Análise de DNA desvenda mistérios do sacrifício de crianças maias
Cientistas revelaram como era a seleção para esses rituais religiosos – e, ainda, mostraram o impacto da colonização no genoma da população mexicana.
Chichén Itzá é hoje um ponto turístico e um dos mais importantes sítios arqueológicos da região de Yucatan, no México. Nos séculos passados, porém, era uma das principais cidades dos maias, o povo que habitava a região antes dos espanhóis chegarem. Por lá aconteciam rituais religiosos que envolviam o sacrifício de pessoas, especialmente crianças, uma prática que sempre chamou atenção de pesquisadores e arqueólogos.
Agora, uma equipe de cientistas desvendou mais detalhes sobre como funcionavam esses sacrifícios por meio de análises de DNA. Os pesquisadores acreditam, por exemplo, que descobriram como era feita a escolha de quais crianças seriam sacrificadas. O estudo foi publicado na revista Nature e traz, ainda, detalhes de como as doenças trazidas pelos colonizadores espanhóis estão escritas nos genes da população mexicana até hoje.
Sacrifícios humanos
A cidade de Chichén Itzá foi um dos principais centros urbanos maia, especialmente no período entre os anos 800 e 1000, quando outras populações maias localizadas em outras regiões estavam em declínio.
Já se sabia há décadas de que o povo maia fazia rituais religiosos que envolviam sacrifícios humanos. Esse costume religioso durou séculos nesta civilização pré-colombiana e era visto de forma bastante diferente de como pensamos hoje: é bem provável que os sacrifícios fossem considerados uma espécie de honra para os escolhidos, dizem os historiadores.
Também se sabia que Chichén Itzá era um importante local para isso. Nas ruínas da cidade, há inscrições que representam a prática, como desenhos de cabeças decepadas e sangue jorrando, por exemplo.
Mais importante que isso, porém, é o que arqueólogos nas últimas décadas encontraram: mais de 200 esqueletos, a maior parte de crianças, foram descobertos no chamado Cenote Sagrado, um poço natural localizado na cidade com 60 metros de diâmetro. Tudo indica que ali eram jogados os restos mortais das pessoas sacrificadas, possivelmente para homenagear Chaac, o deus das chuvas na mitologia maia. Mesmo assim, muitos detalhes da prática não estão claros até hoje.
No novo artigo, cientistas mexicanos e europeus usaram técnicas de análise de DNA em ossos de crianças coletados na região para ter mais respostas. As caveiras estudadas foram encontradas por trabalhadores que estavam construindo um aeroporto perto do Cenote Sagrado na década de 1960. Elas não estavam no poço natural em si, mas numa caverna próxima a ele – mais especificamente, numa estrutura chamada de chultún, que era um reservatório de água subterrâneo, semelhante a uma cisterna.
Mais de 100 indivíduos foram encontrados ali, a maioria crianças entre 3 e 4 anos, e esses restos mortais estão sendo estudados desde então. No total, os cientistas conseguiram extrair o DNA de 64 crânios. A datação estima que eles foram mortos entre os anos 500 e 900 d.C, ou seja, o estudo cobre um longo período de rituais religiosos.
A seleção para o sacrifício
Os resultados mostraram algumas coisas que surpreenderam os cientistas. Primeiro, todos os DNAs analisados eram masculinos. Segundo, e mais importante, vários dos indivíduos sacrificados tinham relações de parentesco próximas uns com os outros, possivelmente irmãos ou primos. Havia, inclusive, pelo menos dois pares de gêmeos entre os crânios analisados.
Os cientistas acreditam, então, que determinadas famílias ou linhagens eram consideradas mais propícias para a seleção de quem seria selecionado, e que muito provavelmente os parentes eram sacrificados juntos. Ter um irmão ou primo, então, poderia ser considerado um fato de risco – pior ainda se forem gêmeos.
O fato de haver gêmeos entre os escolhidos também faz sentido porque eles são figuras importantes na mitologia maia: Hunahpú e Ixbalanqué são dois irmãos gêmeos considerados os maiores heróis da religião deste povo. Na história épica da dupla, os irmãos são sacrificados, mas depois ressuscitam e ascendem ao status de divindades.
A equipe de cientistas acredita fortemente, então, que este mito influencie na seleção dos meninos sacrificados, priorizando irmãos.
Além disso, a análise química dos ossos encontrados sugere que as crianças que eram parentes entre si tinham uma dieta muito similar – sugerindo que ou cresceram na mesma casa ou que foram “preparadas” para o ritual com uma alimentação específica por um tempo antes de mortos.
Ter encontrado somente meninos na câmara também foi uma surpresa. Uma das primeiras teorias de como eram esses sacrifícios sugeria que os maias escolhiam mulheres jovens e virgens para os rituais, mas essa ideia foi descartada décadas atrás quando foi-se encontrando esqueletos de homens também. No poço do Cenote Sagrado, há restos mortais tanto masculinos quanto femininos.
Este estudo indica que, pelo menos para alguns tipos de rituais, provavelmente só meninos eram escolhidos, e parentes eram priorizados. Os pesquisadores lembram, porém, que nem todo ritual de sacrifícios necessariamente era igual – é possível, até provável, que houvesse diferentes tipos de critérios, dependendo de coisas como a época que ele ocorria, a região que estamos falando na civilização maia (que era grande, estendendo-se, em seu auge, do México até a América Central) ou para qual divindade aquela oferenda era realizada.
No caso, como os ossos encontrados seguiam o mesmo padrão, mas cobriam mais de 400 anos de história, os pesquisadores suspeitam que esses sacrifícios de meninos, com preferência para parentes, fazia parte de algum calendário religioso e acontecia numa certa frequência. Isto, porém, é uma hipótese.
Herança genética
A análise genética também demonstrou que os meninos sacrificados são parentes da população moderna que habita a região de Chichén Itzá nos dias de hoje, na cidadezinha de Tixcacaltuyub, indicando que, de fato, os mexicanos dessa região são descendentes diretos dos maias.
Mais impressionante, porém, foi que pesquisadores notaram a falta de uma mutação genética específica nos restos mortais das crianças sacrificadas, mutação essa que está sim presente nos habitantes modernos do local. Essa variação genética está relacionada diretamente à resistência contra a bactéria salmonela.
A equipe já suspeitava disso. Quando os espanhóis chegaram para colonizar o México, trouxeram consigo doenças inéditas que dizimaram a população local, que não tinha imunidade construída contra elas. Em 1545, especificamente, houve uma epidemia fortíssima de salmonela que matou a maior parte da população nativa da região de Chichén Itzá.
Os habitantes de hoje são descendentes dos poucos que tinham essa mutação genética que conferia maior proteção contra a doença, e por isso essa variação é encontrada no DNA deles, mas não dos meninos sacrificados.