Crimes de guerra
O Velho Testamento está cheio de referências a uma prática odiosa, mas muito comum naqueles tempos: o sacrifício de virgens e crianças
José Francisco Botelho e Ricardo Lacerda
O guerreiro Jefté, um dos 12 juízes de Israel, estava prestes a ir para a guerra contra os amonitas quando resolveu invocar a ajuda do Todo-Poderoso: “Se me entregardes nas mãos os amonitas, aquele que sair das portas de minha casa ao meu encontro, quando eu voltar vitorioso (…) será consagrado ao Senhor, e eu o oferecerei em holocausto”. Jetfé venceu. E se arrependeu profundamente da promessa que fez. Quem primeiro veio ao seu encontro na volta para casa foi sua única filha – e o guerreiro viu-se obrigado a matá-la em nome de Deus.
Histórias como essa sugerem que o culto a Javé, Deus hebreu do Velho Testamento, frequentemente envolvia uma prática que, muito mais tarde, passaria a ser vista como atrocidade: o sacrifício humano. São várias as citações a esse tipo de oferenda na Bíblia. E o motivo é simples: segundo historiadores, o sacrifício de inocentes para pedir uma vitória no campo de batalha ou agradecer uma campanha militar bem-sucedida já foi uma das mais corriqueiras “transações” entre o céu e a terra.
Entre os antigos hebreus, qualquer oferenda que envolvesse sangue era chamada de holocausto – sim, é daí que vem o nome atribuído ao genocídio que os nazistas cometeram durante a 2ª Guerra Mundial. “Existia entre os israelitas daquele tempo o conceito de asham, um pagamento a Deus”, diz o historiador Otávio Zalewski, especialista em estudos bíblicos. “Todo pecado ou ofensa à vontade divina gerava uma dívida, que só podia ser quitada com sangue.” Ou seja: acreditava-se que, passando a faca no pescoço de uma pessoa ou de um animal, obtinha-se a redenção.
Vários outros povos da Bíblia também adotavam essa prática – entre eles, cananeus, filisteus, gregos e babilônios. Em muitos casos, a oferenda não passava de uma cabra ou uma ovelha – geralmente jovem e sem defeitos físicos, que era degolada e queimada logo em seguida numa fogueira. Havia, no entanto, sacrifícios bem mais chocantes, envolvendo até crianças. “Era a crença de que só se podia ofertar a Deus algo puro”, explica Humberto Maiztegui Gonçalves, doutor em Teologia pelo Instituto Ecumênico de São Leopoldo (RS). “O sacrifício de crianças ou mulheres virgens seguia essa lógica.”
Eram tão comuns os sacrifícios humanos que um lugar acabou ficando famoso por concentrá-los: Tofet. Supostamente localizado em Geena, um vale bem perto de Jerusalém, era nesse local que os cananeus faziam seus rituais dedicados ao deus que chamavam de Moloch – uma figura antropozoomórfica, com corpo de gente e cabeça de touro. Em cerimônias cheias de pompa e circunstância, eles queimavam crianças num incinerador que tinha o formato da divindade. Não por acaso, “geena” se transformou no termo hebraico para designar “inferno”.
JEREMIAS 7:32
Eis que virão os dias – oráculo do Senhor -, em que não mais dirá Tofet, nem vale do Filho de Inom, mas vale do Massacre, onde, por falta de lugar, serão enterrados os mortos em Tofet.
QUASE DEGOLADO
Segundo o livro bíblico Gênesis, Deus resolveu testar a obediência de Abraão – o patriarca dos judeus – de uma forma um tanto extrema: “Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac; e vai à terra de Moriá, onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes que eu te indicar”. Abraão obedeceu: amarrou Isaac e já estava erguendo a faca para degolá-lo quando um anjo segurou seu punho, impedindo-o de praticar o infanticídio. E uma voz veio do céu: “Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu próprio filho, teu filho único.”