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Buda: uma breve introdução ao mundo de Sidarta Gautama

Ele tinha um harém de 84 mil concubinas, e era campeão de natação e sudoku. Aos 29, largou tudo para virar jedi. Tipo isso.

Por SUPER
Atualizado em 19 set 2023, 15h01 - Publicado em 29 fev 1988, 22h00

Buda percorria certa vez um caminho quando um homem, percebendo que estava diante de um ser incomum, perguntou para ele:

– Você é um deus?

E Buda respondeu:

– Não.

É um homem?

– Não.

– Quem é você, então?

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E Buda respondeu:

– Eu estou acordado.

Esta pequena lenda talvez resuma todo o sentido da vida de Sidarta Gautama, o Buda, título que significa, justamente, “O desperto”. Entender o que esse despertar quer dizer, porém, é algo que, segundo os budistas, está além das palavras.

Também chamado Sakyamuni, que quer dizer “O santo do clã dos Sakya”, Sidarta nasceu provavelmente no século 6 a.C, no então principado indiano de Kapilavastu, um lugar cravado no Himalaia, e que hoje está dentro das fronteiras do Nepal.

Como a de Jesus Cristo, sua biografia está de tal forma amalgamada com o mito que se torna praticamente impossível separar vida e lenda. Mas vamos a ela, de qualquer forma.

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A história de Sidarta

Sidarta nasceu príncipe. Seu pai, Sudohodana, era o rajá de Kapilavastu.  A casta de origem dele, a dos guerreiros, não ocupava o topo da rígida hierarquia indiana. O poder pertencia aos brâmanes, os sacerdotes. Quando Sidarta nasceu, a casta dos guerreiros contestava a estrutura social dominada pelos brâmanes. O nome da localidade natal de Sidarta, Kapilavastu, significa “Morada de Kapila”.

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Fundador do Sankhyan, sistema filosófico que influenciou fortemente o budismo e também o ioga clássico, Kapila dizia que uma das mais perniciosas servidões humanas é a daqueles que tem de dar presentes aos sacerdotes. Os ecos do pensamento desse antecessor estão claramente presentes na doutrina do Buda, que condenou o sistema de castas da Índia.

Por unta série de complexas razões históricas, o budismo não se enraizou na Índia, embora tivesse conquistado espiritualmente quase todo o Extremo Oriente. Destino de certa forma semelhante ao do cristianismo, que não foi aceito pelos judeus, mas espalhou-se pelo mundo.

Também como na biografia mítica de Cristo, a concepção e o nascimento de Buda estão cercados de condições sobrenaturais. O nome de sua mãe é Maya. Na mitologia indiana, “Maya” é a força mágica que criou o “Universo ilusório” (que é como o budismo chama este Universo aqui mesmo, o de verdade, onde você está agora). Um dia, enfim, Maya sonhou que entrava em seu flanco um elefante branco com a cabeça cor de rubi e seis presas.

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(Getty Images/Reprodução)

Essa foi a concepção de Sidarta. A imagem tem evidentes conotações simbólicas: o elefante, na Índia, representa a mansidão, a paz; seis, o número de presas, simboliza as dimensões do espaço, na interpretação indiana: norte, sul, leste, oeste, para cima e para baixo.

No corpo de sua mãe, o futuro Buda espera rezando a hora de seu nascimento, que se dará pelo flanco direito de Maya. Quando nasce, tem a pele de cor dourada, altura igual à extensão dos braços abertos, uma coroa orgânica no alto do crânio, pestanas de boi, quarenta dentes alvíssimos e unidos, membranas interdigitais e centenas de formas desenhadas nas plantas dos pés.

A narrativa tradicional descreve o Buda como belíssimo – algo que o cristianismo jamais se preocupou em fazer. O irônico é que a imagem dele no Ocidente é outra, a de um bonachão gordinho que gosta de ter a barriga acariciada. Isso se deve a uma confusão entre a sua figura e a de uma divindade mitológica chinesa: o Budai, um moge do século 10 – que viveu, portanto, 1500 anos depois do Buda original, magrão.

Maya morreu sete dias depois do parto e Sidarta foi criado por uma tia, Mahaprajapati, que se tornaria a primeira monja budista. Sabendo que estava destinado a seu filho um futuro excepcional, diz ainda a lenda, Sudohodana fez construir para ele três palácios, dos quais excluiu tudo o que pudesse lembrar os males do mundo.

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O harém do futuro Buda tinha 84 mil mulheres, e ele era o primeiro em todas as competições: de caligrafia, de natação, de gramática, de botânica, diz a mitologia indiana.

A narrativa indiana, que se caracteriza por exagerar os fatos (como os filmes de Bollywood tão bem refletem), se excede em exuberância ao descrever o fausto da juventude de Sidarta. Seu harém tinha 84 mil mulheres e ele era o primeiro em todas as competições: de caligrafia, de natação, de gramática, de botânica. Aos 19 anos, Sidarta se casa com sua prima Yasodhara e vive mais dez anos nesse mundo de idílica felicidade e requintada satisfação dos sentidos.

Da união com Yasodhara, nasce seu filho Rahula. Mas essa vida privilegiada seria bruscamente sacudida, segundo a tradição, em três passeios que Sidarta fez fora dos limites de seus palácios. Na primeira, viu um homem de aparência decrépita que precisava apoiar-se num bastão para caminhar. O cocheiro de Sidarta explica que se trata de um velho e que o destino de todos os homens é se tornar um dia como ele.

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Na segunda, vê um homem com o corpo corroído pela lepra; o cocheiro explica que é um doente e que qualquer pessoa está sujeita a esse mal. Na terceira, vê um defunto transportado em cortejo fúnebre; o cocheiro explica que é um morto e que a morte é o fim para o qual caminham todos os seres vivos. O impacto dessas três visões tumultua os pensamentos de Sirdarta e ele decide partir em busca do esclarecimento. Deixa para trás os palácios, as mulheres, o filho e cavalga rumo ao Oriente.

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Quando Sidarta vira Buda

Como São Francisco de Assis na Itália do século 13, se desfaz das roupas. Entrega seu cavalo ao criado que o acompanhara e corta os cabelos. Sozinho, decide iniciar uma nova vida. Tem 29 anos de idade.

Como São Francisco de Assis na Itália do século 13, se desfaz das roupas. Entrega seu cavalo ao criado que o acompanhara e corta os cabelos. Sozinho, decide iniciar uma nova vida. Tem 29 anos de idade. Um asceta (uma espécie de eremita que larga tudo em busca da elevação espiritual) lhe entrega os únicos pertences: um manto, um cinto, uma navalha para raspar os cabelos, uma tigela para esmolas e uma peneira para filtrar a água (uma justificativa mitológica para o “uniforme” tradicional dos monges budistas mendicantes).

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Sidarta parte em busca dos grandes mestres espirituais da época, homens como Alara Kalama e Uddaka Ramaputta, mas estes não conseguem satisfazer suas dúvidas. A tradição procurará apresentar todos os elementos essenciais da doutrina budista como uma descoberta pessoal do Buda, decorrente de sua iluminação. Mas, se há elementos que realmente lhe são próprios e inconfundíveis, há também a influência da filosofia Sankhyan e do hinduísmo, expresso nos Vedas, a antiquíssima coleção de textos religiosos da Índia, que começou a ser composta 1.200 anos antes de Buda.

Desta influência, e  de outras sínteses posteriores, se formaram a cosmologia e a mitologia budista. Abandonando seus mestres, Sidarta refugiou-se por seis anos no bosque de Sena, território de Magadha. É uma região escolhida pelos eremitas para afastar-se dos apelos do mundo. Ali, junto a cinco companheiros, Sidarta se dedica à auto-mortificação. Faz jejuns prolongados; quando come, sua alimentação se resume a frutos; permanece dias seguidos imóvel em posição de meditação, castigado pela chuva ou pelo sol (o cristianismo, que é tão distante no tempo da época de Buda quanto o McDonald’s é distante de Pedro Álvares Cabral, tem um episódio parecido, quando Jesus passa 40 dias no deserto, numa jornada de amadurecimento).

À sombra de uma figueira, ele vive a “experiência da iluminação” – a que lhe teria dado consciência da verdade absoluta por trás do Universo.

Enfraquecido física e mentalmente, enfim, Sidarta percebe que essas práticas não o aproximam do que mais procura – as respostas para os sofrimentos do mundo. Então deixa os companheiros, banha-se no rio Nairanjana e se fortalece com o alimento oferecido por uma aldeã. Depois, senta-se à sombra de uma figueira sagrada para meditar. Ali vive a experiência da iluminação que lhe teria dado consciência da verdade absoluta por trás do Universo.

Segundo o relato tradicional, ele vê, simultaneamente, os infinitos mundos do Universo: suas encarnações anteriores e as de todos os outros seres, a concatenação de todas as causas e efeitos.

Ao amanhecer, intui as “Quatro Verdades Nobres”, colunas-mestras do budismo:

1) O sofrimento é inerente a toda forma de existência;

2) A ignorância é a origem do sofrimento;

3) Pela extinção da ignorância é possível extinguir o sofrimento;

4) O caminho que leva a isso é equidistante da entrega aos prazeres e apelos do mundo e dos rigores do ascetismo e da auto-mortificação. Buda, aliás, vai referir-se a esse caminho médio com a metáfora de um alaúde, cujas cordas não podem estar nem muito frouxas nem muito tensas para que ele produza o som adequado.

Depois do episódio da iluminação, Sidarta se torna o Buda. E também adota o título de “Tatágata” (aquele que veio da verdade). Procurou seus cinco ex-companheiros de ascetismo e os converteu numa única pregação. Em seguida converteu os irmãos Kassapa, adoradores do fogo, e os brâmanes Sariputra e Moggollana, que serão seus mais importantes discípulos. É o início da Sangha, a comunidade budista, que justamente com o Buda e o Dharma, a doutrina, forma as “Três Jóias” do budismo.

Estátua de Buda
(Getty Images/Reprodução)

 

Diz a lenda que o Buda comunicou sua doutrina também aos nagas, serpentes com face humana que habitam o mundo subterrâneo, e aos deuses dos vários céus, que, apesar de suas vidas imensamente longas, ou talvez exatamente por causa delas, são incapazes de chegar sozinhos à iluminação. Por 45 anos, o Buda perambulou ensinando.

A região nordeste da Índia, que acolheu em primeiro lugar os seus ensinamentos, vivia então uma época de crise. Não havia centralização política: a antiga unidade tribal fora rompida pelo surgimento e expansão de vários pequenos reines. A religião predominante, o bramanismo, que cultuava um deus criador (Brahma) era contestada por numerosos movimentos organizados em torno de mestres carismáticos. Mais do que tudo, os unia uma oposição ao sistema de castas que dividia (e ainda divide) a sociedade indiana, assegurando os privilégios da elite sacerdotal. Em suma: o budismo primitiva era mais um desses movimentos rebeldes.

E o que mais vingou. No rastro da pregação de Buda, formou-se uma numerosa comunidade de monges e monjas que renunciaram aos bens materiais e às atividades profissionais para viver de esmolas, meditar e pregar a doutrina do desapego. Entre os convertidos pelo Buda estava seu filho, Rahula.

Indo e vindo infinito

Três marcas são características do budismo: as noções de impermanência, ou seja, todos os fenômenos são efêmeros, sujeitos à contínua transformação; insubstancialidade, isto é, os seres não possuem qualquer núcleo estável que determine sua natureza, mas são uma complexa e sempre cambiante teia de relações; e nirvana, o estado de extinção dos sofrimentos que se manifesta quando o homem compreende profundamente a impermanência e a insubstancialidade, e se libera de sua “ilusão de eu” e dos apegos egoístas que ela engendra.

Ao contrário do cristianismo, o budismo não acredita num deus criador: os infinitos universos de sua cosmologia passariam por um processo também infinito de destruição e criação, sem começo nem fim, regido por uma lei eterna. Os seres que povoam cada um desses universos  e que podem assumir a forma de animais, homens, deuses e demônios estariam sujeitos a sucessivos nascimentos e mortes.

Não há propriamente uma alma imortal: são as ações, palavras e pensamentos de uma existência que tecem a trama (karma) que determina a existência futura. Esse processo é considerado extremamente doloroso, e escapar dele deve ser o fim visado por todos os seres. Eles têm a oportunidade rara de consegui-lo apenas quando renascem na forma humana e conseguem desapegar-se totalmente do mundo ilusório. Libertar-se é atingir o nirvana, a cessação de todos os desejos, a suprema e eterna paz.

Bom, de acordo com a tradição, Buda superou o samsara, o mundo das aparências, e encontrou o nirvana em sua iluminação sob a figueira. Segundo a doutrina, ele atingiu o “nirvana pleno”, só após sua morte. O líder religioso teria falecido numa idade bem avançada. Mas a lenda diz que essa morte foi apressada pela ingestão voluntária de comida podre, oferecidos por um ferreiro, numa aldeia chamada Pava.

Ele se preparou para morrer banhando-se pela última vez e esperou a consumação deitado sobre o lado direito, com a cabeça voltada para o norte e o rosto virado para o poente. Seu corpo foi cremado pelo discípulo Aranda e coberto com mel, uma forma poética de embalsamamento.

Como ocorreu com praticamente todas as grandes religiões, o budismo sofreu metamorfoses e divisões após a morte de seu fundador. O principal cisma, que tomou forma apenas 140 anos depois, foi entre a corrente Hinayana (Pequeno Veículo) e a Mahayana (Grande Veículo).

Essas denominações, também de acordo com a tradição budista, vêm de uma pergunta metafórica: no caso de um incêndio, como uma pessoa deveria se salvar? Num pequeno carro puxado por uma cabra, que Ihe asseguraria a salvação individual, ou num grande carro de bois, que Ihe permitiria levar muitos outros junto?

A corrente Mahayana responde com a segunda alternativa, e é amplamente predominante. Dela resultaram, através da fusão com numerosas tradições religiosas orientais, escolas tão diversas quanto o austero e filosófico zen japonês (derivado do chan chinês) e o exuberante lamaísmo tibetano.

Parabéns, Sidarta. Seja já quem o senhor tenha sido na vida real.

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