Mais leve, silenciosa, econômica e sustentável, a nova geração de motores torna a aviação regular cada vez mais eficiente. Conheça os bastidores de um mercado crucial para tornar as companhias aéreas mais competitivas.
Texto: Leonardo Pujol | Edição de Arte: Inara Pacheco | Design: Andy Faria
Amaior aeronave comercial produzida pela Embraer é o E195-E2. Pertencente à família de E-Jets, pode transportar até 146 pessoas por 4.815 quilômetros – a distância entre Bagé (RS) e Manaus. É um incremento de 12 lugares e 555 quilômetros de alcance na comparação com o E195 da geração anterior. Além da capacidade adicional, a Embraer afirma que o modelo tem um custo menor de manutenção por hora voada e economiza 15% de combustível por voo.
No Brasil, o querosene de aviação representa um terço dos custos operacionais das companhias. São bilhões de dólares, que superam gastos somados com tarifas aeroportuárias, materiais de reparo e manutenção, salários e benefícios a funcionários. Em 2019, os combustíveis representaram 30,2% das despesas da Latam, 32,7% da Azul e 34,5% da Gol. Em outros mercados, o querosene pode ter uma representação menor. Mas ainda significativa. Na americana Southwest Airlines, os combustíveis representaram 22,3% do custo operacional – que foi de US$ 20 bilhões no ano passado.
A frota da empresa low cost é de 750 aviões modelo 737, fruto de um acordo de exclusividade com a Boeing. Os planos da Southwest incluem substituir 275 desses jatos pelos novos 737 MAX. A companhia já havia trocado 34 aviões quando, em março de 2019, foi obrigada a paralisar sua operação, em razão dos problemas técnicos verificados no modelo.
A crise instalada pelo recall, e impulsionada pela pandemia, cancelou centenas de pedidos do 737 MAX. Muitas empresas, porém, mantiveram as encomendas. É que as companhias aéreas estão de olho na promessa de eficiência e segurança do jato. Segundo a Boeing, um 737 MAX pode levar 186 passageiros por 6,5 mil quilômetros sem reabastecer, um alcance de mil quilômetros a mais em comparação com os 737 da geração anterior. Foi o que permitiu à Gol voar sem escalas para destinos nos EUA, no México e no Peru, por exemplo.
À semelhança do novo E195, o MAX também gasta 15% menos combustível. “Isso pode gerar aumentos de dois dígitos nos lucros das companhias aéreas”, disse Vitaly Guzhva, professor de finanças de aviação da Universidade Aeronáutica Embry Riddle. A pedido do jornal The New York Times, Guzhva estimou que se houvesse trocado os 275 jatos, em 2019, a Southwest poderia ter poupado cerca de US$ 230 milhões só em custos de combustível.
Motor a reação
Algumas inovações são determinantes para a eficiência dos aviões atuais, como o design das asas ou o fly-by-wire – controles eletrônicos que dispensam cabos e outros mecanismos de comando, o que torna a aeronave mais leve. Mas o grande responsável pela redução do consumo de combustível é o motor. A maioria das aeronaves comerciais conta com motores a jato conhecidos como turbofan. São equipamentos poderosos, capazes de deslocar toneladas a mais de 900 km/h. Essa força advém da terceira Lei de Newton. Isto é, o funcionamento ocorre por ação e reação.
Parte do ar sugado (ação) pelo fan, aquele enorme ventilador da parte frontal, passa por sessões de compressores até atingir o núcleo do motor. É onde fica a câmara de combustão. Nela, o combustível é queimado com as partículas de ar comprimido. Essa alquimia produz gases que são expelidos pela turbina – a parte mais famosa do motor. Ao ejetar o produto da combustão, em alta velocidade, a aeronave gera o empuxo (reação) que a acelera para frente.
Já o turboprop, presente em aviões turboélice, é um motor de reação mista. Ele usa o mesmo mecanismo de um motor a jato, só que acionado por hélices em vez de um fan. Em termos de velocidade e altitude, o turboélice perde para um avião com turbofan. Por outro lado, é bem mais econômico e altamente competitivo na aviação regional. Em um voo de curta distância, o consumo de combustível de um ATR-72 (turboélice) cai à metade se comparado ao de um jato E-195 (turbofan). E é tão seguro quanto.
Os principais players do mercado de motores aeronáuticos são General Electric (GE), Pratt & Whitney, Rolls-Royce e CFM International. Há décadas eles competem para ver quem entrega o motor mais leve, silencioso, econômico e sustentável. Qualquer melhoria é bem-vinda, pois a inovação pode ter um efeito cascata em outros aspectos no ciclo de vida de uma aeronave e na operação de uma companhia aérea. Comparados com os motores dos anos 1960, os atuais são até 65% mais eficientes.
Força pura
Sob as asas do novo E195-E2, por exemplo, estão dois motores PW1900G, da americana Pratt & Whitney. O turbofan integra uma família de propulsores batizada de Pure Power (força pura, em português). Lançado na segunda metade dos anos 2000, o motor é resultado de duas décadas de pesquisa. Seu trunfo é obter o melhor rendimento de cada peça – fan, compressores, turbina. Mérito do sistema GTF (Geared Turbofan), que inclui uma caixa de redução acoplada ao fan frontal, fazendo com que as peças trabalhem em rotação quase ideal – o fan opera a uma velocidade reduzida em relação ao compressor de baixa pressão e à turbina.
Além disso, dois estágios do compressor de ar foram eliminados. Os compressores de baixa e de alta pressão são formados por discos de diâmetros decrescentes que, enquanto giram, comprimem o ar jogado na área de combustão. Essa transformação simplificou o mecanismo do compressor e reduziu seu peso.
E não parou aí: os engenheiros da Pratt & Whitney também conseguiram emplacar uma taxa de derivação (by-pass ratio) de 12:1. Isto significa que, para cada molécula de ar ingerida pelo centro do motor, outras 12 o contornam dentro da carenagem. Até então, a indústria sonhava em alcançar um by-pass de 10:1 – a GE havia chegado perto, com 9.2:1 nos motores GEnx. O ar frio desviado do motor, além de abastecer a cabine, vai ao encontro da massa de ar que é expelida pela turbina. O motor Pure Power conta com um emparelhamento de turbinas de alta velocidade, com quatro estágios a menos, e um combustor simplificado. Menos etapas significam maior eficiência na geração de tração e redução no consumo de combustível, nas emissões de gases poluentes e até mesmo no ruído.
Como o modelo era muito inovador, demorou um pouco para as fabricantes confiarem na novidade da Pratt & Whitney. Mas a Bombardier topou. Sofrendo os efeitos da crise financeira de 2008 e da perda do mercado de aeronaves regionais para a Embraer, a empresa canadense estava decidida a produzir um jato mais eficiente e competitivo. O plano era integrar os experimentais Pure Power no C-Series, um novo programa de jatos de 100 a 150 assentos.
Apesar do sucesso nas bancadas de teste, os motores enfrentaram problemas. Isso atrasou o programa da Bombardier – que posteriormente foi adquirido pela Airbus, sendo rebatizado de A220. Após seu lançamento, o C-Series não apenas ganhou escala como influenciou a modernização dos principais aviões de corredor único do mercado. E deu origem a uma tendência notável.
“À medida que os motores de última geração tornavam a operação mais eficiente, as fabricantes perceberam que projetar aviões do zero não era financeiramente viável”, explica o piloto e jornalista Edmundo Ubiratan, que há 20 anos escreve em publicações especializadas. Daí surgiu a chamada remotorização – a ideia de colocar motores mais eficientes em aviões clássicos, levemente alongados e aperfeiçoados. Afinal, é mais rápido, barato e vantajoso recertificar uma aeronave do que começar uma completamente nova. Além disso, os aviões remotorizados reduzem os custos de treinamento para pilotos e mecânicos.
Revolução dos materiais
Atualmente, a família Pure Power atende modelos como o Irkut MC-21, conhecido como Airbus russo, e o SpaceJet, da Mitsubishi. Mas seu sucesso é atribuído à experiência com o A220 e as aeronaves remotorizadas. Isso inclui toda a segunda geração de E-Jets da Embraer – composta pelos aviões E175-E2, E190-E2 e E195-E2 –, bem como a versão neo (new engine option, ou nova opção de motores) do A320.
Só que o Pure Power não é o único a dar empuxo no A320neo. Algumas aeronaves desse modelo também contam com o LEAP, motor produzido pela CFM International (consórcio entre a GE e a francesa Safran). Trata-se da versão modernizada de um best-seller do mercado, o CFM56, com o que há de melhor nos motores GEnx, da General Electric, que equipam o Boeing 747-8 e o 787 Dreamliner. O LEAP, por sua vez, além do A320neo, equipa o C919, da chinesa Comac, e o 737 MAX.
O motor da CFM também se destaca pela economia de 15% de combustível, em decorrência de alguns fatores. Entre eles, a versão aprimorada do combustor TAPS, introduzido originalmente na família GEnx. O mecanismo proporciona uma melhor queima de combustível porque, diferentemente dos combustores tradicionais (que misturam combustível e ar dentro da zona de combustão), o TAPS II faz uma pré-mistura desses elementos e dirige o fluxo para os queimadores.
Outra inovação ocorreu nas fan blades, as palhetas do ventilador frontal.
No CFM56, as blades eram de metal. No LEAP, são produzidas com compósito de fibra de carbono e modelagem tridimensional. A mudança aerodinâmica permitiu a criação de fan blades maiores, mais arrojadas e eficientes. E possibilitou reduzir o número de palhetas no fan. “Antes, usávamos cerca de 30 fan blades. Agora, usamos apenas 18″, afirma o engenheiro Rafael Aymone, diretor de operações do único centro de revisão de motores no Brasil – a GE Celma, localizada em Petrópolis (RJ).
O uso de materiais cerâmicos e de manufatura aditiva, como é conhecida a impressão 3D, também foi empregado nos bicos ejetores das câmaras de combustão. As peças, que eram torneadas em metal e montadas com diferentes partes, agora são únicas e 25% mais leves que os modelos anteriores – e cinco vezes mais duráveis. Além do mais, o compósito substitui as ligas de níquel e de cobalto que revestiam as lâminas das turbinas. Isso permite que os materiais cerâmicos suportem temperaturas mais elevadas. “Quanto mais calor o avião converter em energia mecânica, melhor é a sua eficiência”, diz Marco Aurélio Moroni, professor de Ciências Aeronáuticas na PUCRS.
À semelhança do GEnx e do LEAP, os últimos motores da família Trent, da britânica Rolls-Royce, são produzidos com impressão 3D e compósitos de matriz cerâmica. Desde o lançamento, em 1995, o Trent ganhou sete versões – cada vez mais econômicas e silenciosas. Esses motores dão empuxo a aeronaves da Airbus e da Boeing, incluindo o 787 Dreamliner, o remotorizado A330neo e o superjumbo A380.
Fazendo jus à fama de produzir motores avantajados, a Rolls-Royce agora prepara o UltraFan. Esse tende a ser o maior motor a jato do mundo, com 4,4 metros de diâmetro – superando os 3,76 metros do GE9X, último lançamento da GE, cujo tamanho equivale à circunferência da fuselagem de um Boeing 737. O GE9X está escalado para levantar voo dos enormes aviões da família 777, que devem entrar em operação agora em 2022.
Já o UltraFan ainda não tem destino certo. Apesar do tamanho, ele tem potencial para reduzir em 700 quilos o peso de uma aeronave. Tudo graças às melhorias no projeto aerodinâmico e à matéria-prima, o que inclui uma liga de fibra de carbono com uma camada de titânio, aplicada no bordo de ataque das pás do ventilador.
As novidades protegem o motor da erosão, de objetos estranhos e da colisão com pássaros. Além disso, a tecnologia que é empregada no motor oferecerá uma redução no consumo de combustível de 25% em comparação com a primeira geração do motor Trent. As emissões de CO2 devem cair ao mesmo percentual. Com conclusão prevista já para 2025, o projeto do UltraFan será mais um importante competidor nessa corrida pelos motores mais modernos e eficientes do mundo.