Como um grupo de refugiados do fim da Idade do Bronze transformou seus muitos deuses num único Senhor.
Texto: Reinaldo José Lopes | Edição de Arte: Estúdio Nono / Cris Kashima
Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images
vida de quem estuda as origens do monoteísmo ocidental seria muito mais fácil (ou muito mais chata, se você é do tipo que adora um desafio) se fosse possível ler a Bíblia como quem lê um relato jornalístico escrito na semana passada, ou um bom livro de história sobre a Segunda Guerra Mundial. Se as Escrituras tivessem sido produzidas com a mesma preocupação que esses gêneros modernos devotam à precisão factual e à busca pela objetividade, não haveria muito o que discutir: a crença no Deus único que ainda hoje é adorado por judeus, cristãos e muçulmanos teria principiado lá pelo ano 1800 a.C., quando um chefe tribal de origem mesopotâmica chamado Abrão (nome que depois seria ligeiramente alterado para “Abraão”), atendendo a um chamado da divindade conhecida como Iahweh, decidiu deixar a região de Harã, na fronteira entre as atuais Turquia e Síria, e partiu de mala e cuia para a terra conhecida como Canaã, hoje correspondente a Israel e aos territórios palestinos.
Para quem vê contradição entre as religiões abraâmicas (assim chamadas em homenagem ao nosso ilustre personagem) e a Teoria da Evolução, não deixa de ser irônico constatar que Abraão põe o pé na estrada por ter fé numa promessa de Iahweh cujo sabor é bastante darwinista. O ponto central da promessa de Deus é a descendência: os filhos, netos e bisnetos de Abraão vão dar origem a um povo mais numeroso do que as estrelas do céu e os grãos da areia da praia. O prêmio da fé é o sucesso reprodutivo.
Escravizados pelos egípcios, os milhares de descendentes de Jacó, neto de Abraão, conhecidos como israelitas, são libertados por intervenção direta de Iahweh, que escolhe como seu representante na Terra o profeta Moisés. O porta-voz de Iahweh sobe ao Monte Sinai, no meio do deserto, para receber das mãos do próprio Deus as leis sagradas que caracterizam a primeira religião monoteísta da história.
Essa, num resumo ridiculamente resumido, é a narrativa das origens da crença no Deus único que, há milhares de anos, pode ser lida no Antigo Testamento, como o chamam os cristãos, ou na Torá, a primeira parte da Bíblia hebraica aceita pelos judeus. O problema é que, apesar de seu inegável apelo literário e religioso, essa narrativa tem pouco de história e muito de material lendário.
Figuras como Abraão, Jacó e Moisés podem até ter existido no passado remoto, mas não há evidências diretas da passagem desses personagens pelo antigo Oriente Médio, e tudo indica que o surgimento do monoteísmo israelita tenha sido um processo muito complexo.
Não há como explicar o que os especialistas têm descoberto sobre a gênese da figura de Iahweh sem falar da história do povo de Israel, cuja saga se confunde com a de seu Deus todo-poderoso, e dos acontecimentos históricos que moldaram os antecessores e os vizinhos dos israelitas na terra de Canaã.
Dos patriarcas ao Nilo
A tendência que prevalece entre quase todos os pesquisadores atuais é enxergar com ceticismo as chamadas narrativas patriarcais, que abordam a vida de Abraão e seus descendentes mais próximos. Não se trata de uma conspiração antibíblica: essa posição é apenas o resultado de uma leitura mais atenta das pistas deixadas pelo Gênesis e pela arqueologia. Considere a grande quantidade de anacronismos na história dos patriarcas – ou seja, de coisas que, até onde sabemos, não poderiam estar presentes nessas narrativas porque ainda não existiam na época deles.
As narrativas patriarcais mostram, por exemplo, os fundadores do povo israelita interagindo com o grupo étnico dos filisteus. O detalhe é que, tal como os camelos, os filisteus também foram acrescentados tardiamente ao panorama do Oriente Próximo, tendo chegado à terra de Canaã, veja você, em torno de 1200 a.C., talvez vindos da ilha de Creta. A não ser que Abraão e seu filho Isaac tivessem uma máquina do tempo, não haveria maneira de eles toparem com um filisteu.
Isso sugere que o material hoje presente no Gênesis foi escrito muitos séculos depois dos supostos acontecimentos que relata, ainda que esteja baseado em tradições orais mais antigas. Outra pista interessante que aponta nessa direção é o fato de que os textos, com alguma frequência, relatam que acontecimentos muito parecidos, se não idênticos, aconteceram tanto com um quanto com outro patriarca – isso quando não é o mesmo acontecimento relatado sobre o mesmo ancestral dos israelitas. Para muitos estudiosos, o mais provável é que essas histórias sejam versões ligeiramente diferentes da mesma lenda popular.
O Egito e seu povo desempenham um papel importantíssimo nas narrativas bíblicas sobre a origem de Israel e da adoração a Iahweh. É a escravidão dos israelitas no Egito, relatada no livro do Êxodo, o segundo da Bíblia, que leva Deus a intervir de forma espetacular no curso da história. O problema, mais uma vez, é que é muito complicado, se não impossível, demonstrar que os israelitas de fato passaram séculos no Egito e organizaram uma nova nação e o culto a Iahweh quando saíram de lá e foram para a Terra Prometida, ou Canaã, onde Abraão, Isaac e Jacó tinham morado.
Por um lado, é verdade que, durante séculos, grupos seminômades de Canaã e de outras regiões vizinhas do Egito costumavam aparecer nas fronteiras dos domínios faraônicos, pedindo para entrar, em períodos de seca e consequente fome. A região que mais tarde viraria o território israelita estava longe de ser um deserto, mas a agricultura da área dependia da chuva para produzir direito, diferentemente do cenário egípcio, no qual a cheia anual do Nilo fertilizava a terra nas margens do grande rio e era suficiente para garantir colheitas abundantes.
Em tese, seria possível que algum desses grupos de imigrantes passasse muito tempo no Egito, fosse escravizado e conseguisse se libertar, fugindo de volta para sua terra de origem. A arqueologia indica que isso teria de ter acontecido antes de 1208 a.C. Essa é a data mais aceita para a composição do texto egípcio escrito na chamada estela de Merneptah. Uma estela, como você talvez saiba, nada mais é que um bloco vertical de pedra, usado para inscrições comemorativas na Antiguidade. E Merneptah, filho de Ramsés 2º, reinou sobre o Egito de 1213 a.C. a 1203 a.C.
Em dado momento de seu governo, o faraó mandou registrar suas vitórias contra inimigos espalhados por Canaã e por outras regiões do Oriente Próximo na tal estela (veja o quadro com parte do texto do monumento).
Esse texto é a mais antiga menção a uma entidade chamada “Israel” fora da Bíblia. E os hieróglifos usados nele dão a entender que os israelitas estavam organizados como um grupo étnico, em estágio possivelmente tribal e nômade. Ou seja, por volta do ano 1200 a.C., grupos conhecidos coletivamente como Israel já estavam morando em algum lugar da terra de Canaã.
O problema é que, embora a primeira referência aos israelitas fora da Bíblia apareça num monumento egípcio, não há nenhuma menção aos “filhos de Jacó” dentro do Egito. E isso é realmente muito estranho porque, segundo a Bíblia, nas vésperas do Êxodo, a população israelita contava uns 600 mil homens adultos, ou 2 milhões de pessoas no total. Se juntarmos tais dados às estimativas da população egípcia na mesma época, isso significa que mais ou menos metade dos moradores do Egito seriam israelitas.
Ora, se meio Egito de repente abandonasse as margens do Nilo, deveria ser possível detectar isso pelos meios arqueológicos tradicionais – crise econômica, cidades abandonadas de repente etc. Mas não há evidências disso dentro do território egípcio, nem de multidão alguma vagando pelo deserto pelos 40 anos seguintes, como diz a Bíblia.
A coisa não melhora muito quando a gente examina com cuidado as narrativas sobre o que aconteceu depois do Êxodo e das supostas quatro décadas de caminhada dos filhos de Israel pelo deserto. Segundo o Antigo Testamento, Moisés morre às vésperas da invasão da Terra Prometida. Cabe ao sucessor dele, o general Josué, coordenar a conquista de Canaã, o que ele faz brilhantemente – com uma grande ajuda divina, é claro. É graças à intervenção de Iahweh que as muralhas da cidade de Jericó, em Canaã, vêm abaixo. Com raras exceções, os cananeus são exterminados.
A arqueologia conta uma história bem diferente. Jericó, para começo de conversa, provavelmente era uma pilha de ruínas havia séculos na suposta época das aventuras de Josué. No resto da Palestina, os anos que vão de 1250 a.C. a 1100 a.C. parecem ter sido de instabilidade política e conflitos, assim como em boa parte do Mediterrâneo – trata-se do chamado colapso da Idade do Bronze, que representou o fim de vários impérios e o enfraquecimento de outros. Várias cidades de Canaã parecem ter sido destruídas por invasores.
Ponto para Josué, portanto? Não, por dois motivos: a lista de cidades-Estado arrasadas não bate com a apresentada pela Bíblia, com raras exceções; e, o mais importante, quando algumas dessas cidades são reconstruídas, não parece haver grandes mudanças na cultura material dos novos habitantes. Eles continuam sendo tipicamente cananeus, não israelitas. Em resumo, a trama que aparece nos livros bíblicos parece estar errada do ponto de vista histórico.
Isso significa que Moisés e a revelação que ele teria recebido de Iahweh nunca existiram de verdade? É difícil dizer, mas o que parece razoavelmente seguro afirmar é que não houve uma relação direta entre um suposto cativeiro dos israelitas no Egito e a crença no Deus único. Está cada vez mais claro que o monoteísmo israelita não nasceu pronto da cabeça de um único reformador religioso, mas emergiu de forma gradual a partir do pano de fundo das antigas crenças da terra de Canaã.
A Estela de Mernepath
O texto desse monumento egípcio associa o termo “Israel” com a terra de Canaã. Eis um trecho:
Os príncipes estão todos prostrados, dizendo ‘Paz!’
Não há quem ouse erguer a cabeça entre os Nove Arcos.
Canaã foi saqueada e toda sorte de mal se abate sobre ela;
Israel é um deserto e sua semente não mais existe.
Os tais “Nove Arcos” correspondem à totalidade dos inimigos do Egito. E essa conversa de “sua semente não mais existe” provavelmente é literal: segundo a maioria dos egiptólogos, Merneptah está afirmando que destruiu as colheitas dos israelitas, e não que acabou com a descendência deles (outro sentido possível do termo “semente”).
Cananeus vira-casacas
Outra pista forte sobre as origens israelitas aparece lá pelo ano 1100 a.C. Trata-se de um novo tipo de ocupação da terra nas regiões montanhosas no centro de Canaã, até então relativamente vazias de gente – justamente as áreas mais importantes do território do Israel bíblico.
Nessa época, o começo da Idade do Ferro, a área passa a abrigar cada vez mais moradores em período integral. São, em geral, vilas minúsculas, com algo entre 50 e 100 famílias cada uma, mas elas se espalham feito cogumelos pelo território: de apenas 30 sítios arqueológicos mapeados no fim da Idade do Bronze, em 1.200 a.C., passamos para 250 sítios dois séculos mais tarde, o que corresponderia a um aumento de quatro vezes na população sedentária da região, segundo calcula o arqueólogo Israel Finkelstein, da Universidade de Tel Aviv.
Esse povo todo inicialmente pratica formas modestas de agricultura e pecuária, voltadas para a subsistência. Um dado curioso é que os novos vilarejos apresentam uma estrutura circular, que lembra a dos aglomerados de tendas dos beduínos e seria um sinal de que os moradores da região descendiam de grupos seminômades que já circulavam por ali antes.
Esses sítios estão cheios de sinais daquilo que os arqueólogos gostam de chamar de continuidade cultural. Ou seja, os artefatos dos primeiros israelitas, em geral feitos de cerâmica, seguem os modelos e estilos que existiam em Canaã nos séculos anteriores, como se eles tivessem aprendido como fabricá-los com os cananeus.
E há ainda a questão linguística. Quando os linguistas resolveram comparar o hebraico bíblico com outros idiomas da região de Canaã, o parentesco entre a língua do Antigo Testamento e a de vizinhos como os fenícios ficou óbvio. Para todos os efeitos, o hebraico é um dialeto cananeu. Em resumo, uma conjunção bastante sólida de pistas sugere que os israelitas não passam de um subgrupo dos moradores tradicionais de Canaã, e esse é o atual consenso entre historiadores e arqueólogos.
Faz sentido imaginar que parte deles eram refugiados da catástrofe que marcou o fim da Idade do Bronze, tentando reconstruir sua vida. Considerando que o Egito e seus faraós dominaram durante séculos as cidades cananeias, dá para entender por que surgiu o mito da libertação milagrosa do poderio egípcio e da destruição da velha ordem corrupta de Canaã. Não dá para apagar totalmente o passado, no entanto.
A grande família divina
Tabuletas de argila da antiga cidade-Estado de Ugarit, na Síria, com textos num idioma muito próximo do hebraico e estilo similar ao da Bíblia, são as responsáveis por nos dar uma ideia do que realmente se passava na cabeça de um cananeu da Idade do Bronze. Tais textos contêm um rico conjunto de mitos sobre divindades que ecoam de forma impressionante certos aspectos de Iahweh.
O mais venerável desses seres mitológicos cananeus é El, um deus idoso e barbudão que é o rei e pai das divindades. Um de seus apelidos mais comuns é “Touro El”. Ele não tem propriamente uma casa, mas sim uma tenda. Sua esposa é Asherah, uma deusa-mãe aparentemente ligada à fertilidade.
Logo abaixo de El está Baal, muito citado (e atacado) no Antigo Testamento. Ele é um jovem príncipe guerreiro. Os raios, os trovões e as tempestades são as armas de Baal e simbolizam seu poder bélico e sua impetuosidade. Sua casa (ou templo), feita com madeira de cedro, fica no alto do monte Safon, na Síria (atual Monte Aqraa). Ele recebe o direito de habitar sua mansão no topo da montanha depois de enfrentar e vencer Yamm, o deus do mar, e seus temíveis monstros marinhos.
As narrativas ugaríticas sobre Baal, porém, não falam apenas de suas vitórias gloriosas, mas também de sua derrota no combate com Mot, o deus da morte. Mot acaba devorando Baal, como se ele fosse um mortal qualquer. O deus derrotado, porém, é vingado por sua irmã (e, segundo certas interpretações dos textos de Ugarit, também esposa) Anat, uma feroz deusa guerreira que faz colares e cintos com as mãos e as cabeças decepadas de seus inimigos.
Após cometer toda sorte de atrocidade com o cadáver de Mot (moendo-o, por exemplo), Anat presencia a ressurreição tanto de seu irmão quanto de seu arqui-inimigo. Baal e Mot realizam então um tira-teima do duelo anterior, mas desta vez quem sai vencedor é o deus da tempestade, que assume enfim o papel de governante do Universo, delegado a ele pelo velho El.
Em resumo, era mais ou menos nisso que os ancestrais dos israelitas provavelmente acreditavam. É difícil – na verdade, praticamente impossível – saber com precisão como e quando essas crenças se modificaram. Tentar entender como esse processo aconteceu depende, em última instância, de análises cuidadosas dos textos bíblicos, que são a principal evidência direta das crenças israelitas a chegar até nós.
Existem muitos jeitos possíveis de comparar essas pistas da Bíblia com os antigos mitos cananeus, mas um dos mais interessantes e influentes é o modelo proposto pelo americano Mark S. Smith, do Departamento de Estudos Hebraicos da Universidade de Nova York.
Smith resume seu modelo com duas palavras-chave: convergência e diferenciação. Segundo ele e outros especialistas, tudo indica que os antigos israelitas desenvolveram suas concepções religiosas sobre Iahweh conferindo a ele muitas das características dos membros do antigo panteão cananeu – essa é a parte da convergência, ou seja, dos traços dessas antigas divindades “convergindo” para o Deus bíblico. Ao mesmo tempo, porém, há o fenômeno da diferenciação, ou seja, as tentativas de distinguir Iahweh dos demais deuses de origem cananeia.
Dispomos de alguns indícios intrigantes de que essa metamorfose religiosa complexa só foi possível porque, ao menos inicialmente, Iahweh era um estranho no ninho do panteão ancestral de Canaã. A primeira pista desse fato vem de uma inscrição egípcia feita em torno de 1400 a.C. Esse texto menciona “YHW na terra dos beduínos Shasu”.
“Shasu” é o termo usado pelos egípcios para designar os grupos de pastores nômades que viviam nas regiões semiáridas e desérticas ao sul e ao sudeste da terra de Canaã. São áreas conhecidas nos tempos bíblicos como Edom (segundo o Gênesis, povoada pelos descendentes de Esaú, irmão de Jacó), Madiã (ainda de acordo com a Bíblia, habitada por povos que descendem de um filho de Abraão), Farã (ou Parã) e Temã.
Estamos falando de uma região que engloba o sul da atual Jordânia, o noroeste da Arábia e parte da Península do Sinai, que hoje pertence ao Egito. E tudo indica que “YHW”, ou “Yahu”, seja uma variante mais curta do nome de Iahweh.
Será que os Shasu viviam numa região chamada “Iahweh” ou “terra de Iahweh”? Ou será que o texto se refere, na verdade, “à terra dos Shasu que adoram a Iahweh”? De qualquer jeito, alguns dos textos bíblicos de origem mais antiga, segundo os especialistas, mencionam justamente a região árida e remota habitada pelos Shasu como a morada do Deus de Israel.
Um trecho do livro do profeta Habacuc, por exemplo (capítulo 3, versículo 3), diz: “Eloá [forma arcaica da palavra para “Deus” em hebraico] vem de Temã/E o Santo, do monte Farã”. Do mesmo modo, uma canção contida no livro dos Juízes (capítulo 5, versículos 4 e 5) fala da passagem de Iahweh pelas planícies de Edom.
É claro que a ideia de que Deus mora no deserto não é totalmente estranha quando se leva em conta o relato do encontro entre Moisés e Iahweh no Monte Sinai, parte importantíssima do Êxodo. Embora a fuga do Egito aparentemente não seja histórica, muitos pesquisadores acreditam que as referências ao deserto são um sinal de que o culto a Iahweh pode ter sido trazido para a Terra Prometida por meio do contato entre parte dos ancestrais dos israelitas e os povos nômades que passavam boa parte de seu tempo nas terras áridas.
Alguns dos mais antigos adoradores de Iahweh em Canaã podem ter sido pastores da borda do deserto que decidiram se fixar na região montanhosa, ou então protoisraelitas que tiveram contato com membros de caravanas que passavam por ali.
Os textos bíblicos dão a impressão de que Iahweh inicialmente foi visto como um aspecto do velho El ou, no mínimo, passou por um processo de convergência com esse deus logo no começo da história israelita.
No Gênesis e no começo do Êxodo, por exemplo, embora o nome “Iahweh” apareça com bastante frequência, há uma série de textos que destacam o fato de que os patriarcas não costumavam usar essa palavra para designar a divindade que adoravam, porque supostamente não sabiam que seu nome era Iahweh. Em vez disso, eles preferiam usar expressões e títulos que têm paralelos nos textos de Ugarit sobre El.
Um dos casos mais marcantes desse fenômeno aparece numa conversa entre Moisés e Deus, quando o Senhor está enviando o profeta para pedir ao faraó que liberte os israelitas. “Eu sou Iahweh”, diz Deus. “Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacó como El Shaddai; mas meu nome, Iahweh, não lhes fiz conhecer.” As pessoas costumam traduzir El Shaddai como “Deus Todo-Poderoso”, mas o significado original da expressão parece ser “El, o que habita na montanha”.
Além de citar El Shaddai, o Gênesis menciona ainda El Elyon (traduzido como “Deus Altíssimo”) ou simplesmente Elyon, El Olam (“Deus Eterno”; de novo, em Ugarit o pai dos deuses era chamado de “El, o Eterno”) e o “Touro de Jacó” – como vimos, o rei divino dos cananeus também era conhecido como “Touro El”.
A influência da personalidade de El talvez corresponda a alguns dos aspectos mais plácidos do Deus bíblico: assim como El, ele tem um lado paternal e misericordioso. Por outro lado, o Deus do Antigo Testamento é, indiscutivelmente, um guerreiro. Provavelmente não é incorreto dizer que esse é o “lado Baal” de Iahweh, e diversos textos bíblicos revelam semelhanças entre, digamos, o estilo de Baal e o de Iahweh.
A questão é que cada divindade do mundo antigo costuma ser descrita por seus fiéis com um conjunto tradicional de apelidos, aparência física, inimigos etc. Em trechos como o Salmo 74, há paralelos entre o jovem deus da tempestade cananeu e o Senhor bíblico. Nesse salmo, Deus divide o mar e destrói monstros marinhos como o Leviatã, tal como ocorre na batalha épica de Baal contra Yamm, o senhor do mar. Outros salmos, bem como passagens do livro de Jó, apresentam variações da mesma cena mítica, o confronto entre Deus e o caos representado pelo oceano e seus monstros.
Quando o assunto é se manifestar ao mundo, Iahweh também parece ter seguido de perto os passos de Baal. Ambos lançam sobre seus inimigos um bombardeio de raios, trovões e tempestades; ambos são capazes de trazer a chuva para a terra seca quando seu povo precisa de boas colheitas; ambos comandam o exército divino montados num carro de guerra feito de nuvens.
O grau de convergência é tamanho que alguns textos bíblicos chegam a afirmar que o Monte Sião (ou seja, o local de Jerusalém onde os israelitas construiriam o Templo de Iahweh) é idêntico ao Monte Safon – ou seja, a morada tradicional de Baal nos textos ugaríticos. Repaginando e reimaginando deuses mais antigos, os israelitas primitivos iniciaram um processo que mudaria o cenário religioso do mundo todo, como veremos a seguir.