nanquim para Pequim.

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O fato é que, nos 400 anos seguintes, a China trancou-se a chave. Pela frestinha que sobrou, o comércio fluía sob o olhar quase sempre rigoroso da corte. Construir navios para a navegação oceânica chegou a ser considerado alta traição. Toda a experiência marítima se perdeu. “Quando o Ocidente abriu seu caminho a bala para dentro da China, com a Guerra do Ópio (1839-1842), encontrou uma nação em desvantagem tecnológica”, conta Moffett.

O pesquisador inglês ressalta que muitos historiadores acreditam numa vocação chinesa para o isolacionismo, uma desconfiança de tudo o que é estrangeiro – mas ele próprio discorda. Na sua opinião, o abre-e-fecha seria fruto das infindáveis rusgas políticas e também da arrogância. “Falar em isolacionismo pressupõe medo do que está lá fora. Os chineses não tinham medo; eles achavam que eram o centro do mundo e não precisavam dos outros.”

Ainda assim, como se explica que um marco tão grandioso da História seja quase ignorado no lado oeste do planeta? “Nossa perspectiva é mesmo eurocêntrica”, justifica Bussche, lembrando que até a História do Brasil ensinada aqui começa com o descobrimento. E antes?

O chinês do milênio

Zheng He, o descobridor pioneiro, não chegou a ver as grandes mudanças no império. Até onde se sabe, morreu no mar, em 1433, aos 62 anos. Seus escritos foram queimados. Não se conhecem nem retratos dele. Talvez não tenham sido feitos. “Retratos, na China daquela época, só de gente muito importante”, conta Moffett.

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Mas, se a vingança é um prato que se come frio, o almirante saboreia a dele, postumamente. Há pouco, a revista Life escolheu as 100 personalidades do milênio. É verdade que Colombo ficou no 2° lugar e Fernão de Magalhães, no 7°. Mas Zheng He foi premiado com o 14° posto, bem à frente dos compatriotas Kublai Khan (23°) e Mao Tsé-tung (28°). Com um cartaz desses, quem precisa de retrato?

Para saber mais

When China Ruled the Seas – The Treasure Fleet of the Dragon Throne, 1405-1433, Louise Levathes. Oxford University Press, Nova York, 1994

Com quantos navios se faz uma frota

A esquadra de Zheng He era composta de vários tipos de naus.

Coloridos e monumentais, os navios de tesouro, carregados de bens e riquezas, eram as estrelas dos mares asiáticos. Enormes também eram os navios de cavalos, que levavam animais para troca com os países visitados e materiais de reparo para as travessias. Havia ainda os navios de suprimentos, os de transporte de tropas, os barcos de guerra e as naves de patrulha – mais ágeis, com remadores, para surpreender piratas. Os navios-pipa carregavam água doce suficiente para abastecer toda a frota (a primeira da história a ter esse serviço) por até um mês.

Navegação à moda chinesa

Com 124 metros de comprimento e 50 de largura, alguns navios de Zheng He estão entre os maiores veleiros da História.

Tem alguém aí?

Tambores, bandeiras, sinos, lanternas, flâmulas, gongos e até pombos-correio eram empregados na comunicação entre os navios.

Dieta saudável

Porcos e outros animais embarcavam vivos, para serem abatidos aos poucos – garantia de carne fresca. Também levavam-se vasos e terra para plantar, prevenindo o escorbuto que matou tantos marinheiros europeus.

Cortando a água

O casco era em “V”, para cortar as ondas, e o convés era largo. O leme subia e descia para ajudar nas manobras.

Tudo no seu lugar

Em geral, havia três pavimentos. O primeiro levava terra e pedras como lastro; o segundo, estoques e tripulantes; e o terceiro era um misto de centro de comando, cozinha e refeitório.

Imitando o bambu

Só no final do século XVIII os europeus aprenderam a usar recursos comuns nesta frota, como compartimentos estanques à prova d’água, inspirados nas câmaras dos troncos de bambu.

A favor do vento

Os barcos eram enormes, mas rápidos: tinham nove mastros, nos quais se içavam velas de seda vermelha.

Outra ciência do mar

A tecnologia oriental para navegar com segurança.

Siga esta agulha

Desde o século IV a.C., os chineses já sabiam como fazer um pedaço de ferro imantado indicar a direção norte-sul. No século VI, passaram a usar agulhas. Em 1117, aprenderam a compensar o balanço das ondas no navio pondo a agulha em uma bacia d’água – a bússola flutuante.

De olho na estrela

Para determinar a latitude, os pilotos baseavam-se na altura do Cruzeiro do Sul ou da estrela Polar em relação ao horizonte. Também possuíam mapas estelares que mostravam as posições sucessivas das constelações.

No compasso das horas

A velocidade do navio era estimada jogando-se um objeto na água na altura da proa. Caminhando ao lado dele enquanto se entoava uma rima, sabia-se quanto tempo o barco levava para ultrapassar o objeto.

Ocidente X Oriente

Zheng He navegou mais. Colombo era mais ousado.

Como comparar Zheng He ao navegador que, para o Ocidente, virou sinônimo de desbravador? “As viagens de Cristóvão Colombo (1451-1506) foram menos extensas e suntuosas”, nota John Moffet. “Por outro lado, Zheng He seguia a costa, enquanto Colombo cruzava oceanos em suas pequenas caravelas.”

Ousadia à parte, os europeus teriam levado um banho de tecnologia dos chineses se os tivessem encontrado em água salgada. Desde 1132 a China tinha uma Marinha e imperadores mais animados ofereciam prêmios para quem melhorasse o design naval. Além de técnica, tinham visão: a frota imperial de Zheng levava farmacêuticos para coletar ervas medicinais e ostentava a civilizada proporção de um médico para cada 150 homens a bordo. Um hábito refinado.

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