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Corpo – A boa educação

A transexual Luma Andrade enfrentou a pobreza do sertão, a rejeição da família e o preconceito no trabalho para se tornar supervisora de 26 escolas e fazer doutorado em educação. O próximo passo? Se depender de sua vontade, a Sorbonne

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h29 - Publicado em 9 Maio 2012, 22h00

Willian Vieira

A vida não era fácil naqueles anos 70 em Morada Nova, cidade de 60 mil habitantes no meio da caatinga do Ceará. Mas foi ainda mais difícil para o único filho homem do segundo casamento de dona Maria Nogueira Gomes. O casal de agricultores analfabetos não sabia lidar com a especificidade do pequeno João.

“E eu já sentia a singularidade de ser feminina. Quando saía com meu pai, todo mundo dizia: `Ai, que menina bonitinha¿. Aí ele ficou com vergonha e não andou mais comigo.” Triste. Mas quem conta, sem rancor nem autocomiseração, é a sorridente Luma Andrade, uma mulher que ostenta o título de primeira transexual doutoranda do país.

O percurso até aí foi longo e tortuoso. Luma, ainda como João, se interessou pelos estudos cedo, mas sofria bullying na escola. Apanhava dos meninos por brincar com as meninas. Aos 9 anos, foi espancada. Ao reclamar à professora, ouviu a seguinte frase: “Quem manda você ser assim?”

Luma não ia ao banheiro; não sabia a qual ir. “Às vezes eu nem me concentrava na aula, de tanta vontade de fazer xixi. Só ia escondida.” Apesar de sentir atração por rapazes, Luma não se via como homossexual. “Então acabei canalizando a questão da sensualidade para os estudos.” Até Deus entrou na história. Aos 14 anos, ela decidiu frequentar uma igreja evangélica com a avó. Lia a Bíblia todos os dias. “Mas fiquei assustada com a construção da ideia de pecado.” Ela ainda procurou a Igreja católica. “Mas logo vi que esse Deus não me amava como eu era.”

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Aos 18 anos, já com os cabelos compridos e roupas femininas, entrou na faculdade, para estudar ciências. Comprava tecido e mandava fazer, escondida da família. Vestia-se na rua. E começou a dar aulas em uma escola. Foi Luma terminar a graduação, aos 22 anos, e a família descobrir que ela tinha um namorado. Foi posta para fora de casa. E decidiu se assumir de vez e viver com o namorado, travestida. Luma então cita Michel Foucault, filósofo francês pós-estruturalista, para explicar sua tática. “Para tentar ascensão social, é preciso entrar na engrenagem, ganhar respeito, evitar bater de frente. Foi o que eu fiz.”

Para fazer a pós-graduação, tentou transferir-se para uma escola perto. O diretor não a aceitou, e Luma recorreu à Secretaria da Educação. “No início, achavam que era brincadeira. Olha o viadinho, os alunos diziam. Mas aí eu contava minha história de vida. E, aos poucos, começavam a me respeitar.”

Luma então começou um mestrado em meio ambiente. O bolso apertou, e ela se viu confrontada com a realidade de travestis brasileiros. Uma colega de infância lhe ofereceu um emprego de prostituição. “Ela dizia: `Vamos para a Itália. Em um mês você vai ganhar o que faria aqui em um ano¿.” Mas Luma recusou a proposta. Em 2003, fez um concurso para ensinar biologia e ficou em primeiro lugar. A escola, em Aracati, não quis lhe dar a vaga. E lá foi Luma recorrer à Secretaria de Educação.

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Um ano depois, pôs próteses de silicone nos seios. Como foi a aceitação ao seu redor? Preconceito. Ela teve de enfrentar uma denúncia de decoro de uma supervisora, que a acusou de se mostrar aos alunos. Luma fez um abaixo-assinado entre a comunidade e conseguiu se defender. Melhor, deu início a um projeto de prevenção ao câncer de mama entre alunas e mães. Ganhou um prêmio nacional – ela conta que recebeu um prêmio do ministro da Educação, além de um cheque de R$ 20 mil que cedeu à escola para montar um laboratório de ciências. O reconhecimento continuou. Em 2007 virou supervisora de 26 escolas da região de Russas, no Ceará. E, em 2008, foi aceita no doutorado em educação, para estudar a condição dos travestis no ambiente escolar.

Claro, também houve dificuldades. Num concurso de professora universitária, foi reprovada por uma banca evangélica. Não conseguiu ser aceita noutro. E voltou à Justiça.

Hoje é assessora técnica da Secretaria da Educação do Ceará. Mora com o namorado. Mudou o nome de batismo na Justiça – é Luma Nogueira de Andrade o que aparece em seu currículo na plataforma Lattes. O próximo passo, diz, é um pós-doutorado na França – “Cogito a Sorbonne, onde Foucault deu importantes seminários” – e uma cadeira definitiva de professora universitária. Até lá, segue como uma referência na região de Russas, onde fundou a Associação Russana da Diversidade Humana, que defende travestis ameaçados.

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