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Mistura entre os animais: o zôo do absurdo

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h14 - Publicado em 31 mar 1996, 22h00

Flávio Dieguez

Descobertas recentes na China e em várias outras regiões do mundo confirmam: os animais surgiram durante um surto de criatividade evolutiva há 543 milhões de anos, no período Cambriano. Os precursores de todas as criaturas modernas estavam lá. Mas havia também um bestiário bizarro, de criaturas que parecem uma colagem de partes das espécies atuais. Como se a natureza tivesse tentado misturar cavalos com minhocas e camarões com sabiás. O próprio zoológico do absurdo. Mais tarde essas esquisitices desapareceram e restaram apenas os bichos que conhecemos. Ou seja, a explosão do Cambriano demonstra que a evolução não tem um plano bem definido e preestabelecido. Ela faz experiências o tempo todo, e não se pode antecipar o que vai dar e o que não vai dar certo.

Mudanças rápidas e radicais

Os únicos habitantes do planeta, ao longo de 3,5 bilhões de anos, foram as algas, bactérias e outros seres invisíveis a olho nu, feitos de uma célula só. Isso significa que durante quase 90% da história da vida sobre a Terra a natureza fez pouquíssimas mudanças nos organismos que existiam. E aí, de uma tacada só, há 543 milhões de anos, inventou todos os animais que existem e muitos outros que desapareceram sem deixar descendentes (veja o infográfico abaixo).

As únicas marcas desse episódio explosivo, que ocorreu durante o período Cambriano, são restos fossilizados encravados nas rochas. Eles estão sendo desenterrados em todos os continentes e são muito importantes porque mostram aos cientistas como a evolução realmente aconteceu. A primeira conclusão deles é que a natureza não age de maneira lenta e gradual. A revolução do Cambriano deve ter durado apenas 5 milhões de anos, uma fração de tempo irrisória quando comparada à enorme pasmaceira anterior.

A segunda constatação é que as mudanças, além de rápidas, são radicais. A população da Terra durante o Cambriano pulou direto dos micróbios unicelulares para animais complicados, formados por milhões e milhões de células. A maior parte eram ancestrais das águas-vivas, lagostas, vermes e ostras. Mas todas as espécies atuais estavam lá, pelo menos em suas linhas gerais (veja o infográfico no alto destas páginas). E a febre de invenções biológicas continuou. Junto com a fauna que nos é mais familiar, surgiram bichos extravagantes, que não podem ser classificados em nenhum dos grandes grupos conhecidos. Alguns pareciam uma colagem, feitos com partes dos corpos de duas ou três criaturas diferentes. Outros eram simplesmente impossíveis de analisar. Nestas páginas e nas seguintes você vai ler a história dessa fauna ensandecida e vai entender o que ela pode nos ensinar a respeito da origem das espécies.

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A explosão ganha escala planetária

O mais recente e emocionante achado dos paleontólogos que estudam a evolução foi feito na China, no final do ano passado. Era um fóssil pequeno, de no máximo 5 centímetros, parecido com uma lesma. Batizado de Yunnanozoon lividum, apesar da aparência insignificante ele pode ter sido o primeiro membro de um grande grupo de animais ao qual pertence o homem. Pelas marcas que seu corpo deixou na pedra, ao ser esmagado entre duas rochas há 525 milhões de anos, vê-se que o yunnanozoon tinha vértebras, a marca registrada dos cordados. A descoberta confirma a hipótese de que todos os grandes grupos de animais surgiram praticamente ao mesmo tempo e em todos os lugares do planeta, numa explosão espetacular de criatividade natural.

Isso é importante porque até o final da década passada quase todos os fósseis do Cambriano haviam sido encontrados em Burgess Shale, no Canadá. Nos últimos dois anos, porém, restos semelhantes aos canadenses foram vistos também na Sibéria, na Groelândia, na China e na Namíbia (sul da África). Prova de que a explosão dos animais ocorreu em escala mundial. Não foi um episódio confinado a um canto do planeta. Mais ainda: medidas cuidadosas nesses locais limitaram drasticamente o período crítico das invenções biológicas, que teria durado 75 milhões de anos, de acordo com estimativas anteriores a 1987.

Uma primeira revisão, em 1994, reduziu a transição para menos da metade, cerca de 30 milhões de anos. Já parecia pouco demais para acomodar a criação de todos os tipos de seres. No ano passado, porém, ficou claro que o período durou menos de 10 milhões de anos. Mais provavelmente, 5 milhões de anos. “As novidades estão se acumulando mais depresssa do que damos conta de assimilar”, afirmou o paleontólogo Andrew Knoll, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, à revista Time. Um dos principais responsáveis pelas medidas de tempo, ele explicou que as novidades do Cambriano começaram a aparecer quase exatamente há 543 milhões de anos e terminaram entre 538 milhões e 533 milhões de anos atrás.

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O yunnanozoon, por acaso, encerra o penúltimo capítulo de uma aventura científica iniciada há cerca de um século com o naturalista Charles Doolittle Walcott, do Instituto Smithsonian. Um dos pais da moderna Paleontologia americana, Walcott foi o primeiro a ver os maravilhosos fósseis de Burgess Shale, em 1909. Espantado com a surpreendente diversidade preservada nas rochas, o cientista fez o que pôde para classificar os achados segundo as categorias conhecidas. E conseguiu. Só que forçou a mão e cometeu diversos erros decisivos, como outros pesquisadores perceberiam mais tarde. Num exemplo dramático, Walcott registrou que a opabínia, um dos fósseis mais esquisitos de Burgess Shale, tinha somente dois olhos, e não cinco (veja a ilustração na página anterior, em baixo).

Confusões anatômicas

A confusão foi possível porque a opabínia tinha sido esmagada por uma rocha e havia sido conservada quase como um decalque na pedra. Apesar disso, Walcott não estava disposto a ver traços anatômicos diferentes dos que conhecia, diz o biólogo e historiador da ciência americano Stephen Jay Gould. Em 1989, Gould publicou um livro excelente sobre o assunto, intitulado Vida Maravilhosa. Aí, ele explica que Burgess Shale continha pelo menos oito espécies que não podiam ser classificadas em nenhum dos grupos de animais conhecidos. Eram amostras da força criativa empregada pela natureza quando começou a transformar os antigos micróbios de uma única célula em seres complicados, feitos de milhões de células.

Na década de 60 os erros de Walcott começaram a ser corrigidos, especialmente pelos paleontólogos Harry Whittington, da Universidade Cambridge, e seus ex-alunos Derek Briggs e Simon Conway Morris. Eles agiram com muita habilidade, separando o melhor possível as partes dos fósseis triturados. Não queriam confundir uma garra com uma pata, nem deixar de ver um olho, como Walcott fizera. Também tomaram o cuidado de não fazer classificações apressadas, de não aplicar uma camisa-de-força num fóssil de modo a enquadrá-lo nas categorias existentes. Se não tinham certeza absoluta sobre as características de um animal, anunciavam que ele não pertencia a nenhum tipo conhecido.

Mesmo assim, havia poucos espécimes de cada bicho e alguns erros só foram corrigidos nesta década. Como a forma exata da hallucigênia, cujas patas foram interpretadas como tentáculos nas costas do fóssil. Na verdade, haviam posto a hallucigênia de cabeça para baixo (ela ainda aparece assim no livro de Gould). Outro enigma foi o anomalocaris: como sua boca era sempre encontrada longe do resto do corpo, foi vista como uma outra criatura (veja mais detalhes sobre a hallucigênia e o anomalocaris nas páginas seguintes). Briggs e Morris chegaram a publicar uma ilustração na revista americana Scientific American onde a boca do anomalocaris aparece flutuando sozinha no mar, classificada como um ancestral das esponjas-do-mar.

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Os enganos talvez não tenham sido todos eliminados, mas já não dúvida nenhuma de que a explosão do Cambriano foi um fato e vai modificar consideravelmente a maneira como enxergamos a teoria da evolução.

Evolução fica parecida com um jogo de sorte

A revolução dos animais no período Cambriano coloca os paleontólogos diante de um grande ponto de interrogação: será que a natureza segue algum plano ao construir novos seres? Que mecanismo teria levado ao aparecimento de tantos organismos, tão diferentes entre si, e todos de uma tacada só? A resposta definitiva ainda deve esperar alguns anos de trabalho, com toda a certeza. Mas algumas idéias já estão tomando forma. Para início de conversa, é preciso apagar o conceito de que a natureza obedece a um plano de ação. Não existe uma fórmula para se produzir novas espécies.

Não dá nem para dizer que a evolução avança do mais simples para o mais complexo. As criaturas do Cambriano são tão elaboradas quanto qualquer ser do presente. De certo modo, a complexidade daquela época era maior do que a de hoje, já que havia maior variedade de modelos. Entenda bem: tudo indica que o número de espécies aumentou com o tempo. Mas houve uma grande redução na quantidade de filos. Atualmente o reino animal é dividido em cerca de 30 filos. No cambriano o número pode ter sido de 40 ou 50.

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Mas se não há um plano geral da natureza, deve haver um outro meio de explicar o que aconteceu no passado, raciocinam os teóricos. Um deles, o americano Stu Kauffman, da Universidade da Pensilvânia, passou muito tempo pensando no assunto e acredita ter encontrado uma saída. Para ele, a evolução lembra um jogo de apostas com regras bem definidas. Imagine que num certo momento está para surgir um novo animal. Se ele for de um novo filo, a natureza faz uma grande aposta, pois implica em montar um organismo muito diferente de todos os existentes. Já a criação de uma espécie, que exige poucas modificações num organismo, é uma aposta pequena.

Quando o risco compensa

Esse, então, é o jogo. O que faz a natureza? Ela põe todas as fichas na aposta maior, responde Kauffman, porque o prêmio é maior. Prêmio significa explorar melhor os recursos disponíveis no meio ambiente. E ela age assim porque sempre dá certo, explica o cientista. É possível provar que, em todos os jogos montados dessa maneira, é vantajoso arriscar muito. O problema é que a estratégia não dura. Depois de uns poucos lances a vantagem cai para zero, não se ganha nada com modificações profundas nos organismos. A biologia passa a pensar pequeno e a longo prazo, tentando recompor os ganhos com a criação de espécies (ou de outras classificações menores que os filos).

O esquema dos jogos se encaixa perfeitamente com os acontecimentos do Cambriano. Não é ainda uma teoria, explica Kauffman. É só um exercício teórico, uma maneira de enxergar o problema. Mesmo assim, essa é a cara com a qual a teoria da evolução começa a ficar, na opinião de muitos cientistas. A antiga concepção, de aperfeiçoamento vagaroso e contínuo dos organismos, é rígida demais para dar conta dos fatos tal como estão sendo observados com a ajuda dos fósseis. O mundo real é muito mais flexível, e a biologia está sempre interagindo com o ambiente. E as soluções que encontra, ao contrário do que levava a crer o esquema antigo, não são úteis para sempre. Prova disso é que um grande número de filos, muito bem adaptados aos mares rasos do Cambriano, desapareceram sem deixar marcas nos organismos futuros.

Isso levanta um outro enigma: por que a explosão do Cambriano aconteceu exatamente há 543 milhões de anos, e não numa outra época qualquer? Esse é um problema prático, mais do que teórico. E terá que ser respondido também na prática, por meio de uma investigação detalhada sobre o clima e sobre a composição química dos oceanos naquele período. O gatilho do estouro provavelmente está em uma alteração brusca dessas condições. É um trabalho que, como a reforma da teoria, também vai levar tempo aos pesquisadores. Mas agora que se sabe precisamente o momento das mudanças, a demora não deve ser muito longa. Basta concentrar os esforços nos anos imediatamente anteriores ao Cambriano.

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Para Saber Mais

Vida Maravilhosa, Stephen Jay Gould, Companhia das Letras, São Paulo, 1990

O Relojoeiro Cego, Richard Dawkins, Edições 70, Lisboa, 1988

Trinta figurinos

Veja como se classificam os animais por filos

Há na Terra 1 milhão de espécies catalogadas (o número real pode chegar a 10 milhões). Mas, por incrível que pareça, só existem trinta modelos fundamentais de corpo. Qualquer animal pode ser classificado de acordo com o figurino que usa. Esse critério define os filos. Por isso, o número de filos gira em torno de trinta. Veja na página seguinte o nome de alguns dele significam.

Campeões do cambriano

O filo mais comum no Cambriano foi o dos artrópodes. Incluía insetos, lagostas, aranhas e trilobites (já extintos). Sua marca: corpo segmentado e artculações nas patas e pinças. Outro filo importante, o dos moluscos, hoje reúne ostras e polvos. Sua distinção é a casca (até os polvos têm dentro do corpo).

Lençóis vivos

O filo dos poríferos, das medusas, esponjas-do-mar e águas-vivas, talvez seja o mais antigo de todos. Quase não há corpo: algumas esponjas são meras “toalhas” de células que, a rigor, não formam orgãos de verdade. Flutuam no mar ou ficam presas a rochas filtrando os microorganismos. É sua refeição.

A coluna define o corpo

Cordados é o nome do filo do homem e dos bichos mais conhecidos, dos mamíferos às aves e aos peixes. O traço marcante é a coluna vertebral. Tudo indica que já havia cordados no Cambriano: eram parecidos com lesmas, como a pikaia, achada no Canadá, ou o yunnanozoon, encontrado no China.

A dinastia dos vermes

Minhocas, lombrigas e sangues sugas têm a forma mais popular de todas: simplesmente um tubo. As variações desse modelito singelo (tubos redondos, achatados, com espinhos etc) dão origem a dez filos. Os mais comuns são o dos anelídeos, o dos nematóides, o dos platelmintos e o dos asquelmintos.

O prêmio de originalidade

Vai para as estrelas-do-mar, do filo dos equinodermos. O corpo tem simetria radial, ou seja, é organozado de dentro para fora, geralmente como um pentágono (há estrelas-do-mar de até ciqüenta pontas). Também são radiais, com modificações, os filos dos cnidários (corais e anêmonas) e dos ctenóforos.

A revolução dos bichos

De uma vez só, surgiram os ancestrais de todos os animais que existem e muitos mais.

A explosão do Cambriano

Foi quando surgiram todas as grandes categorias de animais existentes. Também tiveram origem organismos que não podem ser enquadrados em nenhuma dessas categorias, chamadas filos. Estes bichos estranhos fizeram parte da febre criativa da evolução nesse período, e se extinguiram uns poucos milhões de anos depois. Veja nas páginas seguintes mais informações sobre essa fauna fantástica.

Entre o homem e o caranguejo

De corpo mole e uma carapaça dura na cabeça, o nectocaris flutuava um pouco acima do leito do oceano

Pescoço e cabeça

Eram como a dos artrópodes (grupo dos siris e caranguejos). Mesmo assim, não há sinal de seus apêndices (pinças) serem articulados como os dos artrópodes. O corpo parece o de um cordado, o grupo a que pertencemos.

Aspirador no nariz

A tromba que a opabínia usava levar a comida à boca era parecida com o tubo dos aspiradores de pó.

Risadas de perplexidade

Foi a reação causada pela opabínia ao ser apresentada pelo americano Harry Whittington à Sociedade Paleontológica, em Oxford. Seu apêndice frontal é bizarro. Não há nada igual no mundo de hoje. Os cinco olhos também causaram espanto. O bicho merece uma categoria à parte no reino animal.

Nadador enigmático

Só se achou um fóssil do odontogrifus até hoje. Ele pode ter tido tentáculos na boca, ainda não encontrados.

Dentes que não mordiam

O mais estranho são os 25 “dentes” em volta da boca, muito frágeis para morder ou raspar. Podem ter sido suportespara hipotéticos tentáculos. O problema é que os bichos atuaisque têm tentáculos não os apóiam em partes duras como os dentes.

Pétalas falsas

O dinomischus tinha algumas características dos vermes. Mas não era verme nem flor.

Estômago e músculos

O aparelho digestivo em forma de “u” (veja o desenho) lembra o dos chamados vermes entoproctas. Mas o corpo, que tinha até músculos era diferente do corpo de qualquer organismo conhecido.

De cabeça para baixo

A hallucigênia já foi virada de cabeça para baixo e de cabeça para cima duas vezes. Agora está na posição certa

Alucinação sobre patas

Cabeça bulbosa, espinhos nas costas e patas esquisitas, lembrando minhocas presas no corpo. A hallucigênia não pode nem ser comparada com seres modernos. Vai ser preciso criar uma categoria só para ela.

Tentáculos e nadadeiras

Com essa mistura de traços, a amiskwia não pode ser colocada em nenhum dos grupos conhecidos de animais.

Salada de verme com siri

Criatura gelatinosa e achatada. Poderia ser classificada num grupo de vermes chamados quetógnatos. Mas estes têm dentes e um capuz na cabeça, dois traços ausentes no fóssil. Seus tentáculos centrais lembram as pinças dos siris, mas eram moles e não duros como as pinças.

O primeiro terror dos mares

Maior predador do cambriano, o anomalocaris nadou pelo mundo todo. Seus fósseis são vistos da China ao Canadá.

Camarão estranho

É o significado do seu nome. A semelhança com o camarão existe, mas não é real. Nem os camarões nem seus parentes próximos têm apêndices para levar comida à boca, como os do anomalocaris.

Tanque submerso

A wiwaxia deve ter sido a principal presa do anomalocaris (veja ao lado). Daí a sua pesada armadura

Placas e espinhos

A placa da wiwaxia não é totalmente incomum. Há vermes assim atualmente, chamados poliquetos. Mas os poliquetos têm segmentos ao longo do corpo, e a wiwaxia é um bloco só, sem divisões internas ou externas. Já não existe nada igual a ela no mar.

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