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Meu dia em 2116: a vida de um cara qualquer do século 22

Aqui no século 22 ninguém tem iPhone – seria tão ridículo quanto andar com um relógio de bolso aí no século 21. O abismo tecnológico que nos separa de vocês é maior do que aquele entre vocês e a Roma Antiga. Mas nem por isso a nossa vida é mais fácil que a sua. Passe um dia comigo aqui em 2116 e entenda por quê.

Texto: Rodrigo Rezende | Design: Andy Faria | Imagem: Getty Images

Adaptação do texto publicado originalmente em setembro de 2012.

5 de janeiro de 2116

8h00

“Bom dia, Rodrigo. Você terá câncer daqui a 22 anos”, diz o médico que se materializa assim que entro no banheiro. Nem ligo mais. Todo dia de manhã o app médico vem com algum diagnóstico diferente. Alimentado por milhares de sensores que buscam sinais de doenças 24 horas, ele sabe tudo sobre meu corpo.

Também pudera: há sensores na privada, nas minhas roupas, na cama e até no chão. Todos prontos a disparar a qualquer sinal de proteína que indique doença. Mas o câncer não me assusta porque sei que os nanobots vão dar conta do recado. Esses robozinhos menores que o ponto em cima deste “i” circulam pela minha corrente sanguínea o tempo todo, exterminando qualquer célula cancerosa. Aí em 2021 você ainda não está tão tranquilo, mas as coisas estão evoluindo.

Na sua época, cientistas do Hospital de Massachusetts criaram um chip capaz de identificar câncer em 115 de 116 pacientes com a doença. Já para os cientistas aqui em 2116, câncer é fichinha perto de outro inimigo: a gripe. Eu mesmo estou meio mal agora e não tenho muito o que fazer. As mutações do vírus da gripe continuam dando um baile na medicina.

9h30

Checo meus e-mails. Logo na primeira mensagem, meu chefe se materializa na cadeira do escritório e grita: “Quando você entrega esse texto?”. Na realidade, não tem ninguém na cadeira. Se eu o vejo, é porque está dentro do meu olho. Calma. Parece esquizofrenia, mas é só tecnologia. Eu uso uma lente de contato eletrônica com acesso à internet. E a imagem do meu chefe está projetada nela.

Ela tem a mesma resolução que a minha retina e simula um espaço 3D tão bem quanto meu olho. É ela que traduz instantaneamente para a minha língua o que colegas indianos e chineses falam em nossas teleconferências. E que traz meus amigos virtualmente ao bar quando saio sozinho. Em 2021, só existem protótipos dela. Um deles foi o do cientista Babak A. Parviz, que conseguiu colocar uma tela de LEDs com resolução de 8×8 dentro de uma lente de contato.

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10h15

Carros, trens e ônibus agora são todos movidos por eletromagnetismo. O petróleo hoje vale menos que água potável. Estradas foram substituídas por trilhos para supercondutores. Mas está na hora de sair. Penso “abrir porta”. A porta de casa se abre. E não é telecinese. Infelizmente, ainda dependo de um aparelho para poder acionar objetos com a mente. É o tradutor mental: um conjunto de sensores eletromagnéticos em forma de capacete que capta a atividade dos meus neurônios e interpreta exatamente o que penso.

Ele se conecta à internet e comanda tudo, do editor de texto ao micro-ondas. Pois é: a neurociência avançou bastante nos últimos 100 anos. Aí em 2021 já existem formas rudimentares do tradutor mental: gente jogando videogame e macacos controlando braços mecânicos com a mente em laboratório.

Mas o primeiro a usar um tradutor mental de fato foi o gênio da física Stephen Hawking. Desenvolvido por cientistas do MIT, o tradutor com a tecnologia iBrain permitiu que o físico se comunicasse mesmo depois da paralisia total no corpo.

10h30

Meu carro faz tudo sozinho, como qualquer outro carro. Não lembro a última vez em que usei o volante. Aqui em 2116 o volante é só um item de segurança, como o extintor de incêndio é para vocês aí do século 21. Só tem um problema: meu carro não quer sair do lugar. Será defeito de software? Checo pela lente de contato se ele está atualizado. Ok, está. Abro na lente o app “Car Fix”. Nada.

Deve ser problema nessa maldita lente. É ela que liga o carro. E é ela que… Opa, uma moça piscando em vermelho no meu campo visual. Programei a lente para sinalizar toda vez que passar alguém compatível com o meu perfil. Pelo menos alguma coisa ainda funciona direito. Vou pedir ajuda a ela.

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10h35

Meus problemas acabaram: carro arrumado. E ainda descolei o ID da lente da moça. Ela me deu uma mãozinha no conserto. Agora só preciso resolver um detalhe: perdi minha mão. Dei bobeira enquanto acenava um tchau para a moça no meio do trilho supercondutor, e um carro superveloz decepou minha mão na hora. Mas tudo bem. Era biônica mesmo. Compro outra logo mais. Tinha essa mão desde os 15 anos, quando era moda trocar órgão biológico por mecânico.

Perder um olho, um rim ou um pulmão também não seria o fim do mundo. Dá para ir à loja de órgãos e comprar um novo. Graças à evolução da engenharia genética, agora é possível criar um órgão inteiro a partir de um punhado de células. Só não troco tudo de uma vez porque é caro pra caramba.

13h45

“Oi, moça. Tudo bem?” Assim que ela atende a ligação da minha lente, é como se eu me teletransportasse para uma cadeira dentro do ateliê onde ela trabalha. Com um comando de seu tradutor mental, a moça dá ordens a um nanobot. Ele vai até uma pilha de matéria e começa a se reproduzir, tal como seres unicelulares. E, em segundos, bilhões de nanobots esculpem o bloco de matéria.

Surge do nada uma obra de arte. É assim que se constroem objetos em 2116. Basta projetar um design ou fazer um download direto na internet e mandar para os nanobots. Aí em 2021 você pode achar que está a anos-luz dessa tecnologia. Mas cientistas já trabalham em um meio de montar objetos usando as propriedades de atração e repulsão na carga elétrica da matéria.

Enquanto os nanobots esculpem, eu tento agilizar o meu lado com a moça: “Você conhece o restaurante do elevador espacial?”, pergunto. Sem desviar o olhar da escultura, ela responde: “Não”. Eu: “Quer conhecer?”. Ela:”Pode ser”. Eu: “Hoje às 21h00?”. Ela: “Ok. Conversamos lá. Até!”. De repente, a sala de casa aparece de novo na minha lente. E um sorriso aparece nos meus lábios.

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21h00

Céu azul. Nuvens e mais nuvens. O elevador espacial sobe mais ou menos como um avião em 2021. Mas aí o céu vai ficando roxo. E cada vez mais escuro. Estrelas começam a aparecer. De repente, surge a Terra azul lá embaixo. Pronto: estamos no espaço. Em essência, o elevador espacial é uma haste de 100 mil km de altura fincada na superfície da Terra. Mas como um haste 8 vezes maior que o diâmetro do planeta e que alcança um quarto da distância até a Lua consegue ficar de pé?

A resposta está na física e nos nanotubos de carbono. Gire uma bola de tênis amarrada a um cordão. A corda não fica fixa, esticada? O mesmo princípio é usado no elevador com a rotação da Terra. Só que a rotação da Terra é de 1 670 km/h na linha do Equador – tão rápido que estouraria qualquer cordão. A menos que ele fosse feito de nanotubos de carbono, um material 180 vezes mais duro que o aço.

Ele já existe aí em 2021. Mas os cientistas ainda só conseguiam fabricar tubos de poucos centímetros. Chegamos ao restaurante, que fica em um satélite geoestacionário a 35 mil km de altura. Logo que sentamos à mesa, ela me diz: “Eu sou de câncer”. E aponta para a constelação de câncer pela janela. O tradutor mental lê meu cérebro e percebe que não sei nada de zodíaco (se o horóscopo, que começou na Babilônia de 2000 a.C., ainda existe em 2021, por que não continuaria existindo aqui em 2116?).

Então, minha lente mostra o texto que repito: “Quer dizer que você é muito ligada à família, não é… (Ops, qual o nome dela? Aparece na lente: Renata)… Renata?” Ela me olha com cara de que ouviu palavrão. “Desculpa, Ana” – tento o segundo sopro da lente. Cara de que chupou limão. “Quer dizer, Elisa!” – o jeito é improvisar. Ela vira de lado, olha para o espaço e me deixa no vácuo.

Sem saber o que fazer, vou ao banheiro. Maldita lente com defeito! No meio do caminho, lembro: Carolina! De nada adianta. Minha mesa já está mais vazia que o espaço sideral. Lá fora no mirante, Carol conversa com 2 amigos reais e 3 holográficos. No meio do restaurante, coloco a mão no olho, jogo a lente no chão e piso em cima. Essa lente só serve mesmo é para lixo espacial. Pois é, amigo de 2021. O futuro chegou. Mas a vida continua não sendo fácil.

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