Fóssil de Lucy, de 3,18 milhões de anos, sai da Etiópia para exibição inédita
Raramente fora do país de origem, os 52 fragmentos ósseos da Australopithecus podem ser vistos no Museu Nacional de Praga até 23 de outubro.

Pela primeira vez, os fósseis originais de Lucy – célebre ancestral humana de 3,18 milhões de anos – deixaram a Etiópia para uma exibição na Europa. Desde esta segunda-feira (25), os 52 fragmentos ósseos da Australopithecus afarensis podem ser vistos no Museu Nacional de Praga, em uma mostra que ficará aberta até 23 de outubro.
Lucy está acompanhada de Selam, fóssil de uma menina Australopithecus que viveu cerca de 100 mil anos antes dela. Descoberta em 2000, Selam também nunca havia saído da Etiópia.
O primeiro-ministro tcheco, Petr Fiala, descreveu a exposição como um “momento histórico extraordinário”. “Considero um grande sucesso termos conseguido trazer estas exposições únicas para a República Tcheca e aprecio a enorme confiança que a Etiópia nos demonstrou”, disse em comunicado.
Já o ministro do Turismo da Etiópia, Selamawit Kassa, ressaltou à AFP que o país abriga “um registro fóssil contínuo de ancestrais humanos que se estende por seis milhões de anos, incluindo 14 espécimes que vão do Australopithecus ao Homo sapiens”.
Para ele, a exibição conjunta de Lucy e Selam reforça a posição da Etiópia como “terra da origem humana”.
Os fósseis foram emprestados pelo Museu Nacional da Etiópia, em Adis Abeba, e a exibição integra a mostra “Human Origins and Fossils” (Origens Humanas e Fósseis, em tradução livre), que percorre quase sete milhões de anos de evolução humana.
Além de Lucy e Selam, a exposição reúne moldes de fósseis raros, achados arqueológicos da Europa e modelos hiper-realistas de hominídeos produzidos pela escultora francesa Élisabeth Daynès.

A história de Lucy
Em 24 de novembro de 1974, sob o sol escaldante da região de Afar, na Etiópia, o paleoantropólogo Donald Johanson caminhava sobre sedimentos de 3,2 milhões de anos. Procurava fósseis de animais pré-históricos quando avistou um fragmento de osso no chão.
“Era uma parte do cotovelo e parte do antebraço. Percebi imediatamente que era de um ancestral humano. Não era de um antílope. Não era de um babuíno. Não era de nenhum outro tipo de animal”, contou Johanson à CNN, em 2024.
Ao lado do estudante de pós-graduação Tom Gray, ele logo identificou outros fragmentos espalhados pela encosta: partes do crânio, da pelve, do braço e da perna.
Naquela noite, no acampamento, a equipe ouviu o álbum dos Beatles Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Quando tocou Lucy in the Sky with Diamonds, alguém sugeriu dar esse nome ao fóssil recém-encontrado.
“Por causa da delicadeza dos ossos e da baixa estatura, sentimos que provavelmente era uma fêmea. O nome pegou imediatamente. Deu personalidade àqueles ossos e convidou o público a se interessar mais”, disse Johanson.
A escavação cuidadosa levou cerca de duas semanas e meia. A análise posterior revelou que Lucy era um Australopithecus afarensis, espécie que viveu entre 3,8 e 2,9 milhões de anos atrás na Etiópia. Tinha cerca de 1,06 a 1,10 metro de altura, pesava em torno de 28 a 29 quilos e morreu entre os 11 e 13 anos, idade considerada adulta para sua espécie.
Estima-se que 47 ossos foram preservados – cerca de 25 a 40% do esqueleto. Hoje, seus restos incluem fragmentos de crânio, dentes fossilizados, parte da pélvis e do fêmur.
Apesar da aparência que lembrava um chimpanzé – crânio pequeno, testa baixa e braços longos –, Lucy já caminhava sobre duas pernas. A forma da pelve, dos joelhos e dos tornozelos confirmava a locomoção bípede. “Isso reforçou a ideia de que caminhar ereto foi uma das pressões seletivas que impulsionou a humanidade”, explicou Johanson à BBC em 2024.
Por muito tempo, Lucy foi considerada a ancestral humana mais antiga já encontrada. Mas, em 1994, foi superada por Ardi, fêmea de Ardipithecus ramidus datada de 4,5 milhões de anos, também descoberta na Etiópia. Em 2001, outro achado ampliou ainda mais a linha do tempo: Toumai, um crânio de 6 a 7 milhões de anos encontrado no Chade.
Mesmo assim, Lucy manteve um papel central na paleoantropologia. Sua boa preservação permitiu, pela primeira vez, reconstruir com relativa precisão a aparência e o modo de vida de um Australopithecus. Nenhuma descoberta posterior atraiu tanto interesse público ou teve impacto tão profundo sobre o entendimento da evolução humana.
Estudos recentes ajudaram a traçar um retrato mais detalhado. Uma análise de 2016 apontou que Lucy tinha braços fortes, adaptados para escalar árvores, enquanto suas pernas eram relativamente fracas para caminhar longas distâncias. Outra pesquisa, baseada em uma fratura em um de seus ossos, sugeriu que ela pode ter morrido ao cair de uma árvore.
O ambiente em que viveu não era a savana aberta que se imaginava no passado, mas sim áreas florestais com clareiras. “Era uma área com arbustos abertos, frutas, nozes e outros alimentos, provavelmente roubando ninhos de pássaros, crocodilos, tartarugas”, disse Johanson à CNN. A dieta se expandia para incluir gramíneas, junco e possivelmente carne, o que ajudava a enfrentar um ambiente em transformação.
A vida em grupo também deixou marcas. Lucy era menor do que os machos de sua espécie, o que sugere sociedades poligâmicas, semelhantes às dos gorilas. Sua infância foi curta: atingiu a maturidade rapidamente e morreu ainda jovem, embora já fosse considerada adulta.
Mas permanece a pergunta: Lucy foi nossa ancestral direta? A questão ainda divide especialistas.
Estudos genéticos mostram que a separação entre humanos e chimpanzés ocorreu muito antes dela, talvez há 13 milhões de anos. Para Johanson, sua espécie “não deu origem direta aos humanos modernos, mas ocupou uma posição crucial na árvore genealógica, que levou a outras espécies de hominídeos, a maioria já extinta”.
Ainda assim, pesquisadores como Tim White, da Universidade da Califórnia, acreditam que o Australopithecus afarensis continua sendo o melhor candidato. “Estou confiante de que encontraremos fósseis desse intervalo”, afirmou à BBC.
Cinquenta anos depois, Lucy permanece como um ícone científico. “Ela deu início a uma nova fase na pesquisa das origens humanas. O mais importante foi que quebrou a barreira de 3 milhões de anos”, disse Johanson à CNN.
Seu legado foi abrir caminho para a descoberta de novas espécies e para a compreensão de que a evolução não foi linear, mas marcada por experimentações, cruzamentos e extinções.
A inauguração da exposição no Museu Nacional de Praga contou com a presença de Johanson e também do etíope Zeresenay Alemseged, responsável pela descoberta de Selam em 2000.
Em discurso, Johanson lembrou que foi na África que “nos diferenciamos dos macacos, nos erguemos pela primeira vez, nossos cérebros começaram a crescer e nós, Homo sapiens, evoluímos”.
E concluiu: “Todos compartilhamos um ancestral comum. Estamos unidos pelo nosso passado, e este é um lembrete extremamente importante para a humanidade hoje”.