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A era de ouro dos sequestros de avião

Quando os aeroportos não tinham detectores de metal e era possível comprar a passagem depois da decolagem, até sujeitos vestidos de caubói e armados com facas de cozinha eram capazes de sequestrar um avião

Por Cristine Kist
Atualizado em 27 nov 2017, 18h59 - Publicado em 26 Maio 2014, 22h00

Durante o serviço de bordo do voo 701 da Western Airlines, uma aeromoça deixou espirrar algumas gotas de vinho no uniforme militar do passageiro da poltrona 18D. Ele não pareceu dar muita importância, mas mesmo assim ela prometeu trazer um vale de lavanderia assim que acabasse de servir o resto do avião. Só que não trouxe. Esqueceu. E só lembrou quando viu o tal passageiro vindo na direção da área reservada aos comissários com cara de poucos amigos. Ela já estava com um pedido de desculpa na ponta da língua quando ele mostrou um bilhete em que se lia qualquer coisa como: “Esse avião está sendo sequestrado. Avise a tripulação e continue sorrindo.” Quando ela chegou “sorrindo” à cabine, o copiloto não acreditou: era a segunda vez que ele era sequestrado em menos de um mês.

Big Brother dos anos 60

Entre 1961 e 1972, 159 aviões foram sequestrados nos Estados Unidos. Só em 1972, ano do sequestro do voo 701, foram mais de três por mês. Tudo bem que o copiloto em questão era muito azarado, mas era relativamente comum até que dois aviões fossem capturados no mesmo dia por pura coincidência. Entre os sequestradores tinha de tudo: ativistas políticos, adolescentes rebeldes e até pais com bebês de colo. À medida que a Guerra do Vietnã se arrastava e o movimento pelos direitos civis sofria uma baixa atrás da outra, os americanos iam ficando menos otimistas. Alguns buscaram consolo nas drogas, outros no sexo, e os mais radicais resolveram sequestrar aviões – um jeito de sair do país e, ao mesmo tempo, deixar de ser “ninguém” para virar “alguém”, já que a cobertura intensa da mídia transformava os sequestradores em pessoas “famosas”. Mais ou menos como um Big Brother dos anos 60. Foi a história dessas pessoas que o jornalista Brendan Koerner reuniu no livro The Skies Belong to Us (“Os céus pertencem a nós”, ainda sem edição no Brasil).

Até 1961, nenhum avião tinha sido sequestrado nos EUA. Já haviam ocorrido alguns incidentes nos países soviéticos e alguns cubanos tinham sequestrado aviões para fugir para a Flórida quando Fidel assumiu o poder. Por sinal, sempre que um deles aterrissava em Miami, um publicitário chamado Erwin Harris ia até o aeroporto reivindicar a posse do avião porque, segundo ele, o então presidente Fulgêncio Batista tinha encomendado uma campanha para o turismo de Cuba e nunca pagou. Para provocar Fidel, os americanos deixaram Harris ficar com 11 aviões.

Quando o primeiro sequestro aconteceu, ainda nem era um crime previsto em lei. Armado com uma faca de cozinha, o eletricista Antulio Ortiz ameaçou matar todos a bordo caso não fosse levado a Havana. Dizia Ortiz que alguém tinha oferecido US$ 100 mil para que ele matasse Fidel. Mas não era para isso que ele queria ir a Cuba. Na verdade, o eletricista só queria fazer sua boa ação do dia e avisar o líder cubano sobre a conspiração contra ele. Não sabendo como reagir a uma faca (de cozinha, mas faca) apontada para a sua garganta, o piloto achou que o mais sensato era mesmo ir para Havana. E foi.

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Quando o avião pousou em Cuba, os passageiros receberam frango para o almoço e logo foram autorizados a voltar para os Estados Unidos. No fim das contas, o primeiro sequestro da história da aviação americana provocou um atraso de apenas três horas.

Aloha, Cuba

O FBI chegou à conclusão de que Ortiz era um lunático e assumiu que ninguém mais tentaria fazer algo parecido. Mas, dois meses depois, em julho de 1961, um policial cubano que tinha emigrado para Miami para trabalhar como garçom desviou outro voo para Havana, e dessa vez Fidel resolveu ficar com o avião. Disse que só devolvia se Erwin Harris mandasse de volta um navio que ele tinha retido tempos antes. Um senador americano não gostou da chantagem e chegou a defender o bombardeio de Havana. Foi só depois do quarto sequestro do ano que finalmente foi aprovada uma lei que transformava a tomada de aviões em crime sujeito à pena de morte. Durante os três anos seguintes, não houve mais nenhum incidente.

A entressafra foi interrompida em 1964 por dois oficiais que estavam de saco cheio da marinha e resolveram desviar para Havana um avião da simpática companhia Aloha Airlines. Nas palavras de um deles, “Cuba estava criando uma verdadeira democracia, um lugar onde todo mundo era igual”. Mas a verdade é que, quando chegavam a Havana, os americanos eram encaminhados para um lugar conhecido como “Casa de Transitos”, onde ficavam em dormitórios de cerca de 5 m². Nos períodos mais movimentados, o local chegou a abrigar 60 sequestradores.

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Os jornais fizeram questão de noticiar essa recepção nada carinhosa em Cuba, mas mesmo assim a epidemia continuou a crescer. Tinha sequestrador vestido de caubói, estudante de sociologia que queria pesquisar o comunismo in loco e até imigrante cubano com saudade da comida da mamãe. Enquanto o Congresso buscava uma solução, um senador lembrou que muitos presídios já estavam usando detectores de metal, e sugeriu que os aeroportos adotassem a mesma tecnologia. Mas as companhias aéreas não quiseram nem saber. É que cada sequestro acabava custando mais ou menos US$ 20 mil, entre trazer o avião de volta e dar uns dias de folga para a tripulação – uma gorjeta perto do que eles projetavam gastar com a instalação de detectores de metal. Além disso, as empresas tinham medo de que muita gente desistisse de voar se tivesse que encarar uma fila, esvaziar os bolsos e tirar os sapatos antes de embarcar.

Elas decidiram então simplesmente lidar com o problema da melhor maneira que conseguiram imaginar, e a melhor maneira era mandar imprimir cartões em espanhol para que os pilotos conseguissem se comunicar com possíveis sequestradores latinos (os cartões continham frases como: “Avião tem problemas mecânicos, não pode chegar a Cuba”). Para ajudar os passageiros, a revista Time publicou em dezembro de 1968 um guia chamado Viagem: O que fazer quando o sequestrador chegar. E a FAA, uma espécie de Anac americana, cogitou construir uma réplica do aeroporto de Havana dentro dos EUA.

Flerte com Sartre

Em maio de 1969, um jovem imigrante italiano com pinta de galã voltou para os EUA depois de servir no Vietnã. Quando chegou, Raffaelle Minichiello se desentendeu com o exército e resolveu voltar para a Itália. À força. Foi a primeira vez que um sequestro nos Estados Unidos teve outro destino que não Havana, e o caso recebeu uma cobertura frenética da imprensa. Quando Minichiello desembarcou em Roma, já era conhecido em toda a Itália. E tinha fãs. O produtor de cinema Carlo Ponti, responsável por filmes como Doutor Jivago e Depois Daquele Beijo, tentou fazer um filme sobre a vida dele. Diante da pressão da opinião pública, Minichiello ficou apenas um ano e meio na prisão. Quando saiu, assinou contrato para protagonizar um filme. Depois disso, o governo americano resolveu apelar: pediu que um psiquiatra fizesse uma lista com as características mais frequentes dos criminosos e entregou uma cópia a todos os funcionários responsáveis pelo check-in. Sempre que um passageiro se encaixasse nos critérios da lista, ele deveria ser encaminhado para o detector de metais. Mas quando, em junho de 1972, um jovem de uniforme militar chamado Roger Holder se apresentou para embarcar no voo 701 da Western Airlines, o responsável pelo check-in deixou que ele e a namorada, Cathy Kerkow, seguissem tranquilamente. A ideia de Holder era partir com Cathy para o Vietnã do Norte. Mas o piloto convenceu o casal que a Argélia, então sede dos Panteras Negras, era um destino mais bacana. Foi o sequestro mais longo da história dos EUA.

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Os dois realmente chegaram a ficar algum tempo na Argélia – e Holder inclusive virou um dos cabeças dos Panteras Negras -, mas acabaram indo para a França, onde eram vistos muito mais como revolucionários do que como terroristas. Em Paris, eles se separaram, e Cathy aproveitou sua fama de sequestradora para se entrosar com os intelectuais de Paris. Até com Sartre ela flertou. Quando os EUA pressionaram pela extradição, o ex-casal contratou bons advogados e arrastou o julgamento por anos. E, quando a sentença ia sair, Cathy fugiu com documentos falsos e nunca mais foi encontrada. É possível que ainda esteja viva e circule entre a alta sociedade europeia. Holder recebeu uma pena curta e voltou aos Estados Unidos. Ele morreu em 2012.

O preço para acabar com os sequestros foi ainda maior do que as empresas aéreas previam. Em 1977, um economista calculou que impedir um único sequestro custava US$ 9,25 milhões. Mas, ao contrário do que supunham American Airlines e companhia, os americanos pareceram gostar da ideia de viajar sem medo: depois que o raio-X passou a ser obrigatório, a quantidade de passageiros aumentou 25%.
Desde os anos 70, as empresas e os aeroportos mantiveram as mesmas políticas para negociação em sequestros. Ninguém cogitou a hipótese de um sequestrador não estar interessado em usar os passageiros como moeda de troca. Até 2001. Mas essa é outra história.

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