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A face mística do Terceiro Reich

Como os nazistas se apropriaram da suástica, um símbolo usado por hindus e budistas, e criaram a estapafúrdia "Teoria do Gelo Cósmico" - que explicaria tudo o que acontece no Universo

Por Eduardo Szklarz
23 Maio 2018, 11h40

Uma das sementes do nazismo é uma corrente de pensamento que estava em voga na Áustria do século 19 – não por acaso, o lugar e o tempo em que o filho de dona Klara Pölzl e do seu Alois Hitler veio ao mundo. Estamos falando da “Ariosofia” – a “sabedoria sobre os arianos”. 

Seus líderes eram Guido von List e Jörg Lanz von Liebenfels, dois antissemitas raivosos e ultra-nacionalistas. Ambos pregavam a união de todas as populações de língua germânica da Europa, sob a liderança da Alemanha. Mas os ariosofistas tinham outras ideias também. A maior parte, completamente insanas. 

Eles evocavam uma era pré-histórica dourada, na qual sacerdotes ocultistas teriam governado sociedades compostas de super-homens. Esses líderes espirituais do passado praticariam o gnosticismo pagão, uma crença seguida por seitas heréticas que alegavam possuir a gnosis – um conhecimento esotérico especial. List gostava particularmente do conceito de dualismo dos gnósticos. Ou seja: da oposição entre luz e trevas, bem e mal, heróis e vilões, e assim por diante. Ele costumava dizer que o mundo material em que vivemos é intrinsecamente perverso e só o caminho espiritual poderia levar à salvação.

Para a Ariosofia, quem melhor sintetizava esse ideal pagão eram as tribos teutônicas, que haviam habitado o norte da Alemanha e a Escandinávia na Antiguidade. List, Lanz e outros teóricos racistas do século 19 às vezes se referiam aos teutônicos como “arianos”, “indo-europeus” e “nórdicos”. Pouco importava para eles a confusão que isso pudesse gerar na cabeça de quem os ouvia. O objetivo era um só: atribuir a um povo antigo, supostamente ligado aos alemães, a marca da superioridade racial. O ocultismo seria o único jeito de resgatar a força milenar dessa raça superior.

“Os ariosofistas diziam que uma conspiração de interesses antigermânicos, arquitetada principalmente por judeus, havia arruinado a sociedade gloriosa do passado em nome de um igualitarismo espúrio”, diz o historiador britânico Nicholas Goodrick-Clarke, uma autoridade no assunto, autor do livro The Occult Roots of Nazism (“As Raízes Ocultas do Nazismo”, inédito no Brasil). “O resultado teria sido uma decadência racial que jogou o mundo em guerras e crises econômicas. Seria preciso, portanto, recuperar os ensinamentos esotéricos e a virtude racial dos antepassados alemães a fim de criar um império pan-germânico.”

Para assumir o papel de guru do ocultismo, List se apropriou de vários símbolos ancestrais. Um deles foi a suástica, cruz que representava a boa sorte entre os antigos povos hindus e budistas. “List convenceu muita gente de que a suástica era um símbolo sagrado ariano, pois derivava do Feuerqidrl, a vassoura de fogo usada pelo deus germânico Mundelföri para criar o cosmos a partir do caos”, explica o historiador. O ocultista relacionou essa lorota ao Edda – compilação de mitos dos antigos nórdicos – e às runas – escrita nórdica usada em amuletos e rituais xamânicos. Para completar, ainda dizia ser um devoto de Wotan, o deus teutônico da guerra.

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Como se vê, a Ariosofia era uma tremenda salada, que ficou ainda mais temperada ao incorporar as ideias da russa Helena Blavatsky, fundadora da Teosofia. Essa corrente filosófica misturava hinduísmo, gnosticismo, esoterismo e espiritismo com uma visão meio torta da teoria evolucionista de Charles Darwin. No fundo, o que a russa queria também era exaltar a “pureza da raça ariana”. Blavatsky criou uma sociedade teosófica nos Estados Unidos em 1875. Quatro anos depois, embarcou para uma longa temporada na Índia, onde se “aperfeiçoou” em temas como imortalidade da alma, carma e reencarnação.

O ponto alto da carreira dela foi a publicação, em 1888, do livro The Secret Doctrine (“A Doutrina Secreta”), no qual ela rastreia as origens da humanidade seguindo as pegadas de raças que teriam vivido há milhares de anos em continentes mitológicos como Atlântida, Lemuria e Hyperborea. As ideias de Blavatsky se encaixavam perfeitamente no ideário ocultista de List e Lanz. Antissemitas até a raiz do cabelo, os três acabariam se transformando em profetas de uma “nova era” de domínio alemão. E influenciando o pensamento que, mais tarde, daria origem ao nazismo. 

Clima mitológico

Os ariosofistas permaneceram à margem da vida política alemã naquele final de século 19. Mas suas ideias, segundo Goodrick-Clarke, foram absorvidas no início do século 20 por líderes nacionalistas e antissemitas. Entre eles, o barão Rudolf von Sebottendorff, fundador do movimento Reichshammerbund (“Liga do Martelo”) – o nome vinha do jornal O Martelo, que o barão começou a editar em 1902. O tabloide, naturalmente, era o seu veículo para propagandear a tese de que os judeus eram o grande problema da Europa. E que a “inferioridade” deles tinha raízes biológicas. A Liga do Martelo, na prática, era um projeto de partido político. Mas o barão também fundou uma espécie de seita, a sociedade secreta Germanenorden (Ordem Germânica), que replicava os graus de iniciação da maçonaria. Várias sedes dessa sociedade, nos mesmos moldes das lojas maçônicas, surgiram em toda a Alemanha, ajudando a disseminar os ideais tresloucados de seu criador.

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Em dezembro de 1912, a Ordem Germânica já reunia 316 “irmãos” espalhados pelo país, todos monitorando atividades judaicas. O símbolo da ordem era uma suástica curva superposta com uma cruz. “Foi principalmente por influência dessa sociedade secreta e de sua sucessora, a Thule, que o emblema acabou sendo adotado pelos nazistas anos depois”, diz Goodrick-Clarke. Nos rituais, havia símbolos como o Santo Graal e trilha sonora de Richard Wagner, o compositor antissemita que exaltava os antigos teutônicos.

As reuniões da Ordem Germânica e da Thule atrairam gente que, depois, faria parte da cúpula do nazismo. Caso de Max Amann (general da SS), Dietrich Eckart (mentor de Hitler nos primeiros anos de sua carreira política), Alfred Rosenberg (teórico do Partido Nazista), Rudolf Hess (vice de Hitler em 1933) e Anton Drexler (fundador do Partido Nazista). E o mais engajado nas teses estapafúrdias era justamente o mais graúdo desses peixes: Heinrich Himmler, o número dois de Hitler.  

Nascido em 1900, Himmler era filho de um professor de literatura e de uma dona de casa fervorosamente católica. “Ele pertenceu a uma geração que ficou adulta durante a 1ª Guerra”, diz um de seus biógrafos, o historiador Peter Longerich. “Foi um jovem que, como tantos outros de classe média, viu a derrota alemã transformar sua vida.” Em 1923, pouco depois de se formar em agronomia, Himmler entrou para o Partido Nazista. Àquela altura, já tinha abandonado o catolicismo e se interessava por astrologia e mitos pagãos. Dois anos mais tarde, ingressou na SS e logo virou o chefe da seção da Bavária. Metódico, disciplinado e com um discurso convincente, teve uma carreira 
meteórica dentro da organização. 

Quanto mais alto chegava, mais se envolvia com o ocultismo. Perto de completar 27 anos, entrou para a Liga Artaman, um grupo místico que exaltava o sangue e o solo alemães. Ali, tomou contato com o Richard Walther Darré, futuro ministro da Agricultura de Hitler – outro esotérico que adorava teorizar sobre a superioridade ariana.

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Em 1929, já promovido a Heichführer (a mais alta patente da SS), Himmler decidiu transformar sua tropa na elite do futuro Reich. Adotou como modelo a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, uma milícia alemã que havia lutado contra muçulmanos em Jerusalém e estabeleceu um reino monástico na Prússia no século 12. Só que com uma diferença: a SS não seria cristã. “Himmler considerava que o cristianismo era uma força destruidora de nações e que os cavaleiros teutônicos tinha cometido um erro fatal ao adotá-lo”, diz o historiador alemão Peter Longerich, biógrafo de Himmler.

Mas afinal: o que o chefão da SS realmente pretendia ao evocar a Ordem Teutônica? “É difícil saber”, afirma o biógrafo. “Seus pronunciamentos sobre os teutônicos e a Idade das Trevas eram muito vagos.” Tudo indica que a intenção de Himmler era usar a ordem mais como propaganda do que qualquer outra coisa. O grupo continuava existindo na década de 1930, convertido numa simples associação católica chamada Ordem Alemã. Com a anexação da Áustria pela Alemanha, em 1938, ela seria proibida pelos nazistas – mas Himmler continuaria usando seus símbolos medievais para chamar atenção.

Quem mais exerceu influência sobre Himmler, pelo menos no que se refere a ocultismo, foi Karl Maria Wiligut, um ex-militar austríaco travestido de bruxo que alegava ser descendente do deus nórdico Thor. A doutrina dele era uma espécie de Ariosofia recauchutada, que situava o passado alemão num enredo de ficção científica barata. “A cronologia de Wiligut começava em 228 mil a.C., quando haveria 3 sóis no céu e a Terra seria povoada por gigantes, anões e outros seres mitológicos”, diz Goodrick-Clarke. 

Wiligut ingressou na SS em 1933, usando o codinome Karl Maria Weisthor, e, graças a todo esse “conhecimento” antropológico e astronômico sobre  assumiu um posto no governo nazi: o de chefe do Departamento de Pré-História. O cargo era meramente decorativo, criado sob medida para o mago. Wiligut também incutiu em Himmler a ideia de que o Tibet havia sido refúgio de uma civilização avançada – provavelmente a mesma que antes havia morado no continente perdido de Atlântida. Tinha também a “Teoria do Gelo Cósmico”, segundo a qual tudo que acontece no Universo é determinado pelo antagonismo entre sóis e planetas de gelo. Isso explicaria todas as catástrofes globais do mundo moderno. 

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Os cientistas alemães, naturalmente, riam de tudo isso. Uma nação que havia produzido Johannes Kepler, talvez o maior astrônomo da história, agora tinha de engolir um charlatão que falava em “três sóis” e no “poder do gelo espacial”. Mas quem tinha as metralhadoras da SS a um pio de distância era Himmler. E ele apoiava esse bestiário teórico com fervor. “É fácil entender o motivo”, diz o pesquisador britânico Alan Baker, autor de Invisible Eagle – The History of Nazi Occultism (“Águia Invisível – A História do Ocultismo Nazista”, sem tradução para o português). “Para ele, essa tese servia como uma brilhante refutação da ciência materialista, personificada pelo judeu Albert Einstein.” Himmler não primava pelo quociente de inteligência.

Nos devaneios do líder da SS, ainda havia lugar para os cátaros, uma seita herege perseguida pela Inquisição medieval. “Os cátaros eram dualistas, pregavam a oposição entre um deus mau e um deus bom”, diz Baker. “O mau era Jeová, deus dos judeus no Velho Testamento, e isso agradava a Himmler”. Otto Rahn, o maior “especialista” em cátaros da SS, jurava que a seita havia guardado o Santo Graal nos Pirineus franceses. Himmler, é claro, acreditava na história.

Hoje, nenhum historiador questiona o fato de que Heinrich Himmler era mesmo um sujeito profundamente interessado em ocultismo. O que ainda se discute é até que ponto ele teria se envolvido com isso. O historiador Peter Longerich arrisca uma teoria interessante. Para ele, a mitologia germânica, reforçada por todo tipo de “ideias ocultas”, tornou-se uma espécie de religião substituta para Himmler. 

Pois é: apesar de muita gente considerá-lo a própria encarnação do demônio, Hitler não dava a menor bola para misticismos. Nas conversas informais, ele frequentemente ridicularizava o fascínio de Himmler pelo oculto. 

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Mas o fato é que ele levou o mito da superioridade ariana e a paranoia antssemítica muito a sério. E as consequências foram bem mais reais do que as teorias estapafúrdias que vimos aqui.

Hitler e o cristianismo

Se, por um lado, o nazismo tinha uma face mística, por outro era radicalmente anticlerical. Mas o que isso significava na prática? “Heinrich Himmler almejava a destruição do cristianismo e a criação de uma nova religião germânica, baseada nas crenças dos antigos teutônicos”, diz o historiador Martin Ruehl. “Mas seu chefe, Adolf Hitler, se relacionava com o cristianismo de uma maneira muito mais pragmática. Para ele, as crenças religiosas eram irrelevantes, desde que não atrapalhassem a concretização de seus objetivos políticos”.

Exemplo desse pragmatismo foi a relação de Hitler com o cardeal Eugenio Pacelli, que mais tarde se tornaria o papa Pio 12. Um se sentia ameaçado pelo outro. Mas, apesar da desconfiança mútua, ambos viram vantagens em evitar o enfrentamento e acabaram assinando uma concordata em 1933. Pelo acordo, todos os alemães ficaram sujeitos às leis canônicas, o que garantiu a continuidade da ingerência do Vaticano sobre os assuntos religiosos na Alemanha. Em contrapartida, o pacto pôs fim ao Partido do Centro Católico, única agremiação democrática que restava no país. Assim, Hitler tirou a Igreja da esfera política – um problema a menos para instaurar sua ditadura.

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