Nascido para Matar
Stanley Kubrick – 1987
Honra ao mérito: Mostra a formação de soldados com um mergulho na psicose.
Os anos 1980 foram cheios de filmes a respeito de soldados em treinamento – A Força do Destino, O Destemido Senhor da Guerra… Mas nenhum deixa a sensação de uma joelhada no baço como este aqui. Seguindo a linha Kubrick de personagens diabólicos, o sargento Hartman é um sádico que comanda o treinamento de fuzileiros navais que vão para o Vietnã, num esforço para desarranjar o equilíbrio psicológico da rapaziada. Sua vítima preferida é o soldado Pyle (Vincent D’Onofrio) porque este – meio abobado – parece não saber o que foi fazer ali.
O oficial chega perto de estrangulá-lo por causa de um sorriso besta numa descompostura. Esse perfil psicótico também se revela no discurso. Em uma cena emblemática, o oficial se orgulha de Lee Harvey Oswald ter aprendido a matar com os marines – tão bem que acertou o crânio do presidente Kennedy num carro em movimento. Em outra cena, após dizer que os aprendizes estão casados com suas armas (“a única vagina em que vocês vão encostar”), manda que troquem o Pai-Nosso antes do sono por uma “Oração ao Rifle”. Pagar flexões é um refresco perto das bizarrices.
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O objetivo desse estorvo todo é anular as personalidades dos soldados e transformá-los em autômatos programados para matar – até seus nomes são trocados por apelidos pejorativos, uma forma de apagar qualquer traço de identidade. O problema é que esses robôs humanos podem ter reações imprevisíveis – como veremos no clímax ultraviolento dessa primeira parte do filme.
Veterano de guerra, o ator Lee Ermey, que interpreta esse sargento, havia sido contratado de início apenas como consultor militar – trabalho que já fizera em outras produções, como Apocalypse Now. Mas ele já chegou determinado a roubar o papel. Diante da recusa do diretor, que achava que ele não tinha cara de perverso, Ermey insistiu: aproximou-se de jovens atores que estavam fazendo testes para recrutas e começou a esbravejar ao estilo de um militar casca grossa, humilhando-os a ponto de os garotos desabarem em prantos. Kubrick ficou convencido na hora – estava diante de um intimidador nato.
Na segunda parte, os fuzileiros já estão em plena guerra. É quando o personagem principal, o soldado Joker (Matthew Modine), dá mostras da ambivalência que irrompe quando se é estimulado a matar. Dá para manter uma autoimagem positiva após tirar a vida de alguém? Em Além da Linha Vermelha, o soldado Bell, que nos é apresentado como um modelo de integridade e apego aos valores que deixou em casa, fica paralisado quando acerta um inimigo pela primeira vez: “eu matei um homem…”.
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É uma pequena vitória, mas sua expressão é de incredulidade – “que espécie de pessoa sou eu agora?” Joker não chega às mesmas elucubrações filosóficas – lembremos que foi blindado emocionalmente –, mas compartilha dessa ambiguidade. Seu capacete tem o símbolo hippie da paz e também a expressão born to kill (“nascido para matar”). Já nas cenas finais, espantado ao descobrir que o sniper vietcongue que estava eliminando seus companheiros não passa de uma menina, Joker balançará entre a piedade e o puro prazer de puxar o gatilho. A conclusão, como nos melhores enredos, o diretor deixa a cargo do espectador.
E vale aqui um comentário final para lamentar que, entre tantas traduções desastrosas de nomes de filmes, “Nascido para Matar” seja especialmente infeliz – e incorra em dois pecados capitais. O primeiro é que a versão original tem estreita relação com essa perda da humanidade pela qual os jovens passam no treinamento. Full Metal Jacket diz respeito ao revestimento de metal mais duro de certas balas, uma analogia com o processo da perda de sensibilidade dos soldados. O segundo pecado é que o título em português acaba vendendo a grande arte de Stanley Kubrick como se fosse uma das vendetas brucutus de Charles Bronson.